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28 de agosto de 2014

This happening world (21)

Em meados de Agosto, surgiu na Wired uma discussão muito interessante em dois artigos antagónicos sobre uma das principais tendências da ficção científica contemporânea: a distopia. A discussão começou com o artigo de Michael Solana, que aponta: Obviously science fiction is not the cause of the current mess we’re in. But for their capacity to change the way people think and feel about technology, the stories we tell ourselves can save us—if we can just escape the cool veneer of our dystopian house of horrors. Dois dias mais tarde, Devon Maloney contrapôsDystopian fiction mimics what it actually feels like to be in the world, so if it ends up scaring people, well, that’s because the world is scary. A verdade, a haver uma verdade, andará decerto a meio caminho de ambas as teses; e se é certo que a distopia sempre fez parte da ficção científica (sendo mesmo um dos seus géneros mais conhecidos - e apreciados - fora das suas fronteiras tradicionais), nem por isso deixa de ser verdade que falta à ficção científica moderna o optimismo e a esperança das histórias de outros tempos. Star Trek, que Solana refere de passagem, é em si todo um programa: nos remakes modernos, até a célebre frase de abertura to boldly go where no man has gone before deu lugar ao enfadonho Into Darkness

No portal da Tor, Chris McCrudden expõe doze razões para ler (e adorar) a série Discworld de Terry Pratchett. São doze boas razões (a Granny Weatherwax será talvez a melhor personagem da fantasia contemporânea), ainda que me veja obrigado a discordar do ponto 3: The Colour of Magic até pode ser o mais genérico de todos os livros de Discworld, mas é também o ponto de partida de toda a série; como tal, qualquer leitor que queira realmente conhecer o extraordinário universo ficcional que Pratchett desenvolveu ao longo das últimas três décadas deverá começar aqui, na aventura original de Rincewind e Twoflower, e deixar-se levar. É verdade que praticamente* cada livro de Discworld pode servir de porta de entrada para a série, mas há algo de muito gratificante na leitura sequencial, acompanhando a maturação da prosa e do estilo de Pratchett, e desvendando algumas piadas que só fazem sentido se o leitor já estiver familiarizado com alguns elementos de livros anteriores, por mais laterais que possam ser. 

No io9Annalee Newitz pergunta se alguma vez assistiremos a um fenómeno de cultura popular equivalente a Star Wars. Diria que já assistimos a um fenómeno aproximado, ainda que tenha partido do meio literário: Harry Potter. Num artigo não relacionado no Boing BoingCaroline Siede deixa algumas pistas para explicar como a série de livros de J. K. Rowling ajudou a moldar uma geração inteira, tendo um impacto assinalável em miúdos e graúdos um pouco por todo o mundo. 

Trigger Warning: Short Fictions and Disturbances é o título da próxima colectânea de ficção curta de Neil Gaiman, com publicação prevista para o início de Fevereiro próximo. De acordo com o próprio Gaiman (via tumblr), ainda está a trabalhar no último conto da colecção. 

Fontes: WiredTor / io9 / Boing Boing 

* Há excepções. Sugerir The Light Fantastic como primeiro livro a ler é disparatado, já que este é uma sequela directa de The Colour of Magic. Da mesma forma, Lords and Ladies surge na sequência directa de Witches Abroad, e não será talvez a melhor leitura para entrar em Discworld

18 de agosto de 2014

Terry Pratchett: "(...) a good fantasy is just a mirror of our own world, but one whose reflection is subtly distorted" (entrevista)

Com quarenta romances publicados desde 1983 (mais alguns companion books) e milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, a série Discworld de Terry Pratchett é um caso raro de longevidade e de qualidade na fantasia literária, com as suas sátiras tão inteligentes como provocadoras, as suas personagens cativantes para leitores de todas as idades, e, claro, o seu humor inconfundível. Em entrevista ao diário norte-americano The New York Times, Pratchett fala sobre os seus gostos, sobre os seus heróis literários e sobre o impacto que a leitura de The Wind in the Willows teve durante a sua infância - e, de caminho, ainda dá a resposta perfeita à inevitável pergunta de Verão sobre que livros escolher para a proverbial ilha deserta. Alguns excertos:
New York Times: Who are your favorite fantasy novelists?
Terry Pratchett: O.K., I give in. J. R. R. Tolkien. I wrote a letter to him once and got a very nice reply. Just think how busy he would have been, and yet he took the time out to write to a fan. 
NYT: What makes for a good fantasy novel?
TP: The kind that isn’t fantastic. It’s just creating a new reality. Really, a good fantasy is just a mirror of our own world, but one whose reflection is subtly distorted.
(...)
NYT: Which novels have had the most impact on you as a writer? Is there a particular book that made you want to write?
TP: It has to be “The Wind in the Willows.” It fascinated me. He had toads living in great country houses and badgers and moles acting like British gentlemen. I read the pages so often they fell apart, and God bless him for leaving in the pieces called “Wayfarers All” and “The Piper at the Gates of Dawn.” I am sorry to say that certain publishers, who really should know better, have produced editions with those pieces cut from that wonderful book, stating they were simply too heavy for children. I scream at stuff like that. After all, “The Pilgrim’s Progress” was a book written for children. A good book, no matter its intended audience, should get people reading, and that’s what started me writing. And once I started, I never stopped.
A entrevista completa pode ser lida no The New York Times.

Fonte: SF Signal

10 de julho de 2014

Terry Pratchett cancela presença na convenção de Discworld

Terry Pratchett cancelou a sua ida a uma convenção de Discworld por motivos de saúde. O anúncio foi feito no portal da International Discworld Convention (que terá lugar em Manchester de 8 a 11 de Agosto). Nas palavras do próprio Pratchett,
I have been putting off writing this announcement for quite some time and on good days thought I wouldn’t have to write it at all. However, it is with great reluctance that I have to tell you all that I will not be able to attend the upcoming Discworld Convention in Manchester. I am very sorry about this, but I have been dodging the effects of PCA and have been able to write for much longer than any of us ever thought possible, but now The Embuggerance is finally catching up with me, along with other age-related ailments. I know people will have already made plans far in advance and some will be travelling a long way, but this is the first time ever that I have been unable to attend a UK convention and I really am very sorry. They say time marches on, and it does, even though I have been running very fast to keep one step ahead of it. I really was looking forward to seeing your smiley, happy faces. Have fun everyone. Yes, on this occasion, have lots of fun.
É uma notícia tão triste como inevitável, conhecendo-se há já alguns anos o caso de Alzheimer precoce de que padece - e, para todos os efeitos, Pratchett tem razão quando afirma que conseguiu continuar a escrever por mais tempo do que pensou ser possível (e é notável o humor com que se refere à doença, através da expressão embuggerance). De qualquer forma, e de acordo com o The Guardian, Pratchett tem mais um livro de Tiffany Aching "well underway" - a confirmar-se a conclusão e a publicação, este será o quinto livro do arco narrativo young adult da jovem feiticeira, e o 41º livro da série Discworld.


27 de junho de 2014

Interesting Times: A Revolução e o Oriente

May you live in interesting times é uma frase atribuída (de forma muito pouco rigorosa) a uma maldição chinesa evidentemente sarcástica - e, em 1994, serviu de mote a Interesting Times, o décimo-sétimo volume da série Discworld, de Terry Pratchett. O título não engana: desta vez, o pano de fundo da sátira aguçada de Pratchett será a China Imperial, cujos elementos mais característicos são transportados para o Império Agatean, no longínquo (se tomarmos Ankh-Morpork como referência) Continente Contrapeso. E a explorá-las estará Rincewind, regressado à ribalta depois de The Colour of MagicThe Light FantasticSourcery e Eric. Como não podia deixar de ser, Rincewind faz-se acompanhar de um elenco de personagens recorrentes nas suas aventuras - a inevitável e homicida Luggage, Cohen the Barbarian e a sua "Silver Horde" geriátrica, e até Twoflower, o primeiro turista do Disco, que acompanhou Rincewind na odisseia inesperada de The Colour of Magic e The Light Fantastic; e a trama, essa, consiste numa aventura frenética com Rincewind a tentar evitar sarilhos, e a arranjar sarilhos a cada passo. 

Mas comecemos pelo início. Interesting Times abre com os deuses de Discworld a prepararem-se para um jogo (no caso, será uma partida de Cluedo, ou do que no Disco passaria por Cluedo) que decidirá a sucessão do vasto Império Agatean, situado no Continente Contrapeso. Ou dois deuses, pelo menos, com o resto do panteão a assistir: ninguém gosta de jogar contra o Destino, mas a Sorte tem um ás na manga: Rincewind. Retirado do seu aborrecido (e nada perigoso) exílio numa ilha deserta por uma evocação da Unseen University, a pedido de Lorde Vetinari: o Imperío Agatean exige que Ankh-Morpork lhe envie o "Grande Feiticeiro" para concretizar uma profecia local, e os feiticeiros académicos decidem enviar Rincewind, num feitiço calculado com rigor científico por Hex, o supercomputador que Ponder Stibbons desenvolveu (ou ajudou a desenvolver, já que Hex se tem desenvolvido a si mesmo).

Claro que ninguém pergunta a Rincewind se ele quer ir para o Agathean Empire - muito menos para representar um papel numa lenda local de um império à beira da revolta - ou que estaria à beira da revolta se toda a gente não fosse tão educada - por causa da conspiração de Lorde Hong para usurpar o trono imperial e do movimento subversivo (e com boas maneiras) do Exército Vermelho, estimulado por um panfleto revolucionário intitulado What I Did on My Holidays. No seu percurso, Rincewind encontra Cohen, o Bárbaro, com a sua horda de cinco bárbaros idosos e um professor reformado, que prepara na capital do império, Hunghung, um golpe que lhes garantirá uma reforma adequada. E reencontra Twoflower, autor não-intencional do manifesto subversivo. Mas será preciso muito mais do que um Grande Feiticeiro para dar início à rebelião...

Terry Pratchett explora os motivos, os mitos e as idiossincrasias da China Imperial através do seu já habitual ângulo cómico - e revela-se fascinante ver como encaixa no seu worldbuilding elementos como a Grande Muralha ou o Exército de Terracota de forma exemplar, como se dele sempre tivessem feito parte. Os elementos característicos do Oriente (ou do Aurient) surgem acompanhados por conceitos tão típicos de Discworld como a Quantum Weather Butterfly ou Hex, o super-computador da Unseen University (num pun que exemplifica na perfeição o génio humorístico de Pratchett). Não faltam ao longo do texto jogos de palavras tão inteligentes como divertidos, as situações absurdas, as referências pop e históricas ora óbvias, ora completamente fora do baralho, e, claro, as coincidências espantosas que sempre seguem Rincewind, com resultados hilariantes.

Mas por entre os jogos de palavras, a sátira e a aventura rocambolesca, Pratchett vai um pouco mais longe, desenvolvendo em Interesting Times uma reflexão muito articulada sobre a natureza das revoluções, sobre o poder e sobre o heroísmo (mesmo quando acidental). É um subtexto interessante, explorado com mestria e ironia através do olhar de Rincewind durante o seu estado quase permanente de flight or flight, e que dá toda uma outra dimensão ao romance. 

15 de junho de 2014

Citação fantástica (139

When someone is saved from certain death by a strange concatenation of circumstances they say that’s a miracle. But of course if someone is killed by a freak chain of events – the oil spilled just there, the safety fence broken just there – that must also be a miracle. Just because it’s not nice doesn’t mean it’s not miraculous.

Terry Pratchett, Interesting Times (1994)

28 de abril de 2014

Terry Pratchett (1948 - )

É interessante notar como, na fantasia literária moderna, o nome de Terry Pratchett (nascido Terrence David John Pratchett) se destaca como um dos seus mais talentosos e originais prosadores. Longe de se intrometer com seriedade nos territórios dos vários subgéneros da fantasia que marcaram as tendências desde os anos 70, Pratchett optou pegar nos vários elementos que o tempo lhe foi oferecendo para cunhar um nicho praticamente só para si, com as suas histórias humorísticas e as suas sátiras aguçadas, bem construídas e muito inteligentes nas suas desconstruções. E fê-lo num dos mais memoráveis mundos secundários da literatura contemporânea, Discworld: o mundo plano e circular, assente sobre quatro elefantes de proporções titânicas que, por sua vez, repousam sobre a carapaça da Grande A'Tuin, a tartaruga cósmica que vagueia pelo universo. The Colour of Magic, o primeiro livro de Discworld, foi publicado em 1983 e consistiu numa desconstrução humorística das convenções da fantasia de sword & sorcery; nos livros que se seguiriam - e seguiram-se 39, com o mais recente, Raising Steam, a ser publicado no ano passado -, Pratchett pegou noutros motivos e noutros elementos da fantasia literária, como as histórias de dragões, os épicos ou os contos de fadas para dar forma a algumas das mais bem conseguidas (e bem humoradas) sátiras que o género conheceu. E não se ficou por aí; Discworld explorou também em tom satírico temas tão diversos como a obra de Shakespeare, a natureza do fenómeno religioso, a indústria cinematográfica norte-americana, e até o heavy metal. Sempre com a mesma graça, a mesma prosa elegante, ritmada e repleta de jogos de palavras, 

Ainda que o grosso da carreira literária de Pratchett seja Discworld - afinal, falamos de 30 romances, uma mão-cheia de contos e noveletas, vários companion books -, ela não se resume àquele universo ficcional, que legou à fantasia moderna personagens tão inesquecíveis como Granny Weatherwax, Nanny Ogg, Sam Vimes, a Morte, Rincewind, Mustrum Ridcully, o Bibliotecário, C.M.O.T Dibbler, Havelock Vetinari, Susan Sto Helit e outros. The Dark Side of the Sun (1976) e Strata (1981) marcaram a sua entrada na ficção científica adulta, género muito importante nos seus anos formativos e ao qual regressou recentemente na companhia de Stephen Baxter com The Long Earth (2012), The Long War (2013) e The Long Mars, que será publicado este ano. Em 1990, colaborou com Neil Gaiman em Good Omens. E a sua bibliografia inclui ainda vários romances de carácter mais juvenil, como The Carpet People (1971), o seu primeiro romance, a trilogia The Nome (Truckers, 1988, Diggers e Wings, 1990), a trilogia Johnny Maxwell (Only You Can Save Mankind, 1992, Johnny and the Dead, 1993 e Johnny and the Bomb, 1996), Nation (2008) e Dodger (2012).

Após o diagnóstico de uma forma rara de Alzheimer precoce em 2007, Pratchett tem participado em várias iniciativas relacionadas com o esclarecimento, o estudo e o combate à doença, assim como ao tema sempre polémico da eutanásia. 

Terry Pratchett nasceu em Beaconsfield, no Buckinghamshire, no Reino Unido, a 28 de Abril de 1948, e celebra hoje o seu 66º aniversário. 

20 de abril de 2014

Citação fantástica (122)

There’s no point in believing in things that exist.

Terry Pratchett, Small Gods (1992)

24 de janeiro de 2014

Soul Music: Sexo, drogas e rock 'n' roll. Ou talvez só rock 'n' roll

E ao décimo-sexto livro de Discworld (terceiro do arco narrativo da Morte, após Mort e Reaper Man), Terry Pratchett dá música aos seus leitores. Em termos literários, dificilmente a expressão poderia ser mais literal: em Soul Music, o olhar satírico de Pratchett incide sobre a música. Não sobre a soul, entenda-se, mas sobre rock - sobre a music with rocks in que surgiu após um desejo inconsequente e uma guitarra suspeita na cena underground de Ankh-Morpork (leia-se: na taberna 'The Mended Drum') e que tomou a cidade de assalto com o seu som irreverente, da Unseen University até 'Hide Park', e que envolveu gente tão diversa como o 'Archchancellor" Mustrum Ridcully, Ponder Stibbons, C. M. O. T. Dibbler e o "padrinho" Crysoprase.

Mas Soul Music não começa em Ankh-Morpork; começa longe da cidade, numa perigosa estrada de montanha, onde uma carruagem caiu de um precipício. Um acidente ao qual não faltou cliché algum - nem as duas explosões, nem sequer a roda a soltar-se dos destroços em chamas. Um acidente com duas vítimas, e que leva a Morte a retirar-se do seu emprego (uma vez mais), em busca de um significado para algo que lhe está a escapar. Sem Mort, ou outro aprendiz, que lhe tome o lugar, a tarefa recai na sua neta, Susan Sto Helit - uma rapariga excepcional tanto pelo seu raciocínio lógico e muito terra-a-terra como pela sua invulgar capacidade de não se fazer notar. Enquanto Susan se vê confrontada com um corvo falante chamado Quoth que se recusa a dizer a "N" word (decididamente, tanto Pratchett como Gaiman têm uma predilecção por Poe) e que serve de intérprete para a Morte dos Ratos, Imp y Celyn, um jovem bardo de uma pequena, verdejante e chuvosa nação governada por druidas, abandona a sua casa prometendo vir a ser o músico mais famoso do mundo, e parte para Ankh-Morpork - onde, quis o destino (ou outra força mais "oculta"), acabou por se cruzar com outros dois músicos, o anão Glod e o troll Lias "Cliff" Bluestone. As circunstâncias levam a que se formem uma banda, a qual designam de The Band with Rocks In - e, após Imp adquirir uma guitarra suspeita numa loja obscura e assumir o nome artístico de "Buddy", a banda acaba por dar um concerto tão memorável como inesperado no 'The Mended Drum' - com uma música magnética e inclassificável que ficou desde logo conhecida como music with rocks in

Mas o dia do célebre concerto do 'The Mended Drum' é também o dia em que Susan começa a fazer o trabalho que lhe é imposto - e, rebelando-se contra a lei rígida da morte, tenta evitar que Buddy morra como previsto no motim que a music with rocks in provoca no interior da taberna. O resultado da sua acção, porém, vai ser surpreendente - e, como não podia deixar de ser as consequências cedo se vão fazer sentir. 

A música, como é bom de ver, é o centro de Soul Music, e a sátira de Pratchett estende-se até ao Big Bang e à ideia de um mito de criação "musical" - numa subversão inteligente tanto da teoria científica como de outros mitos de criação (será talvez impossível não pensar em Ainulindalë, de Tolkien). Mas esta é uma ideia que se vai instalando ao longo das duas narrativas que Pratchett tece em paralelo: a de Susan, dividida entre a rigidez do seu dever e o seu carácter humano (com a Morte à mistura), e a da Band with Rocks In, na sua ascensão meteórica pela cena musical de Ankh-Morpork, com o empreendedor Dibbler como agente musical e à revelia da Guilda dos Músicos. E esta segunda história é construída com inúmeras referências musicais - a músicos, a canções, a bandas, a acontecimentos lendários da história do rock. Como é costuma, Pratchett não deixa pedra sobre pedra (pun intended) - e não será decerto necessário ser-se um melómeno para soltar uma gargalhada com a referência ao "leopardo surdo", à música "Pathway to Paradise", à luva de Michael Jackson ou à rat music

Mais do que uma boa entrada na série Discworld, Soul Music atesta a versatilidade de Terry Pratchett no que à criação de sátiras diz respeito. Em Moving Pictures, conseguira sair da "zona de conforto" da literatura e dos contos de fadas para satirizar, com o seu humor inigualável no género, um aspecto fundamental da cultura popular contemporânea: o cinema. Em Soul Music repete a brincadeira, desta vez com o fenómeno da música rock que marcou a segunda metade do século XX; e fá-lo com graça (em ambos os sentidos) e inteligência, construindo uma história muito sólida polvilhada de gags e de referências mais ou menos evidentes (algumas só ao alcance de melómanos) à história do rock e a outros acontecimentos relacionados. Tal como em Moving Pictures no que ao cinema diz respeito, conhecedores de rock terão neste livro muitos detalhes para descobrir; e os leitores menos experientes, esses, encontrarão um livro ao bom estilo de Pratchett - uma história bem ritmada, com excelentes personagens a envolver-se nas situações mais incríveis e hilariantes imagináveis.

5 de janeiro de 2014

Citação fantástica (100)

There are millions of chords. There are millions of numbers. And everyone forgets the one that is a zero. But without the zero, numbers are just arithmetic. Without the empty chord, music is just noise.

Terry Pratchett, Soul Music (1994)

28 de dezembro de 2013

2013 em retrospectiva (3): Os melhores livros de fantasia

Quem fizer a história da fantasia literária dos últimos 30 anos não poderá deixar de dar grande destaque a Discworld, o mundo secundário onde Terry Pratchett tem satirizado, com um humor ímpar na literatura contemporânea, tudo o que se possa imaginar – das obras de Shakespeare às convenções da fantasia moderna, das civilizações antigas à indústria cinematográfica. Em Small Gods, o décimo-terceiro volume de Discworld, a sátira afiada e inteligente de Pratchett apontou baterias no culto religioso – e o resultado é um dos melhores livros de fantasia dos anos 90. Om, em tempos uma divindade poderosa no Disco e centro de um dos seus mais importantes cultos, vê-se desprovido dos seus poderes e capturado no corpo insignificante de uma tartaruga – pois a sua religião, apesar de ter milhões de fiéis, não tem um único crente (e o poder dos deuses em Discworld, como se sabe, deriva da crença genuína). Resta-lhe Brutha, o mais simples de todos os acólitos do seu mosteiro, detentor de apenas duas qualidades dignas de nota: uma grande força física, e uma memória eidética infalível. Mas no lado oposto a Brutha – ou seja, no topo da hierarquia clerical do culto de Om – está Vorbis, grande inquisidor, homem de olhar fulminante e determinação insuperável, para quem o poder clerical e o poder secular devem ser uma e a mesma coisa. Com Om entre estas duas figuras, Pratchett traça uma sátira mordaz, inteligente e profundamente divertida ao fenómeno religioso, aos seus ritos e aos seus cultos, que talvez seja mais pertinente hoje do que o seria em 1991, quando foi publicado pela primeira vez. 

Em boa verdade, poderia completar esta lista apenas com os livros de Discworld que li durante 2013 – todos eles excelentes. Depois de Small Gods, destaco também Witches Abroad, décimo-segundo título da série, que regressa a Granny Weatherwax, a Nanny Ogg e a Magrat Garlic, as três impagáveis bruxas do pequeno reino de Lancre. A súbita herança de uma varinha mágica de uma fada madrinha por Magrat, e um detalhe antigo mas nunca esquecido do passado de Granny vai levar o pequeno círculo de bruxas (mais Greebo, o temível gato de Nanny Ogg) até um reino distante, dominado pelos contos de fadas – com os bailes faustosos e os indispensáveis finais felizes. Pelo caminho encontram anões, abóboras, lobos antropomorfizados, mais abóboras, rituais voodoo, espelhos encantados e um reino onde nada é o que aparenta ser – e pior, nada é o que devia ser. Witches Abroad é uma sátira inteligente aos contos de fadas tradicionais, e nenhum deles escapa ao olhar atento e perspicaz de Pratchett – só as inúmeras referências e as piadas hilariantes fazem valer a pena a leitura. Mas Witches Abroad é também uma história intrigante e muito bem construída, com uma das melhores personagens de Pratchett como protagonista – falo de Granny Weatherwax, evidentemente.

Tehanu, de Ursula K. Le Guin
Entre a publicação de The Farthest Shore, o terceiro volume da trilogia Earthsea original, e de Tehanu, obra que marca o regresso de Ursula K. Le Guin ao seu mundo secundário de fantasia, passaram-se quase vinte anos; e isso nota-se de forma muito positiva na leitura. Por oposição à trilogia anterior, mais próxima da fantasia literária convencional e das demandas do herói, Ged (por muito que tais convenções tenham sido contornadas), Tehanu retira o protagonismo a Ged para explorar o ponto de vista de Tenar, a jovem rapariga que o feiticeiro resgatara em The Tombs of Atuan. Mas muitos anos se passaram desde então, e isso nota-se: Ged está mais velho, e profundamente mudado pelos acontecimentos de The Farthest Shore; e Tenar, também já longe da juventude de outrora, também amadureceu e construiu uma vida familiar em Gont. Por um lado, é um prazer ver Le Guin a explorar o envelhecimento, o crescimento pessoal e as consequências das acções passadas das suas personagens; e por outro, esse enquadramento e o foco sobre Tenar dá à autora a oportunidade de explorar algumas das questões de género que se tornaram recorrentes na sua obra. Pelo contraste entre as vidas de Tenar e de Ged, Le Guin aborda o poder e a magia na perspectiva dos dois géneros naquele mundo - e fá-lo de forma mais intimista e pessoal, com resultados espantosos. 

Se Poul Anderson fosse vivo e estivesse hoje a escrever este seu clássico de 1954, The Broken Sword seria esticado para, pelo menos, uma trilogia, com cada livro a ter entre 400 e 600 páginas. Mas nos longínquos anos 50, este épico de inspirações na mitologia escandinava coube num único volume de pouco mais de duzentas páginas – e a sua trama, intensa e convulsa como só as grandes sagas sabem ser, é uma autêntica lição de storytelling. Michael Moorcock considerou-o melhor do que “o outro” livro de fantasia daquele ano, The Fellowship of the Rings – o que não faz justiça nem à obra de Anderson, quanto mais à de Tolkien. Com uma história situada na Inglaterra durante a era dos Vikings, e com a oposição entre as divindades tradicionais do Norte da Europa e o Cristianismo em ascensão, The Broken Sword parte da conquista de um território nas ilhas britânicas por Orm the Strong, e da inimizade que gera junto do reino de faerie de Elfheug. A troca do primogénito de Orm por um changeling híbrido de elfo e troll, porém, vai gerar um conflito muito amargo entre os Homens e as criaturas de faerie, e entre elfos e trolls - com os deuses do Aesir e os Jotuns envolvidos para os seus próprios fins. E, pelo meio, há ainda uma espada antiga, quebrada, que só poderá ser reforjada pelo gigante Bolverk na sua terra distante. Com um tom mais próximo das sagas nórdicas, The Broken Sword é uma aventura prodigiosa de Poul Anderson (que, recorde-se, também se notabilizou na ficção científica), um clássico da literatura de fantasia firmemente ancorado nas mitologias europeias. 

8 de dezembro de 2013

Citação fantástica (96)

The reason why the rich were so rich, reasoned Vimes, was because they managed to spend less money.

Take boots, for example. He earned thirty-eight dollars a month plus allowances. A really good pair of leather boots cost fifty dollars. But an affordable pair of boots, which were sort of OK for a season or two and then leaked like hell when the cardboard gave out, cost about ten dollars. Those were the kind of boots Vimes always bought, and wore until the soles were so thin that he could tell where he was in Ankh-Morpork on a foggy night by the feel of the cobbles.

But the thing was that good boots lasted for years and years. A man who could afford fifty dollars had a pair of boots that'd still be keeping his feet dry in ten years' time, while a poor man who could only afford cheap boots would have spent a hundred dollars on boots in the same time and would still have wet feet.

That was the Captain Samuel Vimes 'Boots' theory of socio-economic unfairness.


Terry Pratchett, Men at Arms (1993)

6 de dezembro de 2013

Men at Arms: A autoridade e o carisma

Quando o Capitão Vimes, a poucos dias da sua reforma e do seu casamento com a aristocrata mais rica de Ankh-Morpork, Sybil Ramkin, recebe a notícia de que a "Night Watch" que comandou durante anos irá receber novos recrutas, está longe de imaginar que Lord Vetinari, o Patrician da cidade mais populosa de Discworld, quer introduzir naquela força policial (que de "força" e de "policial" tem muito pouco) o conceito moderno e politicamente correcto de quotas étnicas. Assim, alistam-se na "Night Watch" três recrutas: Detritus, um troll conhecido pela sua força bruta e parca inteligência (personagem recorrente desde os seus tempos de porteiro do célebre bar "The Mended Drum", em The Colour of Magic), Cuddy, um anão, e Angua, uma rapariga que não é bem aquilo que parece, pelo menos durante alguns dias de cada mês. Mas o surgimento de uma série de assassinatos, tão enigmáticos como aleatórios e sem aparente envolvimento directo da Guilda dos Assassinos, e o quase surgimento de um rei para a cidade, vai perturbar os últimos dias de Vimes enquanto Capitão da "Night Watch"; e vai levar novos e velhos recrutas a uma investigação no mínimo tumultuosa - e, como não poderia deixar de ser, hilariante. 

Esta é a premissa de Men at Arms, décimo-quinto livro da série Discworld, de Terry Pratchett, publicado em 1993. No que à estrutura interna da série diz respeito, é o segundo livro dedicado ao Capitão Samuel Vimes e à "Night Watch" de Ankh-Morpork, sendo uma sequela directa do oitavo volume, Guards! Guards! - e ainda que a leitura deste não seja obrigatória para a compreensão de Men at Arms, há alguma vantagem em lê-los de forma sequencial pela familiarização com as personagens e pelo estilo da história em si. Uma história com Vimes é, regra geral, uma história de tons noir - e Pratchett não perde a oportunidade de utilizar referências populares do género, como The Third Man ou Twin Peaks, enquanto explora o mistério dos estranhos homicídios (em Ankh-Morpork não há homicídios, apenas suicídios) que, de tão aleatórios que são, não podem não estar relacionados entre si - e que envolvem um artefacto envolto em mistério, um objecto único criado pelo mais extraordinário dos inventores. E isto numa cidade multi-étnica como Ankh-Morpork, onde trolls e anões estão sempre à beira de instigar uma guerra civil, onde a polícia é redundante pelo auto-policiamento que as várias Guildas - como a Guilda dos Ladrões, a Guilda dos Assassinos, a Guilda dos Palhaços ou até a Guilda dos Mendigos - fazem entre si das suas actividades. Curiosamente, o grande protagonista desta história da "Watch" não é Vimes, mas Carrot, o humano criado pelos anões das Montanhas Ramtops, enviado para a cidade em Guards! Guards! - e Pratchett explora com detalhe a fantástica personalidade desta personagem, contrapondo o carisma natural e o seu carácter conciliador, capaz de fazer sobressair o melhor de cada pessoa. No livro anterior, o autor descreveu Carrot como "o pensador mais linear de Discworld" - e, partindo dessa ideia, o leitor poderá acompanhar, com umas boas gargalhadas, esta aventura. O interrogatório na Guilda dos Palhaços é digno de antologia.

Mas mais do que uma sátira ao noir ou aos police procedurals mais modernos, Pratchett desenvolve em Men at Arms, uma reflexão muito curiosa sobre a autoridade e a sua legitimação, no contraponto que estabelece entre a autoridade carismática de Carrot, a a autoridade que decorre da ditadura benevolente (e, acima de tudo, inteligente) de Vetinari, e a autoridade real, dos antigos e depostos reis de Ankh-Morpork. A conclusão de que a cidade nunca tivera um bom governante porque a única pessoa que o poderia ser recusa o governo justamente por esse motivo é soberba, e encerra na perfeição tanto a história pessoal de Carrot como o caso que a "Night Watch" se encontra a investigar.

No resto, Men at Arms é Pratchett no topo da sua forma - com uma excelente prosa repleta de puns, de trocadilhos bem montados, de referências óbvias e obscuras que garantirão surpresas tanto na primeira leitura como em releituras, e de humor inteligente na forma como pega em convenções e clichés para lhes dar a volta, nas situações que cria e nas personagens que elabora (Angua merece destaque pelo formidável twist, tornado melhor num regresso à sua introdução uma vez concluída a leitura). Para além dos membros e dos recrutas da "Night Watch", outras personagens recorrentes regressam com pequenos papéis, como Mustrum Ridcully, o Reitor, o Bibliotecário, C.M.O.T Dibbler, Mrs. Cake - e Gaspode, o cão-prodígio de Moving Pictures, aqui com um cameo alargado e muito interessante sobre a natureza canina. Em termos genéricos, Men at Arms poderá, como qualquer outro livro de Discworld, decerto não desiludirá quem por ele optar para uma introdução neste universo; mas a leitura beneficia imenso de uma maior familiaridade com este mundo secundário e com as personagens que o povoam. 

4 de dezembro de 2013

Terry Pratchett: [Discworld] isn’t our world, but on the other hand it is very much like our world. (entrevista)

Em Outubro, referi aqui uma entrevista de Cory Doctorow a Terry Pratchett, publicada na Amazon UK a propósito do relançamento de The Carpet People, o romance de estreia do autor que viria a marcar de forma indelével o humor na literatura de fantasia com Discworld. Essa entrevista, na prática mais uma longa conversa entre ambos os autores (Pratchett inverte a coisa de forma muito pouco subtil), pode agora ser lida na íntegra no Boing Boing, com a obra e as personagens de Pratchett em destaque, e com um interessante debate sobre um tema caro a ambos: a autoridade, e a respectiva legitimidade. Alguns excertos:
Cory: You took a bunch of runs at building a world where a million stories could unfold — The Carpet People, Truckers, and, finally, Discworld. Is Discworld’s near-total untethering from our world the secret of its staying power?  
Terry: It isn’t our world, but on the other hand it is very much like our world. Discworld takes something from this world all the time, shows you bits of the familiar world in new light by putting them into Discworld. Is that staying power? You tell me. 
Cory: What’s the secret to Discworld’s unplumbable depths, and is there something a big world lacks when compared to one that’s smaller (in more than one way), like the Carpet
Terry: We know about Earth; we know an awful lot about the solar system. When you do Discworld, you, the writer, can more or less change anything if you want to, if you can make it fit. It means you’re god, and that’s a great responsibility.  
As a writer, you can take bits of the universe and put it in your own new universe. Working in Discworld, you use the word sandwich, and you think: Can I do this? Now I’ve got to have a reason why a sandwich is a sandwich—in our world, it was named after the man associated with its invention, the Earl of Sandwich. Can you have your own universe and still have sandwiches? You have to do it all yourself and decide if you need to open the door into our reality at the same time. 
Once Discworld started moving, as it were, it started moving almost of its own volition, because I would write a Discworld novel, and that novel required that such and such should be available, or whatever, and that means that the next time, that’s real in Discworld and the thing grows. And I must say it grows to be rather bigger than a carpet—but with care, it can have just about anything in it. 
I’m finishing up Raising Steam, in which the railroad comes to Ankh-Morpork, and an awful lot of things have to be made and discovered until you get to the top of that pyramid. You can’t have Vaseline until someone’s invented something else. You have to create and understand a lot of things before you can move on. And so, since I work on Discworld almost all the time, it grows because I need it to.
A entrevista/conversa completa pode e deve ser lida aqui.

Fonte: Boing Boing

17 de novembro de 2013

Citação fantástica (93)

Technically, a cat locked in a box may be alive or it may be dead. You never know until you look. In fact, the mere act of opening the box will determine the state of the cat, although in this case there were three determinate states the cat could be in: these being Alive, Dead and Bloody Furious.

Terry Pratchett, Lords and Ladies (1992)

15 de novembro de 2013

Lords and Ladies: O sonho quântico de uma noite de Verão

Um dos mais intrigantes aspectos da longa série Discworld, desenvolvida por Terry Pratchett ao longo dos últimos trinta anos (a data é exacta: The Colour of Magic, o primeiro livro da colecção, foi publicado em 1983) reside no carácter autónomo de quase todos os livros. Grosso modo, a cronologia interna da série no seu todo segue a ordem de publicação, tal como as várias ramificações narrativas - sejam as histórias das Bruxas de Lancre, da Morte, dos Feiticeiros (e de Rincewind), da Patrulha da Noite, ou mesmo até dos títulos individuais, isolados em termos temáticos. Isso, porém, não obriga a uma leitura sequencial - e se há vantagem em ler, por exemplo, Mort (o quarto livro e o primeiro dedicado apenas à Morte) antes de Reaper Man (o décimo-primeiro livro e o segundo dedicado àquela personagem) de modo a acompanhar a evolução da personagem e da escrita, tal vantagem será sobretudo uma questão de escolha. Há excepções, claro; Lords and Ladies, a décima-quarta aventura de Discworld, publicada originalmente em 1992, será porventura uma das mais notórias, enquadrando-se na sequência directa dos acontecimentos de Wyrd Sisters e Witches Abroad - cuja leitura irá tornar todo o texto mais claro, mais lógico e, sobretudo, mais divertido. 

Recordemos, então (com inevitáveis spoilers): no shakespereano Wyrd Sisters, o coven composto por Granny Weatherwax, Nanny Ogg e Magrat Garlick, envolveu-se em intriga palaciana e deu a volta ao texto - de forma muito literal - para a inesperada coroação de Verence como rei do minúsculo reino de Lancre, algures nas montanhas Ramtops; e em Witches Abroad, as três bruxas viajaram para o distante reino de Genua para se envolverem num complicado conto de fadas, no qual não faltaram varinhas mágicas, fadas madrinhas, jogos de espelhos e rituais de voodoo. Lords and Ladies trata do regresso de Granny, Nanny e Magrat a Lancre, e do que lá vão encontrar após a sua longa ausência. Isto quando uma série de estranhos crop circles começa a manifestar-se um pouco por todo o mundo nos lugares mais improváveis - não só em campos cultivados como também, por exemplo, em papas de aveia.

Lords and Ladies abre com uma analepse que transporta o leitor para um fragmento do passado de Granny Weatherwax, durante a sua juventude, para logo regressar ao presente - a Lancre, às vésperas do casamento real que promete trazer a fina flor das Ramtops e até os representantes da Unseen University àquele aconchegado território. Mas algo espreita por entre as pedras, erigidas pelos anões, que forma o círculo conhecido como Dancers; um reino inteiro, escondido e esquecido, à espera da oportunidade apresentada pelo enfraquecimento das fronteiras que separam uma quantidade infinita de Universos para se voltar a instalar sobre a realidade. O que levará Granny a ter de enfrentar o seu passado (de várias formas), Nanny a resistir (ou não) às investidas de um anão sedutor e Magrat a encontrar uma força que ninguém imaginaria que ela possuísse. 

O facto de ser, em termos práticos, uma sequela em nada enfraquece Lords and Ladies; a exploração mais aprofundada de algumas das mais importantes personagens deste universo ficcional revela-se interessante e divertida (como não poderia deixar de ser). Se nas primeiras páginas a prosa parece estranhamente pouco articulada (excepção feita à breve passagem da Morte, a todos os níveis extraordinária, digna de ser destacada como um conto singular), essa sensação cedo se desvanece à medida que Pratchett ganha fôlego e recupera temas e motivos da célebre peça A Midsummer Night's Dream, de Shakespeare, para os subverter e virar do avesso de forma sempre hilariante, e por vezes até ritmada por danças Morris. A combinação improvável das bruxas de Lancre com os feiticeiros da Unseen University gera algumas situações curiosas - e se é certo que ao décimo-quarto livro o leitor experimentado já pode imaginar que gags esperam o Librarian, o feiticeiro transformado em macacoprimata por acidente mágico, nem por isso deixará de se surpreender com os fragmentos do passado do Archchancellor Mustrum Ridcully. E, claro, cenas memoráveis como o banho de Nanny Ogg, o caixote de Greebo, a peculiar disposição de algumas rochas em Lancre ou a aplicação prática das teorias quânticas de alguns feiticeiros mais jovens - e mais deslumbrados - da Unseen University*. É certo que Lords and Ladies não terá talvez a coesão narrativa de, por exemplo, Small Gods - alguns elementos explorados na primeira metade acabam por não ter a importância devida na segunda, como Herne ou as jovens bruxas -, mas nem por isso deixa de ser uma aventura pautada pelo excelente humor de Pratchett e repleta de um sem-número de referências intrigantes e de puns bem articulados que conduzem invariavelmente à gargalhada. À semelhança do que aconteceu em Wyrd Sisters, os leitores de Shakespeare mais experientes encontrarão nestas páginas uma paródia bem montada; e os restantes decerto não deixarão de apreciar as piadas.

*Há um excelente aprofundamento do tema no conto Death and What Comes Next, de 2004

30 de outubro de 2013

Gollancz reedita Discworld em colecção hardcover

Discworld Collector's Library é o título dado pela Gollancz à nova colecção que reedita, em formato hardcover e com novas capas, um conjunto de livros da série Discworld, de Terry Pratchett. Esta colecção abrange os primeiros 21 livros - de The Colour of Magic a Jingo, e começa a ser disponibilizada nas livrarias do Reino Unido (e na Amazon UK) a partir de Novembro, com a reedição de Reaper Man e Mort. Seguem-se vários livros a cada mês até Agosto de 2014. 

É certo que dificilmente algum artwork em Discworld fará justiça às memoráveis capas de Josh Kirby ou mesmo às mais recentes de Paul Kidby; as novas capas, porém, nem por isso deixam de estar bastante boas - cheias de cor e a remeter para momentos ou puns das várias histórias (a de Small Gods, que pode ser vista aqui ao lado, é formidável). As capas e as datas de publicação podem ser consultadas no blogue da Gollancz.

Fonte: Gollancz

17 de outubro de 2013

Terry Pratchett: Take a protagonist from the bottom of the heap and they’ve got it all to play for (entrevista)

The Carpet People, o primeiro romance publicado por Terry Pratchett (em 1971 - tinha Pratchett 23 anos; o livro acabou por ser revisto e reeditado em 1982), vai ter uma nova edição hardcover em Novembro próximo. A propósito desse lançamento, e da publicação daquele que será o 40º livro da série Discworld, Raising Steam, Cory Doctorow (autor do best-seller internacional Little Brother) realizou uma curta mas muito interessante entrevista com o autor e satirista britânico para a Amazon UK. Alguns excertos:
Cory Doctorow: The Carpet People was your first novel, and now the fortieth book in your Discworld series is about to be published. Do you think you could have kept us in the Carpet for anything like forty books? 
Terry Pratchett: I was about to say, “No,” but right now I wonder. . . . If the idea had taken, I don’t know. I really don’t. But how would it be? People in the Carpet are more or less tribal. What would happen if I . . . You’ve got me thinking! 
(...) 
CD: One thing I’ve always enjoyed about your books with feudal settings is that it seems you get something like the correct ratio of vassals to lords. So much of fantasy seems very top-heavy. Do you consciously think about political and economic considerations when you’re devising a world?  
TP: I’ve never been at home with lords and ladies, kings, and rubbish like that, because it’s not so much fun. Take a protagonist from the bottom of the heap and they’ve got it all to play for. Whereas people in high places, all they can do is, well . . . I don’t know, actually: I’ve never been that high. If you have the underdog in front of you, that means you’re going to have fun, because what the underdog is going to want to do is be the upper dog or be no dog at all.  
CD: Damon Knight once told me that he thought that no matter how good a writer you are, you probably won’t have anything much to say until you’re about twenty-six (I was twenty at the time). You’ve written about collaborating with your younger self on the revised text of The Carpet People. Do you feel like seventeen-year-old Terry had much to say?  
TP: That’s the best question you’ve asked all day! I think that he had a go at it, and it wasn’t bad, but that when I was younger I didn’t have the anger. It gives an outlook. And a place from which to stand. When you get out of the teens, well out of the teens, you begin to have some kind of understanding: you’ve met so many people, heard so many things, all the bits that growing up means. And out of that lot comes wisdom—it might not be very good wisdom to start with, but it will be a certain kind of wisdom. It leads to better books.
A entrevista completa pode ser lida na Amazon UK.


4 de outubro de 2013

Dos deuses e dos homens, das águias e das tartarugas: a sátira religiosa de Small Gods

E se a existência de deuses - de quaisquer deuses - derivasse da crença dos seus fiéis, e não o contrário? Terry Pratchett lançou as sementes desta ideia fascinante em Pyramids, o sétimo livro da série Discworld, quando os deuses de Djelibeybi se materializaram no universo isolado do reino; mas foi em Small Gods, o décimo-terceiro livro da série (publicado em 1992), que o autor decidiu levar esta ideia até às últimas - e hilariantes - consequências numa sátira tão inteligente como afiada ao fenómeno religioso. 

Uma curta passagem sobre os hábitos de águias e tartarugas dá o mote a Small Gods - e a imagem da ave a voar nas alturas em busca de uma tartaruga para capturar e esmagar vai acompanhar toda a história, e dar forma à mais imaginativa Chekov's Gun que já li em Pratchett. De aves a caçar répteis e dos monges que cuidam da História passa-se para Omnia, reino teocrático dominado pelo culto religioso de Om e por quem de facto controla esse culto - uma rígida hierarquia de vetustas figuras simbólicas e uma Quisition (pun intended) forte, tão rigorosa na doutrina como nas práticas de tortura, dominada pelo muito pouco recomendável Vorbis. Mas do lado oposto do culto encontra-se Brutha, um jovem acólito cuja parca inteligência é compensada por uma devoção fervorosa (pela sua educação e por ser, em termos práticos, incapaz de questionar a fé) e por uma memória prodigiosa e infalível. Quando o poderoso Om se vê caído em desgraça e reduzido ao corpo de uma insignificante tartaruga, consegue apenas estabelecer contacto com Brutha - o seu último crente incondicional. Com Omnia (ou melhor: com Vorbis) decidida a converter (por força, por astúcia ou por ambas) Ephebe, nação de filósofos, eliminando a rebeldia religiosa que nasceu num tratado filosófico que defende ser o mundo um disco assente em quatro elefantes sobre a carapaça de uma gigantesca tartaruga cósmica (a religião de Omnia, ferozmente monoteísta, crê que o mundo é esférico - imagine-se!), Brutha e Om vêem-se arrastados para uma autêntica crise religiosa que atravessará mares e desertos, chamará a ira de deuses e homens e, enfim, causará, passe a expressão, uma valente barrigada de riso.

Ao pegar no tema religioso, Pratchett não toma partidos ou entra em barricadas - e vai buscar a várias religiões e mitologias elementos para dar forma, com graça e inteligência, a uma sátira exemplarmente bem construída em redor da evolução intelectual e emocional tanto de Brutha como do próprio Om, o deus aprisionado na forma de uma tartaruga. A referência à Inquisição será porventura uma das mais óbvias - no texto podem ser encontradas várias do Cristianismo, mas também do Judaísmo, do Budismo e de outras crenças. O ateísmo não ficou esquecido, como não podia deixar de ser, e os gags com os filósofos de Ephebe são notáveis. Também lugares históricos e mitológicos como a Biblioteca de Alexandria ou o Labirinto de Creta, não escapa ao olhar atento do autor; à semelhança do que já fizera noutros livros da série, Pratchett combina uma enorme variedade de alusões, ideias e referências com uma história interessante, sustentada por personagens muito bem construídas - e distorce todos esses elementos para satirizar o fenómeno religioso nos seus denominadores mais elementares, aludindo a inúmeras crenças sem se concentrar em apenas algumas. 

E o resultado é a todos os níveis excepcional, sobretudo na abordagem a um tema habitualmente bicudo. Small Gods é um dos poucos livros stand alone de Discworld, não estando enquadrado em qualquer um dos arcos narrativos que Pratchett tem desenvolvido desde 1983. Das personagens recorrentes apenas a Morte e o Bibliotecário aparecem, e este último de forma um tanto ou quanto fugaz. É certo que uma leitura prévia do já mencionado Pyramids poderá contribuir para um melhor enquadramento de algumas passagens e localizações da narrativa, e o conhecimento dos livros anteriores (em ordem de publicação) trará uma maior familiaridade com o estilo de Pratchett; mas nenhuma dessas leituras é fundamental para se apreciar o humor ímpar de Pratchett, a sua excelente prosa e, claro, uma boa história num universo ficcional fascinante. Por todas estas características, Small Gods surge com alguma frequência recomendado como um bom "ponto de entrada" em Discworld, mundo que conta já com com 39 livros publicados - o 40º está para breve - e vários contos; e é também considerado por muitos como um dos melhores livros da série. Estando a ler Discworld por ordem cronológica, é-me impossível determinar se Small Gods será, de facto, um dos melhores da série; mas que é um livro soberbo, disso não tenho a menor dúvida - e não o poderia recomendar mais.

30 de agosto de 2013

Terry Pratchett em formato curto: os contos de Discworld na antologia A Blink of the Screen: Collected Shorter Fiction

No final do ano passado foi publicada aquela que, se não for a antologia definitiva da ficção curta de Terry Pratchett, não andará longe: A Blink of the Screen: Collected Shorter Fiction. Com introdução de A. S. Byatt (excelente, por sinal), esta antologia reúne praticamente toda a ficção curta escrita e publicada por Terry Pratchett desde os anos 60 até ao presente, englobando tanto histórias passadas no universo ficcional de Discworld como outras, muito diversas. No que às de Discworld diz respeito, no início do ano escrevi aqui sobre uma delas, The Sea and Little Fishes, publicada na antologia Legends que Robert Silverberg editou em 1999; mas há outras, e são essas que merecem atenção hoje:

Troll Bridge: Em 1991, por ocasião do centenário do nascimento Tolkien, Martin H. Greenberg editou a antologia comemorativa After the King: Stories in Honor of J. R. R. Tolkien, com contos de fantasia de vários autores consagrados no género. O contributo de Terry Pratchett foi um surpreendente conto sobre a nostalgia intitulado Troll Bridge - oportuno não só no tema, se pensarmos na obra tolkieniana, mas também na velha história de Bilbo e dos trolls. Entre as piadas e os puns tão ao estilo do excelente humor de Pratchett, Troll Bridge é uma curiosa história sobre... a nostalgia. Cohen the Barbarian, o velho guerreiro que figurou ao lado de Rincewind em The Colour of Magic e The Light Fantastic, vai no seu cavalo (falante) em busca da última ponte onde sabe ainda habitar um troll - um troll a sério, daqueles que ataca quem ousa atravessar o seu domínio -, para o matar, cumprindo assim uma vontade antiga do seu pai. Mas o encontro com o troll, um monstro de pedra chamado Mica que vive com a sua família debaixo da ponte, acaba por não correr exactamente como previsto; e juntos, entre questões familiares (do troll) e os problemas da velhice (do bárbaro), acabam por recordar um passado que deixou de existir, obliterado pela passagem inexorável do tempo e pela marcha do progresso. Quem lê Pratchett (e Discworld em particular) estará decerto habituado à forma como o autor pega nas convenções e nos clichés para os subverter de forma inteligente e sempre bem humorada - o que é feito com mestria em Troll Bridge, mas não apenas com o propósito de fazer rir. Entre as gargalhadas proporcionadas pela situação e pelas deixas da personagens, Troll Bridge constrói uma reflexão sempre interessante sobre a nostalgia e aquele passado que parece sempre mais solarengo que o presente. 

Theatre of Cruelty: Na introdução a Theatre of Cruelty, Pratchett começa por admitir que o conto terá mais impacto a quem estiver familiarizado com as representações tradicionais de marionetas conhecidas em Inglaterra como "Punch & Judy" (que pela sua natureza define, não sem ironia, como a origem da slapstick comedy). A verdade é que mesmo quem desconhecer este espectáculo não deixará de apreciar o conto, publicado originalmente em 1993 na revista Bookcase, da cadeia de lojas W.H. Smith - nem que seja pelo humor habitual de Pratchett (a reflexão de Vimes é formidável) ou por ver, por um pequeno momento, a Night Watch de Ankh-Morpork em modo crime scene investigation. Um corpo é encontrado morto, e Carrot, o mais jovem elemento da Night Watch, vai investigar o caso recorrendo à lógica muito peculiar (e simples) do seu raciocínio. E, claro, em pouco mais de mil palavras há espaço mais do que suficiente para dar a volta a algumas práticas policiais que tantas e tantas vezes encontramos em policiais (sejam em que formato for).

Death and What Comes Next: Aquilo que esta curta história tem de mais singular é o facto de ter sido escrita para um videojogo: TimeHunt (2004). Death and What Comes Next é uma história muito curta que, tal como o título indica, tem a Morte - perdão, a morte - como protagonista e envolve uma discussão desta com um filósofo. Este, por seu lado, procura escapar à temível foice - e para isso recorre à física quântica e à teoria dos vários universos para demonstrar (ou tentar) que a morte não será, afinal, tão certa quanto se pensa. Afinal, noutro universo, o filósofo continuará vivo. Claro, esta é a morte de Discworld - certa é uma das suas qualidades inabaláveis, tal como a sua argumentação. E essa levará a uma conclusão surpreendente, e envolverá mesmo um certo gato numa certa caixa...

A Collegiate Casting-Out of Devilish Devices: Publicada originalmente no The Times Higher Education Supplement em 2005, A Collegiate Casting-Out of Devilish Devices decorre, como não podia deixar de ser, na Unseen University de Ankh-Morpork. Toda a história consiste numa reunião do corpo docente da Universidade, indignado pela visita iminente de A. E. Pessimal (personagem introduzida em Thud!, de 2005), que Lorde Vetinari, governante da cidade, nomeou como Inspector Universitário. É um texto curto mas hilariante do princípio ao fim, e uma sátira mordaz à Academia, ao ensino, e, como não podia deixar de ser, aos comités e à sua aparente inutilidade (Pratchett admite a inspiração do tempo em que presidiu à Sociedade de Autores). Ainda que uma parte do humor de A Collegiate Casting-Out of Devilish Devices derive da familiaridade do leitor para com os elementos da Unseen University, quem não tiver ainda lido qualquer história com Ridcully, o Reitor ou o Bibliotecário não deixará decerto de apreciar o sarcasmo que premeia todo o texto, assim como uma crítica um tanto ou quanto subtil ao ensino - e, claro, ao funcionamento muito próprio da Unseen University.

6 de agosto de 2013

Discworld: revelada capa de Raising Steam

Uma excelente novidade para o regresso das (sempre curtas) férias: foi hoje revelada a capa do próximo livro de Terry Pratchett no universo de Discworld: Raising Steam. Este livro, o 40º da série iniciada em 1983, tem data de publicação marcada para 24 de Outubro.