4 de outubro de 2013

Dos deuses e dos homens, das águias e das tartarugas: a sátira religiosa de Small Gods

E se a existência de deuses - de quaisquer deuses - derivasse da crença dos seus fiéis, e não o contrário? Terry Pratchett lançou as sementes desta ideia fascinante em Pyramids, o sétimo livro da série Discworld, quando os deuses de Djelibeybi se materializaram no universo isolado do reino; mas foi em Small Gods, o décimo-terceiro livro da série (publicado em 1992), que o autor decidiu levar esta ideia até às últimas - e hilariantes - consequências numa sátira tão inteligente como afiada ao fenómeno religioso. 

Uma curta passagem sobre os hábitos de águias e tartarugas dá o mote a Small Gods - e a imagem da ave a voar nas alturas em busca de uma tartaruga para capturar e esmagar vai acompanhar toda a história, e dar forma à mais imaginativa Chekov's Gun que já li em Pratchett. De aves a caçar répteis e dos monges que cuidam da História passa-se para Omnia, reino teocrático dominado pelo culto religioso de Om e por quem de facto controla esse culto - uma rígida hierarquia de vetustas figuras simbólicas e uma Quisition (pun intended) forte, tão rigorosa na doutrina como nas práticas de tortura, dominada pelo muito pouco recomendável Vorbis. Mas do lado oposto do culto encontra-se Brutha, um jovem acólito cuja parca inteligência é compensada por uma devoção fervorosa (pela sua educação e por ser, em termos práticos, incapaz de questionar a fé) e por uma memória prodigiosa e infalível. Quando o poderoso Om se vê caído em desgraça e reduzido ao corpo de uma insignificante tartaruga, consegue apenas estabelecer contacto com Brutha - o seu último crente incondicional. Com Omnia (ou melhor: com Vorbis) decidida a converter (por força, por astúcia ou por ambas) Ephebe, nação de filósofos, eliminando a rebeldia religiosa que nasceu num tratado filosófico que defende ser o mundo um disco assente em quatro elefantes sobre a carapaça de uma gigantesca tartaruga cósmica (a religião de Omnia, ferozmente monoteísta, crê que o mundo é esférico - imagine-se!), Brutha e Om vêem-se arrastados para uma autêntica crise religiosa que atravessará mares e desertos, chamará a ira de deuses e homens e, enfim, causará, passe a expressão, uma valente barrigada de riso.

Ao pegar no tema religioso, Pratchett não toma partidos ou entra em barricadas - e vai buscar a várias religiões e mitologias elementos para dar forma, com graça e inteligência, a uma sátira exemplarmente bem construída em redor da evolução intelectual e emocional tanto de Brutha como do próprio Om, o deus aprisionado na forma de uma tartaruga. A referência à Inquisição será porventura uma das mais óbvias - no texto podem ser encontradas várias do Cristianismo, mas também do Judaísmo, do Budismo e de outras crenças. O ateísmo não ficou esquecido, como não podia deixar de ser, e os gags com os filósofos de Ephebe são notáveis. Também lugares históricos e mitológicos como a Biblioteca de Alexandria ou o Labirinto de Creta, não escapa ao olhar atento do autor; à semelhança do que já fizera noutros livros da série, Pratchett combina uma enorme variedade de alusões, ideias e referências com uma história interessante, sustentada por personagens muito bem construídas - e distorce todos esses elementos para satirizar o fenómeno religioso nos seus denominadores mais elementares, aludindo a inúmeras crenças sem se concentrar em apenas algumas. 

E o resultado é a todos os níveis excepcional, sobretudo na abordagem a um tema habitualmente bicudo. Small Gods é um dos poucos livros stand alone de Discworld, não estando enquadrado em qualquer um dos arcos narrativos que Pratchett tem desenvolvido desde 1983. Das personagens recorrentes apenas a Morte e o Bibliotecário aparecem, e este último de forma um tanto ou quanto fugaz. É certo que uma leitura prévia do já mencionado Pyramids poderá contribuir para um melhor enquadramento de algumas passagens e localizações da narrativa, e o conhecimento dos livros anteriores (em ordem de publicação) trará uma maior familiaridade com o estilo de Pratchett; mas nenhuma dessas leituras é fundamental para se apreciar o humor ímpar de Pratchett, a sua excelente prosa e, claro, uma boa história num universo ficcional fascinante. Por todas estas características, Small Gods surge com alguma frequência recomendado como um bom "ponto de entrada" em Discworld, mundo que conta já com com 39 livros publicados - o 40º está para breve - e vários contos; e é também considerado por muitos como um dos melhores livros da série. Estando a ler Discworld por ordem cronológica, é-me impossível determinar se Small Gods será, de facto, um dos melhores da série; mas que é um livro soberbo, disso não tenho a menor dúvida - e não o poderia recomendar mais.

Sem comentários: