2 de setembro de 2014

Lucy: Transcendência acidental

Todos nós já sabemos que a velha ideia de que os seres humanos apenas utilizam dez por cento da sua capacidade cerebral não passa de um mito pseudo-científico - o que certamente não fará quaisquer favores à premissa de Lucy, o novo thriller de ficção científica do francês Luc Besson, que procura explorar a transcendência humana (é um dos temas em voga neste ano) e outras questões filosóficas sobre a Humanidade, a vida e o universo a partir daquela ideia. É certo: ouvi-la pela primeira vez revela-se um tanto ou quanto estranho, mesmo quando o discurso vem de Morgan Freeman. Mas Luc Besson, desconhecendo ou simplesmente não se importando com a debilidade do conceito central, pede ao espectador que faça o mesmo, e que o acompanhe numa viagem alucinante ao seu melhor estilo.

E a verdade é que quem o fizer - quem aceitar o filme e a sua premissa nos seus próprios termos - decerto encontrará pouco de que se queixar durante os 90 minutos que vão do início ao fim.

De forma muito sucinta (com pequenos spoilers), a trama acompanha Lucy (Scarlett Johansson), uma jovem norte-americana a viver em Taiwan que se vê envolvida no negócio de drogas de um gang sul-coerano a operar no território. O envolvimento dá-se por acidente - o seu namorado envolve-a contra a sua vontade ao fazê-a entregar uma pasta a um hotel, para um homem chamado Jang (Min-sik Choi), mas tudo corre pelo pior a partir do primeiro momento. 


Retida pela máfia sul-coreana, Lucy descobre que a pasta contém quatro pacotes de uma droga experimental designada como CPH4 - e vai acordar algum tempo depois com um desses pacotes alojado no abdómen, pronta para ser enviada para a Europa com três outros "correios". Mas quando um dos subalternos de Jang a agride, o pacote que transporta rompe-se e a droga começa a ser absorvida pelo seu corpo. E, nesse momento, tudo muda.


A absorção da CPH4 começa a desbloquear as capacidades do seu corpo e do seu cérebro, expandindo a sua percepção para níveis inimagináveis e dando-lhe total controlo sobre a sua memória, o seu metabolismo e sobre tudo o que a rodeia - com capacidades telepáticas e telecinéticas incluídas. Procurando descobrir o que se passa consigo, Lucy vai contactar o professor Norman (Morgan Freeman), cuja investigação na área cerebral poderá talvez ajudá-la a resolver a sua situação. E contacta ainda Pierre del Rio, um capitão da polícia francesa, para que ele o ajude a recuperar os outros três pacotes de CPH4, com o objectivo levar a sua evolução acelerada até às últimas consequências - mesmo com Jang no seu encalço.


Se Lucy se consegue elevar acima das debilidades evidentes da sua premissa, isso deve-se em grande parte ao desempenho seguro e credível de Scarlett Johansson. Numa época em que Zoe Saldana parece apostada em reinvindicar o título de rainha dos blockbusters de ficção científica, Johansson vai mostrando, através de uma sequência de desempenhos notáveis, por que motivo o seu rosto é é hoje em dia um dos mais visíveis e talentosos que o género tem no grande ecrã (é acompanhar a passagem da talentosa Natasha Romanoff do Marvel Cinematic Universe para a não-humana de Under the Skin, até à frágil Lucy, capaz de transcender a sua humanidade por acidente). A transição de faz da Lucy desorientada e assustada do primeiro acto para uma Lucy sobre-humana e cada vez mais distante é soberba, e Johansson transposta todo o filme com facilidade e charme mesmo nos momentos que mais esticam a suspensão da descrença.


E se a presença e o desempenho de Johansson dão credibilidade à trama, a realização segura e cinética de Besson dão a todo o filme uma energia muito própria, tanto pelo ritmo que imprime às inevitáveis sequências de acção como pelas opções pouco convencionais que emprega para contar a sua história e sublinhar alguns momentos. A trama do primeiro acto, por exemplo, surge encaixada de forma inusitada entre imagens de vida selvagem que parecem retiradas de documentários da National Geographic - todo o build-up com a cena das chitas a caçar é excepcional pela forma como destaca o carácter indefeso da Lucy original e como estabelece um paralelo invulgar entre a aula do professor Norman, na qual ele explica a evolução e o propósito da vida. A acção, quando surge, é explosiva - ao melhor estilo de Besson, de resto, com uma perseguição alucinada em Paris e várias sequências de combate violento que ora são levadas até ao final, ora são subvertidas pelos poderes de Lucy. 


É certo que, chegados ao final, será talvez impossível não reparar que Lucy tinha todos os elemementos necessários para ser um filme muito mais profundo, complexo e emotivo do que foi - mesmo mantendo a premissa frágil. O drama de alguém que consegue aceder às suas memórias mais profundas e que alcança a empatia absoluta é aludido em breves momentos (como no encontro de Lucy com a sua colega de casa, ou, naquela que será talvez a melhor cena do filme, quando telefona à mãe a partir do hospital), mas nunca levado às suas últimas consequências - e é bom de ver que seria um tema fascinante de explorar. A necessidade de contacto com alguém terreno e "normal", sublinhada por uma deixa fugaz de Lucy para del Rio, foi também uma possibilidade aludida, mas descartada em prol talvez de alguma acção mais directa e visceral (convenhamos: a cruzada de Jang acaba por ser mesmo o ponto mais fraco do filme, por mais bem montada que esta - e está - a acção). Há na odisseia pessoal de Lucy vários elementos que permitiriam a Besson construir um filme mais emotivo, mais trágico até, mas que nunca são devidamente aproveitados - surgem quase como memorados a indicar que a ideia está lá, mas que o ponto não é esse.


A pergunta acaba por se impor: qual é o ponto, afinal? A resposta surge logo no início, na palestra do professor Norman - e é essa visão do que é a vida que vai nortear alguém que está a transcender tudo o que entendemos por vida. Feitas as contas, a resolução acaba por sair talvez demasiado críptica, algo perdida entre o frenesim da acção e as alusões que Besson coloca ao longo da trama, ciente das convenções e das ideias do género em que situa o seu filme (2001 é revisitado aqui várias vezes, nem sempre de forma óbvia; e está longe de ser o único), e as várias pistas que deixa para possibilidades alternativas acabam por se revelar algo frustrantes por nunca serem concretizadas em pleno. Ao longo dos seus quase 90 minutos, porém, Lucy não deixa muito espaço para reflectir sobre tais possibilidades - entre o drama da protagonista, a acção enérgica e as imagens evocativas que Besson conjura, o filme revela-se intenso e divertido, e o encantamento (para quem, lá está, consegue aceitar as limitações da premissa) mantém-se sem esforço. 07/10

Lucy (2014)
Argumento e realização de Luc Besson
Com Scarlett Johansson, Morgan Freeman, Min-sik Choi e Amr Waked
89 minutos

6 comentários:

Rui Bastos disse...

Fui ver hoje. A treta pseudo-científica que serve de base à premissa é ultrapassável, se nos deixarmos ir com o filme, mas o filme pareceu-me aquém até ao final, quando ela se começa a transformar. Aí gostei, foi arriscado e foi corajoso, o filme não parecia ir bem naquela direcção, mesmo em termos visuais, e BAM, foi espectacular. Mas depois o final foi bastante insatisfatório...

P.S.: no entanto é de louvar o controlo que Besson tem sobre a mensagem visual do filme, a forma como ele controla o que nos mostra.

João Campos disse...

Acho que o segredo do filme é ser relativamente curto. Se o Besson tivesse esticado mais a coisa, espalhava-se.

Ainda assim, tenho pena de que a trama da máfia tenha durado tanto tempo. Era óbvio para aí a meio do filme que eles não tinham quaisquer hipóteses...

Rui Bastos disse...

Bem, também é verdade... E epah, eu acho que a máfia só lá estava para aqueles epic showdowns, uma desculpa para a tipa ser violenta.

Uma personagem que acabou por ser desnecessária, mas que podia ter sido importante, foi o Del Rio. Aquela coisa dele ser uma lembrança da humanidade dela e isso tudo, acabou por passar ao lado.

João Campos disse...

Esse foi um rumo desaproveitado do filme - seria interessantíssimo vê-lo devidamente explorado.

Quanto à violência, o que é interessante é que quanto mais ela evoluía menos violenta ficava - compara a forma como ela trata os gangsters no hotel, no início, e mais tarde, no hospital. Seria outra abordagem interessante, até porque na FC vemos quase sempre as inteligências superiores como colonizadoras pela força. Se calhar o pós-humanismo não tem de ser violento... mas essa história terá de ficar para outro filme.

Anónimo disse...

Este filme resume-se nas palavras finais: agora já sabem o que fazer com a(s vossas) vida(s) que vos foi dada: não a percam a ver isto.
Subtil como um elefante em must numa loja de porcelana. Idiota como alguém com a ideia que sabe alguma coisa sobre um assunto qualquer, e tenta explicá-lo a um especialista (é ver o entusiasmo do público, a engolir a pseudo-história da vida e da evolução culminante). Imagino que só o dinheiro gasto na cena do dinossauro devia chegar para retardar grandemente a propagação do Ebola. A estupidez grassa neste mundo, decididamente.

João Campos disse...

É isso e os comentários anónimos.