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4 de setembro de 2014

This happening world (22)

Recuperando uma notícia já antiga: depois de ter demonstrado interesse no projecto, o SyFy Channel confirmou a produção da adaptação de Childhood's End, de Arthur C. Clarke, para uma mini-série televisiva de seis episódios, com estreia prevista para o próximo ano. A adaptação está entregue a Matthew Graham, o criador das séries Life on Mars e Ashes to Ashes, com o realizador Nick Hurran (Sherlock e Dr. Who) a estar a cargo do episódio piloto. É certo  que o facto de o projecto pertencer ao SyFy Channel obriga a uma certa dose de cepticismo - afinal, nos últimos anos o canal tem apostado nos seus filmes de série B(menos) do que na ficção científica de qualidade. Ainda assim, trata-se de Childhood's End - um clássico absoluto da ficção científica literária com mais de 60 anos, que ainda hoje se revela notável pelo seu alcance conceptual e pela sua trama emotiva. 

Can Automata's rise of the robots bring science fiction to life? A pergunta é de Ben Child no The Guardian, mas o título é enganador: a verdadeira pergunta é can Automata (...) finally deliver an intelligent robot movie? Diz quem já viu que Robot and Frank fez isso mesmo, e até ver não terei motivos para não acreditar; mas a verdade é que tudo em Automata me pareceu demasiado familiar para causar um entusiasmo genuíno. Enfim, é esperar para ver. 

E a propósito de robots (de cyborgs, se quisermos ser rigorosos): Margot Robbie (The Wolf of Wall Street) poderá ser a protagonista da adaptação live action de Ghost in the Shell, que está a ser produzida pela Dreamworks (com realização de Rupert Sanders, cujo currículo como realizador de longas-metragens inclui apenas... Snow White and the Huntsman). O que equivale a dizer: Margot Robbie irá interpretar o papel da icónica Major Motoko Kusanagi. Whitewashing à parte, a notícia tem relevo sobretudo por confirmar que o projecto live action de Ghost in the Shell não conheceu a mesma sorte que o de Akira, afortunadamente perdido no development hell de Hollywood - a readaptação vai mesmo avançar. Uma vez mais: considerando que o (excelente) filme de Mamoru Oshii, para além de ser uma obra-prima, permanece actual e pertinente, é difícil pensar em projecto mais desnecessário entre a mais recente fornada de remakes estreados e anunciados. 

Mas nem tudo são más notícias no que a remakes diz respeito: a Capcom encontra-se a adaptar para a geração actual de consolas (e para PC) a versão remasterizada do clássico Resident Evil, que à época foi desenvolvida apenas para a consola GameCube. Para quem, como eu, nunca teve a oportunidade de jogar o original na primeira Playstation e viu o remake (mais a prequela Resident Evil 0) ficar bloqueada pela exclusividade obtida pela Nintendo para a GameCube, isto só pode ser uma excelente notícia - mesmo que chegue com mais de uma década de atraso. 

Fontes: io9 / The GuardianPolygon

2 de setembro de 2014

Lucy: Transcendência acidental

Todos nós já sabemos que a velha ideia de que os seres humanos apenas utilizam dez por cento da sua capacidade cerebral não passa de um mito pseudo-científico - o que certamente não fará quaisquer favores à premissa de Lucy, o novo thriller de ficção científica do francês Luc Besson, que procura explorar a transcendência humana (é um dos temas em voga neste ano) e outras questões filosóficas sobre a Humanidade, a vida e o universo a partir daquela ideia. É certo: ouvi-la pela primeira vez revela-se um tanto ou quanto estranho, mesmo quando o discurso vem de Morgan Freeman. Mas Luc Besson, desconhecendo ou simplesmente não se importando com a debilidade do conceito central, pede ao espectador que faça o mesmo, e que o acompanhe numa viagem alucinante ao seu melhor estilo.

E a verdade é que quem o fizer - quem aceitar o filme e a sua premissa nos seus próprios termos - decerto encontrará pouco de que se queixar durante os 90 minutos que vão do início ao fim.

De forma muito sucinta (com pequenos spoilers), a trama acompanha Lucy (Scarlett Johansson), uma jovem norte-americana a viver em Taiwan que se vê envolvida no negócio de drogas de um gang sul-coerano a operar no território. O envolvimento dá-se por acidente - o seu namorado envolve-a contra a sua vontade ao fazê-a entregar uma pasta a um hotel, para um homem chamado Jang (Min-sik Choi), mas tudo corre pelo pior a partir do primeiro momento. 


Retida pela máfia sul-coreana, Lucy descobre que a pasta contém quatro pacotes de uma droga experimental designada como CPH4 - e vai acordar algum tempo depois com um desses pacotes alojado no abdómen, pronta para ser enviada para a Europa com três outros "correios". Mas quando um dos subalternos de Jang a agride, o pacote que transporta rompe-se e a droga começa a ser absorvida pelo seu corpo. E, nesse momento, tudo muda.


A absorção da CPH4 começa a desbloquear as capacidades do seu corpo e do seu cérebro, expandindo a sua percepção para níveis inimagináveis e dando-lhe total controlo sobre a sua memória, o seu metabolismo e sobre tudo o que a rodeia - com capacidades telepáticas e telecinéticas incluídas. Procurando descobrir o que se passa consigo, Lucy vai contactar o professor Norman (Morgan Freeman), cuja investigação na área cerebral poderá talvez ajudá-la a resolver a sua situação. E contacta ainda Pierre del Rio, um capitão da polícia francesa, para que ele o ajude a recuperar os outros três pacotes de CPH4, com o objectivo levar a sua evolução acelerada até às últimas consequências - mesmo com Jang no seu encalço.


Se Lucy se consegue elevar acima das debilidades evidentes da sua premissa, isso deve-se em grande parte ao desempenho seguro e credível de Scarlett Johansson. Numa época em que Zoe Saldana parece apostada em reinvindicar o título de rainha dos blockbusters de ficção científica, Johansson vai mostrando, através de uma sequência de desempenhos notáveis, por que motivo o seu rosto é é hoje em dia um dos mais visíveis e talentosos que o género tem no grande ecrã (é acompanhar a passagem da talentosa Natasha Romanoff do Marvel Cinematic Universe para a não-humana de Under the Skin, até à frágil Lucy, capaz de transcender a sua humanidade por acidente). A transição de faz da Lucy desorientada e assustada do primeiro acto para uma Lucy sobre-humana e cada vez mais distante é soberba, e Johansson transposta todo o filme com facilidade e charme mesmo nos momentos que mais esticam a suspensão da descrença.


E se a presença e o desempenho de Johansson dão credibilidade à trama, a realização segura e cinética de Besson dão a todo o filme uma energia muito própria, tanto pelo ritmo que imprime às inevitáveis sequências de acção como pelas opções pouco convencionais que emprega para contar a sua história e sublinhar alguns momentos. A trama do primeiro acto, por exemplo, surge encaixada de forma inusitada entre imagens de vida selvagem que parecem retiradas de documentários da National Geographic - todo o build-up com a cena das chitas a caçar é excepcional pela forma como destaca o carácter indefeso da Lucy original e como estabelece um paralelo invulgar entre a aula do professor Norman, na qual ele explica a evolução e o propósito da vida. A acção, quando surge, é explosiva - ao melhor estilo de Besson, de resto, com uma perseguição alucinada em Paris e várias sequências de combate violento que ora são levadas até ao final, ora são subvertidas pelos poderes de Lucy. 


É certo que, chegados ao final, será talvez impossível não reparar que Lucy tinha todos os elemementos necessários para ser um filme muito mais profundo, complexo e emotivo do que foi - mesmo mantendo a premissa frágil. O drama de alguém que consegue aceder às suas memórias mais profundas e que alcança a empatia absoluta é aludido em breves momentos (como no encontro de Lucy com a sua colega de casa, ou, naquela que será talvez a melhor cena do filme, quando telefona à mãe a partir do hospital), mas nunca levado às suas últimas consequências - e é bom de ver que seria um tema fascinante de explorar. A necessidade de contacto com alguém terreno e "normal", sublinhada por uma deixa fugaz de Lucy para del Rio, foi também uma possibilidade aludida, mas descartada em prol talvez de alguma acção mais directa e visceral (convenhamos: a cruzada de Jang acaba por ser mesmo o ponto mais fraco do filme, por mais bem montada que esta - e está - a acção). Há na odisseia pessoal de Lucy vários elementos que permitiriam a Besson construir um filme mais emotivo, mais trágico até, mas que nunca são devidamente aproveitados - surgem quase como memorados a indicar que a ideia está lá, mas que o ponto não é esse.


A pergunta acaba por se impor: qual é o ponto, afinal? A resposta surge logo no início, na palestra do professor Norman - e é essa visão do que é a vida que vai nortear alguém que está a transcender tudo o que entendemos por vida. Feitas as contas, a resolução acaba por sair talvez demasiado críptica, algo perdida entre o frenesim da acção e as alusões que Besson coloca ao longo da trama, ciente das convenções e das ideias do género em que situa o seu filme (2001 é revisitado aqui várias vezes, nem sempre de forma óbvia; e está longe de ser o único), e as várias pistas que deixa para possibilidades alternativas acabam por se revelar algo frustrantes por nunca serem concretizadas em pleno. Ao longo dos seus quase 90 minutos, porém, Lucy não deixa muito espaço para reflectir sobre tais possibilidades - entre o drama da protagonista, a acção enérgica e as imagens evocativas que Besson conjura, o filme revela-se intenso e divertido, e o encantamento (para quem, lá está, consegue aceitar as limitações da premissa) mantém-se sem esforço. 07/10

Lucy (2014)
Argumento e realização de Luc Besson
Com Scarlett Johansson, Morgan Freeman, Min-sik Choi e Amr Waked
89 minutos

27 de agosto de 2014

Dungeons & Dragons, parte 1: Tempestade perfeita

Um ano antes de a primeira parte da trilogia The Lord of the Rings, The Fellowship of the Ring, estabelecer uma fasquia praticamente impossível de superar pela fantasia épica cinematográfica (e pelas adaptações da fantasia literária, já agora), houve um outro filme, um tanto ou quanto obscuro, que se encarregou de resumir em 107 minutos todos os disparates que o género conheceu na suas várias aparições no grande ecrã. Para os mais distraídos, esse filme foi Dungeons & Dragons, uma aventura de fantasia baseada de forma muito vaga naquele que será porventura o mais célebre de todos os jogos de personagens de pen & paper. O estrago que o filme terá feito em futuras adaptações dos universos ficcionais de outros jogos será talvez difícil de estimar*, mas não terá decerto feito quaisquer favores tanto aos jogadores de D&D como a quem apenas conhecia o jogo pela sua presença algo fugaz na cultura popular, que há catorze anos não se encontrava dominada pela cultura geek

Isto porque, para todos os efeitos - e não há mesmo outra forma de dizê-lo -, Dungeons & Dragons é um daqueles raros filmes que se revela a tempestade perfeita, no qual um espectador com um módico de seriedade não consegue vislumbrar, por um segundo que seja, algo acertado. Não há um elemento razoável no filme - algo capaz de redimir a empreitada e de mitigar, por pouco que seja, o desastre. Nada disso: o despiste começa no curto prólogo com a mais genérica das narrações a introduzir o sistema de classes do mundo (Izmir, um nome igualmente genérico), e prolonga-se num choque em cadeia de proporções épicas até ao final insosso e previsível desde o primeiro momento.


Dizer que o worldbuilding de Dungeons & Dragons é preguiçoso é um insulto ao pecado mortal: todo o enredo parece levantado directamente de algum manual do género Fantasy for Dummies com uns pozinhos de ideais de uma Revolução Francesa de quinta categoria: Izmir vive dividido entre os privilegiados Feiticeiros, que detém o poder, e o povo ignorante, semi-escravizado (o papel de outras raças, como os elfos e os anões - cada uma com o seu token character - ou todas as outras que aparecem numa cena decalcada da cantina de Mos Eisley em versão franciscana-fantástica, esse, permanece um mistério). A Imperatriz, jovem e ingénua, quer libertar o povo oprimido; o feiticeiro mau quer manter o status quo; e dois ladrões improváveis vão aliar-se a uma feiticeira novata (e a uma elfa e a um anão que, enfim, importam tão pouco que se desaparecessem a sua ausência não seria notada) para, como é evidente, resolver a embrulhada. 


Pelo meio há dragões - que aparentemente podem ser controlados pela imperatriz, e que o feiticeiro mau quer controlar (claro), mas que ninguém sabe muito bem de onde vêm, para onde vão, e que impacto têm naquele mundo. E há masmorras, como não podia deixar de ser - o título do filme, afinal, só será publicidade enganosa para os mais distraídos. Há longas sequências de masmorras tão decalcadas de Indiana Jones que o espectador que assista ao filme no conforto da sua sala quase se sentirá tentado a trocar o DVD pelo de Raiders of the Lost Ark (ou mesmo a interromper o filme para ir jogar Tomb Raider na consola mais próxima), com todas as armadilhas obrigatórias e mais algumas, sempre desinspiradas.


A transportar tudo isto está um elenco onde em circunstâncias normais se encontraria talento - quanto mais não seja em Jeremy Irons e em Thora Birch. Mas, convém lembrar, estamos em Dungeons & Dragons: a direcção de actores é inexistente (ou está embriagada), e os actores, decerto com o cheque nos bolsos e bem cientes da pobreza do guião, optaram ou por não se empenhar de todo (Birch) ou por se empenhar em demasia (Irons). A Imperatriz Savina de Birch é o aborrecimento em pessoa, sempre monocórdica e enjoada; e o Profion de Irons é tão over the top que se revela praticamente indescritível - o seu desempenho assume quase a forma de uma performance. Pelo meio, os dois protagonistas (Justin Whalin e Marlon Wayans) surgem estereotipados e com deixas terríveis (com o Snails de Wayans a ser irritante ao extremo na sua imitação rasca da personagem de Chris Tucker em The Fifth Element), a feiticeira Marina de Zoe McLellan revela-se uma Hermione Granger que não vai além do "Satisfaz Menos" e o Damodar de Bruce Payne, o capataz de Profion, está sempre empenhado em conquistar o prémio de vilão mais incompetente da fantasia cinematográfica. 


A banda sonora genérica, a fotografia indigente e os efeitos especiais terríveis (sobretudo para um filme cuja estreia saiu "encaixada" entre portentos visuais como The Matrix e The Lord of the Rings) são os últimos pregos num autêntico caixão de contraplacado - e tornam o orçamento de 45 milhões de dólares num enigma absoluto. E é isto, Dungeons & Dragons - a transposição para o grande ecrã de um dos mais fascinantes e duradouros jogos de fantasia alguma vez criados, num filme a todos os níveis terrível. Mau guião, mau enredo, maus diálogos, más personagens, mau universo ficcional, maus efeitos especiais, má música - nada ali é salvável. Não merece avaliação nem pelo esforço - pois este, convenhamos, foi inexistente. 02/10

Dungeons & Dragons (2000)
Realizado por Courtney Solomon
Guião de Topper Lillien e Carroll Cartwright
Com Jeremy Irons, Thora Birch, Bruce Payne, Justin Whalin, Marlon Wayans, Zoe McLellan e Robert Miano
107 minutos


* Estará longe de ser uma extrapolação pacífica, mas talvez mereça o risco: só nos últimos dois anos - catorze anos depois de Dungeons & Dragons - os projectos de realizar filmes sobre os universos ficcionais de jogos de grande popularidade como Warcraft e Magic: the Gathering começaram a ser de facto desenvolvidos. É claro que a causalidade é improvável ao ponto da inverosimilhança, mas ainda assim: apesar de Magic estar hoje no pico da sua popularidade, os anos de ouro de Warcraft, esses, são hoje uma memória. 

26 de agosto de 2014

Dungeons & Dragons, parte 2: Comédia acidental

Numa época em que o SyFy Channel fez do camp o seu sustento e elevou para o estatuto de culto todo um conjunto de filmes-catástrofe (em ambos os sentidos) que, para todos os efeitos, são ficção científica televisiva de Série F ou algo que lhe valha, fará algum sentido repescar Dungeons & Dragons e analisá-lo a partir de outro ponto de vista. O fenómeno, aliás, é já antigo, e antecede o próprio Ed Wood, mestre na arte: os tais filmes que, de tão maus que são em todos os aspectos que se possam conceber, se tornam em objectos fascinantes e irresistíveis. Como quem abranda para assistir ao resultado do desastre na auto-estrada. Neste campo, e no que à fantasia cinematográfica diz respeito (um género onde as obras-primas nunca foram abundantes), será talvez difícil encontrar rival para o Dungeons & Dragons do contrariado Courtney Solomon: por mais interessante que seja o exercício de fazer algo propositadamente mau, conceber tamanho desastre por acaso é um facto tão extraordinário que acaba por ter mérito.

Invertamos, portanto, a escala: à luz dos filmes-tão-maus-que-se-tornam-clássicos, Dungeons & Dragons é um portento - um cocktail improvável e explosivo de tudo o que um filme pode ter de mau elevado à décima potência. Mas que acaba por se revelar num caso interessantíssimo de comédia acidental pelo empenho do seu elenco, apostado em disparatar tanto quanto possível. Para quem não acreditar, aqui fica a "prova A":



Descontemos os efeitos especiais miseráveis que animam o dragão: nesta curta cena, logo nos primeiros minutos do filme, vemos Jeremy Irons no seu mais perfeito modo ham & cheese: descrever o seu desempenho como exagerado passa por eufemismo. Mas é mesmo isso que torna o seu Profion num vilão tão memorável: até a sua gargalhada maléfica, derradeira imagem de marca de qualquer vilão que se preze, surge numa caricatura tal que Bruce Payne, ao seu lado, mal consegue conter o riso. O registo mantém-se constante ao longo dos 107 minutos do filme: caricato, disparatado e irresistível. Em suma, e aludindo às palavras do próprio: o inverso daquilo que Alec Guiness fez em Star Wars em termos de gravitas, mas de uma forma incomparavelmente mais divertida.


O resto do elenco não ajuda, note-se: a apatia de Thora Birch no papel de Imperatriz Savina e a estranheza dede Bruce Payne como Damodar (é um desempenho difícil de descrever por ser ao mesmo tempo tão morto e tão exagerado) acabam por reforçar a veia cómica e over the top de Profion. O que se nota especialmente quando entram em cena os comic reliefs do filme: Snails (Marlon Wayans) e o anão Elwood (Lee Arenberg) esforçam-se nos seus gags e nas suas imitações grosseiras, mas nunca conseguem alcançar o patamar cómico do vilão. Convenhamos, porém, que em momento algum o guião ajudou: para além dos diálogos pedestres e dos clichés martelados, ainda produziu momentos tão bizarros que só podem funcionar como comédia.


Quando juntamos a este caldo efeitos especiais mais fracos que os de qualquer produção televisiva de orçamento médio (daquela época) e um mundo ficcional construído às três pancadas e sem qualquer vislumbre de substância e de complexidade, o resultado  só pode ser um desastre - mas um desastre tornado hilariante pelo ridículo das suas situações e pelo exagero das suas persoangens. Levado a sério, Dungeons & Dragons é um fracasso inapelável; mas se encarado com humor, revela-se numa das mais inspiradas comédias acidentais da memória recente, um clássico camp que quase podemos descrever como o The Room da fantasia cinematográfica. Que o tenha feito com o título de uma das mais importantes marcas registadas do género acaba por tornar tudo ainda mais surreal. -09/-10

Dungeons & Dragons (2000)
Realizado por Courtney Solomon
Guião de Topper Lillien e Carroll Cartwright
Com Jeremy Irons, Thora Birch, Bruce Payne, Justin Whalin, Marlon Wayans, Zoe McLellan e Robert Miano
107 minutos

21 de agosto de 2014

Automata: Primeiro trailer

Será talvez difícil para alguém com um conhecimento razoável da ficção científica literária e cinematográfica ver o primeiro trailer de Automata, o filme do realizador espanhol Gabe Ibañez com António Banderas no papel principal, sem sentir que está perante um conjunto de ideias já muito exploradas pelo género num formato ou noutro - numa mistura das duas curtas Second Renaissance do universo ficcional de The Matrix com Blade Runner e Ghost in the Shell (e com mil-e-um outros filmes e livros que abordaram temáticas similares ou aproximadas), bem temperadas com as Leis da Robótica de Asimov e com uma estética devastada próxima de um District 9. Mas tal mistura, por derivativa que (aparentemente) seja, nem por isso deixa de ser curiosa; e é bem possível que Automata se possa revelar um filme independente bastante interessante, capaz de trazer de volta para a ribalta um dos temas mais antigos e populares da ficção científica.

Automata ainda não tem data de estreia prevista. Abaixo, o trailer.



Fonte: The Verge

19 de agosto de 2014

Guardians of the Galaxy: Aventura vintage

Talvez seja seguro afirmar que a space opera está em franco ressurgimento na ficção científica contemporânea, regressando para o topo do género com o qual tantas vezes se confunde (ou é confundida, melhor dizendo). Na literatura, Ancillary Justice, de Ann Leckie, conquistou tanto a crítica como o público, tornado-se aos poucos numa força imparável nos prémios da ficção de género em 2014; ao mesmo tempo, séries como Expanse, de James S. A. Corey e Culture, de Iain M. Banks, gozam de uma popularidade invejável (com a primeira a ter até uma adaptação televisiva projectada, pelo SyFy Channel). Nos videojogos, e depois do sucesso avassalador de Mass Effect e do êxito de nicho de EVE Online, os próximos tempos parecem preparar-se para celebrar o regresso dos space sims, um género quase votado ao esquecimento nas últimas duas décadas, recuperado pelo crowdfunding em títulos tão arrojados como Star Citizen, Elite: Dangerous e No Man's Sky. E no cinema, as mais clássicas space operas estão de volta, com Star Trek em alta após dois filmes bem sucedidos nas bilheteiras e com o hype em redor do próximo episódio de Star Wars e dos planos da Disney para a franchise a roçarem já o insuportável. Colocadas as coisas neste contexto, parecerá talvez segura a aposta da Marvel em Guardians of the Galaxy, adaptando para o grande ecrã a recente reimaginação de 2008 de um título mais antigo; mas a verdade é que reduzir o sucesso do filme às circunstâncias do género e do fandom acaba por ser um tanto ou quanto redutor.


Isto porque, para todos os efeitos, a aposta foi de facto arriscada - em parte também pelo mesmo contexto. Se é certo que o Marvel Cinematic Universe não transporta em si a seriedade e a solenidade que têm sido características da produção cinematográfica mais recente da rival DC, nem por isso, contudo, deixa a longa-metragem de James Gunn de ser um objecto dissonante na continuidade de filmes da Marvel: o humor assume desde os primeiros momentos um lugar de destaque na construção da narrativa, dando a todo o filme um tom mais ligeiro e extraordinariamente refrescante nos dias que correm, marcados pelo cinzentismo da ambiguidade distópica.


De certa forma, acaba por ser essa opção pela ligeireza e pela diversão que acaba por elevar este Guardians of the Galaxy de James Gunn e de o tornar num filme imperdível, notável a praticamente todos os níveis. No tom ouvem-se os ecos das aventuras cinematográficas de outros tempos, bem ritmadas e repletas de gags e de situações impossíveis resolvidas com alguma improvisação e com muito humor - como vimos, deliciados, em clássicos da aventura como Indiana Jones, ou em clássicos da ficção científica como The Fifth Element (que, creio, está mais próximo de Guardians do que o inevitável Star Wars). Heróis e vilões encontram-se muito bem separados, mesmo quando os primeiros têm origens que são tudo menos nobres (os rogues, afinal, também são um clássico do género).


Estes ecos vintage, de outros tempos, surgem reforçados pela surpreende veia nostálgica do filme, muito bem ancorada na personagem de Peter Quill/Star-Lord (Chris Pratt num desempenho memorável, em simultâneo protagonista e comic relief). Há na sua nave, a Milano, toda uma série de memorabilia extraída dos anos 80 para a civilização galáctica do futuro (em contar, claro, com as inúmeras referências pop que faz ao longo do filme, em diálogos tão inspirados como divertidos). Com o artefacto mais importante a ser o seu walkman com a cassete Awesome Mix vol. 1, que serve de pretexto à espantosa banda sonora pop-rock de raízes punk, glam e blues (entre outras), onde figuram nomes como David Bowie, Blue Suede, Jackson 5, Marvin Gaye e The Runaways. Longe de ser um aspecto meramente complementar do filme, a banda sonora é responsável em larga medida pelos tais ecos vintage e por conferir a toda a trama uma energia muito própria, única na ficção científica contemporânea.


E depois temos as personagens, claro - com Guardians of the Galaxy a apresentar aquele que será talvez o melhor elenco de todo o Marvel Cinematic Universe. No que diz respeito aos protagonistas reais, a surpresa vai para o Drax de Dave Bautista, o wrestler profissional aqui tornado num inesquecível colosso deadpan de vocabulário elaborado. A Gamora de Zoe Saldana revela-se competente q.b., com uma excelente química com o resto da equipa - ainda que fique a sensação de que o guião não a deixou ir mais longe. Mas quem rouba o espectáculo, mais até do que Chris Pratt, são as duas personagens geradas por computador: Rocket e Groot, a quem Bradley Cooper e Vin Diesel emprestaram as respectivas vozes para construírem uma dupla memorável.


No entanto, perante uma equipa de heróis tão consistente e perante um conjunto notável de personagens secundárias (onde figuram nomes como John C. Reilly, Glenn Close e Michael Rooker, este numa versão espacial do seu Merle de The Walking Dead), será talvez impossível não reparar como um dos calcanhares de Aquiles do filme acaba por ser os vilões. Não por culpa dos actores, entenda-se: há em Karen Gillan, Lee Pace e Josh Brolin talento mais do que suficiente para muitos vilões em muitos filmes, e isso nota-se em alguns momentos. No entanto, o Thanos de Brolin aparece quase só de passagem (ainda que seja uma aparição relevante), e a Nebula de Gillan surge muito desaproveitada. Resta o Ronan the Accuser de Lee Pace, com uma motivação pouco sustentada e sem aquele carisma exagerado que talvez lhe permitisse erguer-se acima dos clichés da sua personagem (como acontece com o magnífico Zorg de Gary Oldman em The Fifth Element). O seu momento de glória naquele inesperado confronto com Star-Lord, quase no final do filme, não é suficiente para resgatar a personagem.


Já a outra fraqueza de Guardians of the Galaxy acaba por se revelar bem mais problemática do que os seus vilões. Por mais "fora do baralho" que seja, Guardians integra o Marvel Cinematic Universe - e isso nota-se mais do que seria talvez desejável para um filme que se revela tão refrescante em tantos momentos. Com toda a sua ligeireza e todo o seu humor, o filme nunca consegue sair do espartilho do franchising, sublinhado pelos ganchos evidentes à sequela (na prática, o filme é uma origin story de duas horas) e reforçado pela integração numa continuidade mais vasta, que emerge nas aparições de Thanos e do Collector (já referidos nas cenas pós-créditos de The Avengers e Thor 2: The Dark World, respectivamente) e que se manifesta de forma definitiva no MacGuffin que serve de pretexto a toda a trama: a Infinity Stone.


Em última análise, Guardians of the Galaxy acaba por ser mais revolucionário no contexto do Marvel Cinematic Universe do que na ficção científica em geral - com todo o encantamento do seu worldbuilding e todo o charme do seu tom retro, acaba por não ser mais do que uma engrenagem na máquina cinematográfica do universo partilhado da Marvel. Uma engrenagem glorificada, é certo, mas ainda assim uma engrenagem, um pequeno ponto de algo mais vasto e não o ponto de partida para algo novo e irresistível, capaz de se tornar numa força cultural como Star Wars conseguiu nos anos 70; e também por isso nunca será comparável ao clássico de George Lucas. No fundo, e mais do que introduzir personagens e plot points, serve para demonstrar que neste momento a Marvel consegue vender no grande ecrã até as suas propriedades intelectuais mais secundárias.


Ainda assim, o balanço que se retira de Guardians of the Galaxy é extremamente positivo. Pode não estar aqui a revolução de que a space opera cinematográfica talvez necessite, com um equivalente à sofisticação conceptual dos universos literários de Hyperion, Culture ou ao novíssimo Imperial Radch, mas há muito para apreciar na sua nostalgia vintage, na ligeireza que recupera de outros tempos e que tanta falta faz nestes tempos de distopia e grimdark, e no carisma bem humorado dos seus heróis. Com uma componente visual exemplar, uma banda sonora duradoura (até porque testada pelo tempo) e uma mão-cheia de personagens memoráveis, Guardians of the Galaxy é sem dúvida o grande blockbuster deste Verão - e se é uma pena que lhe falte autonomia para vôos mais altos, nem por isso deixa de ser um exemplo perfeito do mais puro, despretensioso e nostálgico entretenimento. 8.2/10

Guardians of the Galaxy (2014)
Realização de James Gunn
Argumento de Nicole Perlman e James Gunn
Com Chris Pratt, Zoe Saldana, Dave Bautista, Bradley Cooper, Vin Diesel, Lee Pace, Karen Gillan, Michael Rooker, Josh Brolin, Glenn Close, John C. Reilly, Benicio Del Toro e Djomon Hounsou
121 minutos

(nota: texto editado para corrigir uma gralha e dois disparates gramaticais)

16 de agosto de 2014

James Cameron (1954 - )

É bem possível que James Cameron fique para a história como o realizador que criou os maiores sucessos de bilheteira da história do cinema - os recordes milionários estabelecidos por Titanic em 1997 só foram batidos por Avatar em 2009. Mas a filmografia do realizador canadiano é mais do que os seus sucessos de bilheiteira, e o contributo que deu para a ficção científica cinematográfica dos últimos 30 anos é praticamente incomparável. Em 1984 fez estrear Terminator, sobre um andróide assassino (Arnold Schwarzenegger) enviado de um futuro pós-apocalíptico para o presente com o objectivo de eliminar Sarah Connor (Linda Hamilton), mãe daquele que será o líder da rebelião humana contra as inteligências artificiais da Skynet, que quase erradicaram a Humanidade; sete anos mais tarde deu continuidade à história em Terminator 2: Judgment Day, colocando o antigo vilão no papel de herói, e criando um novo terminator, o célebre T-1000 de Robert Patrick.

Cinco anos antes, em 1986, realizou uma incursão ao universo ficcional criado por Ridley Scott no final da década de 70 com Alien; compreendendo que repetir a atmosfera do original, optou pela via da ficção científica militar num filme de acção tenso como poucos. O resultado foi Aliens, um dos raros casos em que a sequela, nas mãos de outro realizador, se revela capaz de fazer justiça ao filme original. E entre Aliens e Terminator 2 houve ainda tempo para The Abyss, onde conseguiu explorar, num contexto de ficção científica, uma das suas grandes paixões: a exploração do fundo do mar (a título de exemplo, em 2012 desceu sozinho num submersível ao fundo da Fossa das Marianas).

Após mais de uma década afastado do grande ecrã (dedicou-se, entre outros projectos, à série televisiva Dark Angel), regressou em 2009 com Avatar, um êxito estrondoso que pulverizou recordes de bilheteira em todo o mundo e revolucionou as tecnologias de motion capture e que relançou toda a indústria do 3-D no cinema - ainda que, diga-se de passagem, poucos filmes estreados neste formato desde então conseguem ombrear com a experiência assombrosa de Avatar em IMAX 3D. Actualmente, Cameron encontra-se a trabalhar no regresso ao mundo de Pandora em três sequelas.

James Cameron nasceu a 16 de Agosto de 1954 em Kapuskasing, na província de Ontário, no Canadá, e celebra hoje o seu 60º aniversário.

Kapuskasing, Ontario,

12 de agosto de 2014

Por motivos de força maior nesta Terça-feira não haverá o artigo habitual sobre um filme (as desventuras recentes no kafkiano Sistema Nacional de Saúde tiraram o tempo disponível para ver um filme e pare escrever sobre ele). Em princípio, para a semana escreverei sobre Guardians of the Galaxy; entretanto, deixo como leitura recomendada a crítica de Jorge Mourinha, no Ípsilon, ao Snowpiercer de Bong Joon-ho, que não tive oportunidade de ver no grande ecrã.

5 de agosto de 2014

Dark City: Simulacro noir

Quando passou por cá no ano passado, Ian McDonald referiu um detalhe curioso acerca do seu (excelente) Desolation Road: na época em que o escreveu, a ideia de um Marte terraformado parecia fazer parte do inconsciente colectivo da ficção científica literária, e vários foram os autores que exploraram o tema da colonização do Planeta Vermelho durante aqueles anos (Kim Stanley Robinson, por exemplo), sem aparente ligação entre si. Na segunda metade da década de 90 a ficção científica conheceu outro fenómeno desta natureza, mas no cinema - e nos anos que antecederam o novo milénio estreou um conjunto de filmes que exploraram, cada um à sua maneira, os limites da identidade, da realidade e da nossa percepção daquilo que é - ou poderá ser - real. Como se o tal inconsciente colectivo a que McDonald aludiu tivesse absorvido as preocupações da obra de Philip K. Dick para o projectar numa mão-cheia de longas metragens de bastante interesse: The Matrix será sem dúvida a mais conhecida, mas naqueles anos estrearam ainda The Thirteenth FloorThe Truman Show e Dark City

Dark City, realizado por Alex Proyas e estreado em 1998, é um caso especialmente interessante pela forma como, mesmo antes de as discussões na Internet se tornarem mais recorrentes, ser comparado de forma insistente com The Matrix, com frequência como se o segundo fosse uma cópia mais ou menos velada do primeiro. É certo que ambos os filmes foram filmados nos mesmos estúdios na Austrália, e que ainda que a estética de ambos seja bastante diferente (o cyberpunk estilizado dos Wachowski é muito diferente do noir quase gótico de Proyas), há várias aproximações em termos temáticos - sobretudo na forma como podemos ver ambas as tramas como alusões à Alegoria da Caverna de Platão. E, claro, há uma cena infame que é mesmo muito parecida, decerto pela coincidência do local de rodagem. 


A verdade é que esta comparação com The Matrix, de resto tão frequente (ainda hoje), não só peca por falta de rigor como também acaba por não fazer justiça a ambos os filmes: mais do que do cyberpunk existencial e messiânico dos irmãos Wachowski, Dark City aproxima-se dos temas da identidade, da realidade e da impossibilidade de determinar uma e outra, tão caros à ficção científica de Philip K. Dick. Para todos os efeitos, a noção de um simulacro de mundo, restrito e em circuito fechado, a ser alterado de acordo com os caprichos de uma entidade na aparência inescrutável, parece mais uma transposição em tons noir da premissa de The Adjustment Team - ou de vários outros contos nos quais Dick colocou em causa a percepção humana do real nos simulacros labirínticos em que encerrava as suas personagens.


E é num simulacro dessa natureza que Dark City se centra: uma vasta e soturna cidade a atravessar uma noite aparentemente eterna, da qual nenhum dos seus habitantes sabe ao certo como sair - ainda que possuam memórias de outros locais, de outros tempos. E, à meia-noite, pára tudo - cada habitante da cidade adormece de súbito, para acordar alguns momentos depois como se nada tivesse acontecido; quando, para todos os efeitos, muita coisa na sua cidade, nas suas vidas e nas suas memórias individuais e colectivas foi alterada. 


Aqui chegados, importa fazer um reparo: Dark City começa com uma narração em off que, na sua tentativa desajeitada de introduzir a trama, acaba por revelar desde logo a solução para o mistério: quem são aqueles perturbadores homens de negro, e quais são os seus motivos. É a grande fraqueza do filme, e aquilo que o impede de elevar a sua premissa pelo enigma que apresenta, e que vai sendo desvendado à medida que o enredo avança - os vilões são notáveis, e seriam excepcionais se a sua estranheza fosse sendo descoberta aos poucos, e não através de um infodump no prólogo. O que não deixa de ser uma pena: o verdadeiro início do filme, com Murdoch (Rufus Sewell) a acordar despido numa banheira, sem memórias, num apartamento estranho com o cadáver mutilado de uma mulher tem todos os ingredientes necessários para se tornar numa abertura clássica e icónica, que Proyas filma com mestria. 


Confuso, Murdoch começa a tentar encontrar respostas para o que lhe aconteceu - o que o levará a redescobrir a sua mulher, Emma (Jennifer Connely), de quem se tinha afastado ao descobrir que ela o traíra. Pelo caminho, encontra Frank Bumstead (William Hurt), um inspector da polícia que se encontra oficialmente a investigar o homicídio em série de várias prostitutas - e, a título não oficial, a tentar encontrar alguma pista para o caso que levou um colega seu à loucura. E encontra ainda o Dr. Daniel Schreber (Kiefer Sutherland), um psiquiatra misterioso que afirma ser o seu médico e que diz querer ajudá-lo - mas que parece ter uma agenda própria. E, claro, depara-se com um grupo de estranhos homens vestidos de negro, com poderes telequinéticos - para descobrir, num misto de espanto e desespero, que também possui tais poderes. 


O que se segue é um autêntico jogo do gato e do rato entre Murdoch, as suas memórias e aquelas estranhas criaturas - e tudo isto decorre numa cidade atmosférica que Alex Proyas constrói com requinte noir, recombinado a estética que tanto sucesso teve em The Crow com elementos do Metropolis de Fritz Lang (o relógio é icónico) e do Brazil de Terry Gilliam e com algumas inspirações no Akira de Katsuhiro Otomo (as influências, diga-se de passagem, foram as melhores) para criar uma autêntica cidade negra: sombria, soturna, pesada, um labirinto de pesadelo a que Scraber alude de forma excepcional com o labirinto onde coloca um rato, durante a visita de Emma. 


Com uma atmosfera excepcional, uma estética noir soberba e uma trama intrigante, Dark City merece com justiça o seu estatuto de clássico de culto - é um filme notável e memorável, ainda que o (excelente) enigma da sua premissa seja destruído nos minutos iniciais por uma introdução tão desnecessária como despropositada. Talvez lhe falte também uma personagem mesmo carismática - o Dr. Schaber de Kiefer Sutherland será o melhor que o filme apresenta no que aos desempenhos diz respeito, ainda que no geral as interpretações do restante elenco sejam suficientemente sólidas para não comprometer. De qualquer forma, merece mais do que a comparação com The Matrix: infodumps e spoilers à parte, Dark City tem força mais do que suficiente para se afirmar a título individual. 7.9/10

Dark City (1998)
Realizado por Alex Proyas
Argumento de Alex Proyas, Lem Dobbs e David S. Goyer
Com Rufus Sewel, Kiefer Sutherland, Jennifer Connely, William Hurt, Richard O'Brien, Ian Richardson, Bruce Spence e Colin Friels
100 minutos

3 de agosto de 2014

Aconteceu em Agosto:

02 de Agosto:
  • 1954 - Nasceu Ken MacLeod, escritor escocês de ficção científica mais conhecido pela sua hard SF e pelas suas space operas. Na sua bibliografia merecem destaque a série Fall Revolution (The Star Fraction, The Stone Canal, The Cassini Division e The Sky Road, publicados entre 1995 e 1999 e reeditados em dois volumes omnibus em 2009) e a trilogia Engines of Light (Cosmonaut Keep, Dark Light e Engine City, editados entre 2001 e 2003).
03 de Agosto:
  • 1904 - Nasceu Clifford D. Simak, autor norte-americano de ficção científica que se notabilizou durante a "Golden Age" do género. Venceu o prémio Hugo na categoria de "Melhor Romance" com Way Station, de 1964; a sua bibliografia inclui ainda títulos como Time and Again (1951) e Ring Around the Sun (1953), para além de inúmeros contos. Faleceu a 25 de Abril de 1988. 
06 de Agosto:
  • 1934 - Nasceu Piers Anthony (nome de baptismo: Piers Anthony Dillingham Jacob), um dos mais prolíficos autores contemporâneos de ficção e fantasia e de fantasia. Entre outras séries literárias, é o criador da saga de fantasia Xanth, iniciada em 1977 com A Spell for Chameleon e continuada desde então em 38 livros. 
  • 1966 - faleceu Cordwainer Smith (nome de baptismo: Paul Myron Anthony Linebarger), mestre de ficção curta durante a "Golden Age" da ficção científica e criador do universo ficcional conhecido como Instrumentality of Mankind, que serve de pano de fundo a boa parte dos seus contos. Scanners Live in Vain (1950), The Game of Rat and Dragon (1955), When the People Fell (1959) e A Planet Named Named Shayol (1961) são os títulos de alguns dos seus contos mais célebres. A título póstumo, os romances curtos Planet Buyer e The Underpeople, de 1964 e 1968, foram reunidos a título póstumo num volume intitulado Nostrilia, de 1975. Natural de Milwaukee, no Winsconsin, Cordwainer Smith nasceu a 11 de Julho de 1913. 
  • 1972 - Nasceu Paolo Bacigalupi, autor norte-americano de ficção científica que se estreou na ficção longa em 2009 com o romance The Windup Girl, obra vencedora dos prémios Hugo e Nébula na categoria de "melhor romance", e do Locus como "melhor primeiro romance". Bacigalupi é ainda o autor de Ship Breaker (2910) e The Drowned Cities (2012), assim como de alguma ficção curta reunida na colectânea de 2008 Pump Six and Other Stories.
07 de Agosto:
  • 1933 - Nasceu Jerry Pournelle, autor norte-americano de ficção científica que se notabilizou pela sua ficção científica militar e pelas suas colaborações regulares com Larry Niven, da qual resultaram romances como The Mote In God's Eye (1975) e Lucifer's Hammer (1977), entre muitos outros. Na sua bilbiografia pessoal incluem-se títulos como High Justice (1974), Birth of Fire (1976) e The Mercenary (1977).
09 de Agosto:
  • 1927 - Nasceu Daniel Keyes, autor de Flowers for Algernon. Faleceu a 15 de Junho de 2014.
  • 1947 - Nasceu John Herbert Varley, autor norte-americano de ficção científica, em cuja bibliografia encontramos a trilogia Gaea (TitanWizard e Demon, de 1979, 1980 e 1984), a série Eight Worlds (Steel Beach e The Golden Globe, de 1992 e 1998) e a trilogia Thunder and Lightning (Red Thunder, Red Lightning e Rolling Thunder, de 2003, 2006 e 2008). 
13 de Agosto:
  • 1946 - Faleceu Herbert George "H.G." Wells, amplamente considerado um dos fundadores da ficção científica moderna com alguns dos mais icónicos romances que o género conheceu na primeira metade do século XX: títulos como The War of the Worlds (), The Time Machine (), The Invisible Man () ou The Island of Doctor Moreau () são há muito clássicos incontornáveis da ficção científica, tendo contribuído para o estabelecimento de ideias, conceitos e convenções que fazem parte do ideário do género, com várias adaptações cinematográficas e televisivas. E algumas das suas personagens tornaram-se parte da cultura popular contemporânea, e foram trabalhadas por autores diversos numa grande variedade de histórias. H. G. Wells nasceu a 21 de Setembro de 1866.
15 de Agosto:
  • 2012 - Faleceu Harry Harrison (nome de baptismo: Henry Maxwell Dempsey), autor norte-americano de ficção científica que se consagrou em 1966 com a distopia populacional Make Room! Make Room!, adaptada para o cinema em 1973 no célebre Soylent Green. Na sua bibliografia merece ainda destaque The Stainless Steel Rat (1961), continuado em várias sequelas e também transposto para banda desenhada, e a personagem Bill, the Galactic Hero. Harry Harrison nasceu a 12 de Março de 1925. 
16 de Agosto:
  • 1884 - Nasceu Hugo Gernsback, norte-americano de origem luxemburguesa que se notabilizou sobretudo como editor - e cujo trabalho em várias revistas especializadas durante a primeira metade do século XX foi de tal forma relevante que se tornou numa das figuras fundadoras da ficção científica enquanto género literário. Em 1926 fundou a Amazing Stories, a primeira revista especializada de ficção científica, que serviu de rampa de lançamento a alguns dos mais consagrados autores que o género conheceu. Os prémios Hugo, atribuídos anualmente na World Science Fiction Convention (Worldcon) desde 1953, foram criados em sua homenagem. Hugo Gernsback faleceu a 19 de Agosto de 1967.
  • 1954 - Nasceu James Francis Cameron, realizador e produtor canadiano responsável por alguns dos maiores êxitos da história do cinema. Terminator (1984), Aliens (1986), The Abyss (1989), Terminator 2: Judgment Day (1991) e Avatar (2009) constituem o seu legado na ficção científica cinematográfica. 
18 de Agosto:
  • 1925 - Nasceu Brian Wilson Aldiss, autor, editor, antologista e crítico britânico de ficção científica. Na sua bibliografia incluem-se romances como Non-Stop (1958), The Interpreter (1960), Hothouse (1962), Graybeard (1964), e a célebre e ambiciosa trilogia Helliconia, composta por Helliconia Spring (1982), Helliconia Summer (1983) e Helliconia Winter (1955), para além de várias colectâneas de ficção curta - entre a qual se inclui o conto Super-Toys Last All Summer Long (1969), que Steven Spielberg adaptou para o cinema em A.I. (no seguimento do projecto de Stanley Kubrick). Como antologista, organizou várias antologias de ficção científica para a Penguin Books, e editou com Harry Harrison a série anual de antologias The Year's Best Science Fiction entre os números 1 e 6 (1968 - 1973). Ao longo da sua carreira conquistou dois prémios Hugo, um Nénbula e o John W. Campbell Memorial. 
20 de Agosto:
  • 1890 - Nasceu Howard Philips "H.P." Lovecraft, um dos mais consagrados autores de horror literário - ainda que o seu reconhecimento tenha sido sobretudo póstumo (Lovecraft faleceu a 15 de Março de 1937). Foi o criador do Chtulhu Mythos e da ficção original que lhe está associada. 
  • 1951 - Nasceu Gregory Dale "Greg" Bear, autor norte-americano de fantasia e ficção científica. A sua vasta bibliografia inclui romances em universos ficcionais que não são da sua autoria (Halo, Star Trek, Star Wars), mas merece destaque sobretudo pelas suas obras originais: Darwin's Radio (1999) e Darwin's Children (2003), The Forge of God (1987) e Anvil of Stars (1992), a série The Way (Eon, Eternity e Legacy, de 1985, 1988 e 1995), Blood Music (1985) e Hull Zero Three (2010), entre muitos outros. 
21 de Agosto:
  • 1911 - Nasceu Anthony Boucher (nome de baptismo: William Anthony Parker), editor e autor de contos de ficção científica e de mistério. Foi um dos fundadores da Magazine of Fantasy and Science Fiction. Faleceu a 29 de Abril de 1968. 
22 de Agosto:
  • 1920 - Nasceu Ray Douglas Bradbury, um dos mais consagrados autores norte-americanos do século XX, e com uma carreira excepcional em géneros literários como a ficção científica, a fantasia, o horror e o mistério. Dono de uma prosa memorável, Bradbury deixou como legado à ficção científica as inesquecíveis The Martian Chronicles (1950), romances como The Illustrated Man (1951) e Something Wicked This Way Comes (1962) - e, claro, Fahrenheit 451, de 1953, uma das mais aclamadas distopias literárias, adaptada para o cinema por François Truffaut em 1966. Ray Bradbury faleceu a 5 de Junho de 2012.
24 de Agosto:
  • 1915 - Nasceu James Triptree, Jr. (nome de baptismo: Alice Bradley Sheldon), autora norte-americana cujo pseudónimo masculino escondeu a sua verdadeira identidade - e, mais importante, o seu género - até 1977. A revelação causou uma polémica assinalável no meio, e contribuiu de forma decisiva para o debate do preconceito de género na ficção científica (tema que ainda hoje é recorrente, tantos anos volvidos). James Tiptree distinguiu-se sobretudo pela sua ficção curta e provocadora, que lhe assegurou vários prémios Hugo e Nébula; Love Is the Plan the Plan Is Death (1973), The Girl Who Was Plugged In (1973), Houston, Houston, Do You Read? (1977) e The Screwfly Solution (1977) são alguns dos seus contos mais conhecidos. James Tiptree, Jr. faleceu a 19 de Maio de 1987. 
  • 1951 - Nasceu Orson Scott Card, autor de ficção científica norte-americano -  e único autor até ao presente a vencer em dois anos consecutivos os prémios Hugo e Nébula na categoria de "Melhor Romance", com Ender's Game e Speaker for the Dead, de 1985 e 1986. A série do jovem Ender, uma criança-prodígio manipulada para se tornar num estratega militar capaz de derrotar uma raça alienígena invasora, tornou-se numa das mais populares da ficção científica moderna; Card deu-lhe continuidade directa em várias sequelas, e na série paralela que abriu com Ender's Shadow (1999). Da sua autoria são ainda as séries Alvin Maker, inciada em 1988 com Seventh Son e continuada em várias sequelas até ao presente, e a série Homecoming, que tem em The Memory of Earth (1992) o primeiro dos seus cinco volumes. 
  • 2010 - Faleceu Satoshi Kon, animador e realizador japonês que assinou alguns clássicos recentes da animação japonesa como Perfect Blue (1997), Millennium Actress (2001), Tokyo Godfathers (2003) e Paprika (2006), assim como a série televisiva Paranoia Agent (2004). Satoshi Kon nasceu a 12 de Outubro de 1963.
26 de Agosto:
  • 1995 - Faleceu John Brunner, autor britânico de fantasia e ficção científica cuja carreira começou ainda nos anos 50 com space operas de cariz mais ou menos pulp - até ao advento da "New Wave" da ficção científica, movimento do qual se tornou um dos mais relevantes autores com um quarteto de romances que se tornariam clássicos pelo seu arrojo conceptual e pela sua antecipação temática e de tendências da própria ficção científica literária. Com a distopia populacional de Stand on Zanzibar (1968), Brunner venceu os prémios Hugo e BSFA; seguiram-se The Jagged Orbit (1969), The Sheep Look Up (1972) e The Shockwave Rider (1975), entre outros romances e contos que continou sempre a escrever. Judas é o título do conto que submeteu à antologia Dangerous Visions (1967), de Harlan Ellison; a sua ficção curta encontra-se compilada em várias colectâneas. John Brunner nasceu a 24 de Setembro de 1934, e faleceu durante a Worldcon de 1995 em Glasgow. 
28 de Agosto:
  • 1916 - Nasceu John Holbrook "Jack" Vance, autor norte-americano de fantasia, ficção científica e mistério que se distinguiu pela sua obra multifacetada e influente. The Dying Earth será sem dúvida a sua série mais conhecida, uma fantasia num futuro pós-apocalíptico explorado ao longo de quatro volumes: The Dying Earth (1950), The Eyes of the Overworld (1966), Cugel's Saga (1983) e Rhialto the Marvellous (1984). A trilogia Lyonesse (Lyonesse, The Green Pearl e Madouc, de 1983, 1985 e 1989 respectivamente) e o romance Emphyrio (1969) merecem igualmente destaque na sua vasta bibliografia. Jack Vance faleceu a 26 de Maio de 2013.
  • 1948 - Nasceu Vonda Neel McIntyre, autora norte-americana de ficção científica. Dreamsnake, de 1978, venceu os prémios Hugo e Nébula na categoria de romance; derivou da noveleta Of Mist, and Grass, and Sand, de 1973, que já tinha sido reconhecida com um Nébula. Na sua bibliografia encontra-se a série Starfarers (Starfarers, Transition, Metaphase e Nautilus, de 1989, 1991, 1992 e 1994), que surgiu a partir de uma série televisiva imaginada. McIntyre escreveu ainda vários romances para os universos alargados de Star Trek e Star Wars
30 de Agosto:
  • 1797 - Nasceu Mary Shelley (nome de baptismo: Mary Wollstonecraft Godwin), escritora, dramaturga e ensaísta inglesa cujo romance Frankenstein: or, The Modern Prometheus é hoje considerado como um dos textos fundadores da ficção científica literária. Mary Shelley faleceu a 1 de Fevereiro de 1851.
31 de Agosto:
  • 1965 - Faleceu Edward Elmer Smith, conhecido como E. E. "Doc" Smith", autor norte-americano da "Golden Age" da ficção científica, que conheceu grande popularidade nas décadas de 30, 40 e 50. É considerado um dos fundadores da space opera enquanto sub-género da ficção científica; as séries Skylark e Lensman são da sua autoria. "Doc" Smith nasceu a 2 de Maio de 1890.

31 de julho de 2014

Interstellar: Novo trailer

Depois do longo mistério e de dois trailers prometedores, ainda que um pouco duvidosos no que à premissa diz respeito, Interstellar consegue finalmente impressionar com o seu terceiro trailer, divulgado ontem. Não que as dúvidas quanto à premissa tenham sido esclarecidas (isso só o filme o fará); mas porque Christopher Nolan parece apostado, uma vez deixada a Terra apocalíptica para trás, em realizar uma odisseia espacial moderna, rigorosa e memorável, com um drama humano sustentado pelas questões da relatividade. No resto, elogie-se a elegância do trailer: imagens criteriosamente escolhidas, uma boa introdução à premissa, às personagens e ao drama que as envolve, sem spoilers excessivos. Algo tão raro no marketing moderno que, por si só, é digno de notícia.

Interstellar tem estreia prevista para 6 de Novembro em Portugal. Abaixo, o trailer.


Fonte: io9

30 de julho de 2014

Trailers da San Diego Comic-Con (1): Mad Max: Fury Road

A San Diego Comic-Con, que decorreu no fim-de-semana passado, tornou-se no lugar de eleição para os grandes estúdios de cinema afinarem as suas hype machines para os blockbusters da temporada - durante os poucos dias da convenção multiplicaram-se os anúncios, as novidades, os rumores, as não-notícias. E, claro, os inevitáveis teasers, trailers e teaser-trailers (uma inutilidade moderna, uma espécie de versão audiovisual de um tweet). Mad Max: Fury Road foi um dos filmes em destaque, para entusiasmo de muitos - um entusiasmo que, findos os quase três minutos do vídeo, não consigo compreender. Em 2012, Ridley Scott demonstrou que o regresso de um realizador de provas dadas a um dos seus sucessos não é de todo garantia de um novo filme à altura das expectativas (e, acima de tudo, do seu legado); à primeira vista, George Miller parece preparar-se para repetir a lição, com um Mad Max mais ao estilo de Michael Bay do que de outro realizador qualquer - muita pirotecnia, mas com mais aparência do que substância (o estilo naturalmente gritty dos originais era parte indelével do seu apelo). 

Mad Max: Fury Road tem estreia prevista para a Primavera de 2015. Abaixo, o primeiro trailer.


Fonte: IndieWire 

29 de julho de 2014

The Zero Theorem: À espera de um milagre (com spoilers)

Para todos os efeitos, uma nova incursão de Terry Gilliam pelos territórios da ficção científica será sempre um acontecimento, algo a registar e a acompanhar com atenção - trata-se, afinal, do realizador que assinou dois dos mais memoráveis filmes que o género conheceu nos últimos trinta anos, com a burocracia distópica de Brazil e com o pré-e-pós-apocalipse surreal de 12 Monkeys, na sua reinvenção criativa do extraordinário La Jetée, de Chris Marker. Depois de outras aventuras e de outros projectos, Gilliam regressou por fim ao género no qual deixou uma marca indelével, com o propósito de encerrar a sua trilogia temática de contornos orwellianos - e eis que em 2014 chega às salas The Zero Theorem, filme estreado em 2013 no circuito de festivais de cinema, tendo gerado opiniões divisivas desde então.

Uma vez mais, Gilliam coloca o seu protagonista no centro de um futuro caótico e de cariz distópico - e a Jonathan Pryce e a Bruce Willis segue-se Christopher Waltz no papel de Qohen Leth, um programador informático (o termo mais correcto é entity cruncher, que sou manifestamente incapaz de traduzir no contexto) cujo génio no desempenho do seu trabalho só é comparável à reclusão profunda em que vive e à sua absoluta incapacidade de conviver com outras pessoas. Qohen vive numa enorme igreja abandonada e degradada, da qual sai todos os dias contrariado para o seu trabalho diário num cubículo das instalações da megacorporação Mancom - mas sonha com o dia em que possa passar a trabalhar a partir da quietude do seu templo-casa, sem contactos forçados ou distracções desnecessárias.


O seu motivo, porém, é outro: Qohen aguarda com ansiedade pelo retorno de uma chamada telefónica interrompida anos antes, e que acredita conter o sentido para a sua existência. O seu segredo acaba por ser concedido após a ida (a muito custo) a uma festa organizada pelo seu supervisor, Jory (David Thewlis), onde conhece em circunstâncias invulgares Bainsley (Mélanie Thierry) e o líder da Mancom. Livre para trabalhar sossegado e evitar saídas desnecessárias, é é-lhe atribuída uma nova tarefa: resolver o célebre Teorema Zero. Qohen desconhece o propósito da equação, mas dedica-se com afinco ao desafio. Talvez com demasiado afinco.


The Zero Theorem é, inegavelmente, Terry Gilliam em estado puro - nota-se no surrealismo com que constrói cada cena, com que anima cada momento do filme. Afastando-se dos tons sombrios dos filmes anteriores, o cineasta aposta numa profusão caótica de imagens coloridas, intensas, intrusivas - a caminhada de Qohen mostra um mundo coberto por publicidade direccionada, como que uma alusão descontrolada e hiperbólica à omnipresença publicitária de Minority Report. Gilliam não se inibe em momento algum: cada pormenor esconde um easter egg, uma alusão, uma desconstrução, um rosto conhecido. A Igreja de Batman, o Redentor fica na memória, claro - mas há mais, e só por si justificam em pleno uma segunda ou uma terceira visualização.


Mas a construção luminosa e colorida da distopia de The Zero Theorem nem por isso a torna menos opressiva que a de Brazil - ou menos omnisciente. Vemos isso pela intrusão publicitária, claro; e pelo ambiente de trabalho da Mancom, brilhantemente desmontado em duas ou três frases por Qohen; e pelo controlo rígido do teu trabalho a partir de casa (numa crítica acutilante às filosofias laborais contemporâneas), tanto pelos relatórios constantes como pela vigilância intrusiva em todos os recantos da sua casa, num simbolismo tão evidente como interessante pelo seu significado. A sátira prossegue, aguçada no seu tom exagerado (e por vezes grotesco), estendendo-se às relações humanas - a festa de Jory é excepcional pela forma como ilustra as "ligações" contemporâneas, a ilusão do contacto, o isolamento na multidão.


É interessante notar como o argumento de Pat Rushin complementa na perfeição a visão caótica e imaginativa de Gilliam - a vida de Qohen, com a sua espera insana por uma chamada que nem sabe se foi real, é uma entrada directa no absurdo de Samuel Beckett em En Attendant Godot. Mas é a referência directa a The Matrix, facilmente identificável por qualquer fã de ficção científica, que acaba por se revelar fundamental, e não apenas pelo seu carácter de easter egg ou pela consciência que manifesta do género em que todo o filme se insere. Medida com rigor e colocada com toda a intenção, a deixa funciona como um resumo excepcional da personalidade de Qohen através de uma antítese tão inesperada como irónica: enquanto Neo escolheu abandonar o locus amoenus ilusório e virtual para enfrentar uma realidade agreste e ilusória, Qohen mostrou-se disposto a abdicar do locus horribilis da realidade, estranha e indiferente, em busca da ilusão virtual de sossego com Bainsley. Não deixa de ser irónico, porém, que tanto Neo como Qohen apenas possam ser de facto especiais no refúgio virtual, e não no mundo dito real.


Christoph Waltz carrega o filme em ombros sem dificuldade - o seu desempenho como Qohen é excepcional na aparência algo paranóica da personagem, com os seus trejeitos e maneirismos a darem-lhe uma personalidade muito própria. O restante elenco não lhe fica atrás: Mélanie Thierry é soberba como Bainsley, transitando com mestria da versão femme fatale para a desilusão final; David Thewlis está hiperactivo como Jory; e Lucas Hedges é notável como Bob, o filho misterioso e genial do patrão de Qohen. Os cameos são excepcionais - Tilda Swinton, surgindo como a Drª Shrink-Rom (a psiquiatra digital do protagonista), tem uma presença espantosa para quem está confinada a um ecrã minimalista; e Matt Damon emerge com uma interpretação surreal. A banda sonora de George Fentom é a cereja sobre o bolo.


É possível que falte a The Zero Theorem a ironia de Brazil ou a consistência narrativa de 12 Monkeys, com a sua reviravolta final memorável. Nem por isso, porém, surge aqui como uma obra menor da filmografia do cineasta e ex-Monty Python: ciente de que a ficção científica de qualidade acaba por ser tanto ou mais sobre o presente do que sobre o futuro, Gilliam explora as idiossincrasias de um mundo contemporâneo always online através da sua sátira mordaz e colorida, numa distopia garrida cuja luminosidade aparente não esconde por completo quão sombria é. E no meio do caos coloca a tragédia de um homem sozinho, em busca de um significado para algo que, em última análise, pode não ter significado algum. O elenco talentoso eleva a parada; mas é o surrealismo simbólico de Gilliam e Rushin que fazem de The Zero Theorem um dos acontecimentos cinematográficos da ficção científica deste ano. 8.6/10



The Zero Theorem (2013)
Realização de Terry Gilliam
Argumento de Pat Rushin
Com Christoph Waltz, Mélanie Thierry, David Thewlis, Lucas Hedges, Tilda Swinton e Matt Damon
107 minutos