30 de agosto de 2013

Terry Pratchett em formato curto: os contos de Discworld na antologia A Blink of the Screen: Collected Shorter Fiction

No final do ano passado foi publicada aquela que, se não for a antologia definitiva da ficção curta de Terry Pratchett, não andará longe: A Blink of the Screen: Collected Shorter Fiction. Com introdução de A. S. Byatt (excelente, por sinal), esta antologia reúne praticamente toda a ficção curta escrita e publicada por Terry Pratchett desde os anos 60 até ao presente, englobando tanto histórias passadas no universo ficcional de Discworld como outras, muito diversas. No que às de Discworld diz respeito, no início do ano escrevi aqui sobre uma delas, The Sea and Little Fishes, publicada na antologia Legends que Robert Silverberg editou em 1999; mas há outras, e são essas que merecem atenção hoje:

Troll Bridge: Em 1991, por ocasião do centenário do nascimento Tolkien, Martin H. Greenberg editou a antologia comemorativa After the King: Stories in Honor of J. R. R. Tolkien, com contos de fantasia de vários autores consagrados no género. O contributo de Terry Pratchett foi um surpreendente conto sobre a nostalgia intitulado Troll Bridge - oportuno não só no tema, se pensarmos na obra tolkieniana, mas também na velha história de Bilbo e dos trolls. Entre as piadas e os puns tão ao estilo do excelente humor de Pratchett, Troll Bridge é uma curiosa história sobre... a nostalgia. Cohen the Barbarian, o velho guerreiro que figurou ao lado de Rincewind em The Colour of Magic e The Light Fantastic, vai no seu cavalo (falante) em busca da última ponte onde sabe ainda habitar um troll - um troll a sério, daqueles que ataca quem ousa atravessar o seu domínio -, para o matar, cumprindo assim uma vontade antiga do seu pai. Mas o encontro com o troll, um monstro de pedra chamado Mica que vive com a sua família debaixo da ponte, acaba por não correr exactamente como previsto; e juntos, entre questões familiares (do troll) e os problemas da velhice (do bárbaro), acabam por recordar um passado que deixou de existir, obliterado pela passagem inexorável do tempo e pela marcha do progresso. Quem lê Pratchett (e Discworld em particular) estará decerto habituado à forma como o autor pega nas convenções e nos clichés para os subverter de forma inteligente e sempre bem humorada - o que é feito com mestria em Troll Bridge, mas não apenas com o propósito de fazer rir. Entre as gargalhadas proporcionadas pela situação e pelas deixas da personagens, Troll Bridge constrói uma reflexão sempre interessante sobre a nostalgia e aquele passado que parece sempre mais solarengo que o presente. 

Theatre of Cruelty: Na introdução a Theatre of Cruelty, Pratchett começa por admitir que o conto terá mais impacto a quem estiver familiarizado com as representações tradicionais de marionetas conhecidas em Inglaterra como "Punch & Judy" (que pela sua natureza define, não sem ironia, como a origem da slapstick comedy). A verdade é que mesmo quem desconhecer este espectáculo não deixará de apreciar o conto, publicado originalmente em 1993 na revista Bookcase, da cadeia de lojas W.H. Smith - nem que seja pelo humor habitual de Pratchett (a reflexão de Vimes é formidável) ou por ver, por um pequeno momento, a Night Watch de Ankh-Morpork em modo crime scene investigation. Um corpo é encontrado morto, e Carrot, o mais jovem elemento da Night Watch, vai investigar o caso recorrendo à lógica muito peculiar (e simples) do seu raciocínio. E, claro, em pouco mais de mil palavras há espaço mais do que suficiente para dar a volta a algumas práticas policiais que tantas e tantas vezes encontramos em policiais (sejam em que formato for).

Death and What Comes Next: Aquilo que esta curta história tem de mais singular é o facto de ter sido escrita para um videojogo: TimeHunt (2004). Death and What Comes Next é uma história muito curta que, tal como o título indica, tem a Morte - perdão, a morte - como protagonista e envolve uma discussão desta com um filósofo. Este, por seu lado, procura escapar à temível foice - e para isso recorre à física quântica e à teoria dos vários universos para demonstrar (ou tentar) que a morte não será, afinal, tão certa quanto se pensa. Afinal, noutro universo, o filósofo continuará vivo. Claro, esta é a morte de Discworld - certa é uma das suas qualidades inabaláveis, tal como a sua argumentação. E essa levará a uma conclusão surpreendente, e envolverá mesmo um certo gato numa certa caixa...

A Collegiate Casting-Out of Devilish Devices: Publicada originalmente no The Times Higher Education Supplement em 2005, A Collegiate Casting-Out of Devilish Devices decorre, como não podia deixar de ser, na Unseen University de Ankh-Morpork. Toda a história consiste numa reunião do corpo docente da Universidade, indignado pela visita iminente de A. E. Pessimal (personagem introduzida em Thud!, de 2005), que Lorde Vetinari, governante da cidade, nomeou como Inspector Universitário. É um texto curto mas hilariante do princípio ao fim, e uma sátira mordaz à Academia, ao ensino, e, como não podia deixar de ser, aos comités e à sua aparente inutilidade (Pratchett admite a inspiração do tempo em que presidiu à Sociedade de Autores). Ainda que uma parte do humor de A Collegiate Casting-Out of Devilish Devices derive da familiaridade do leitor para com os elementos da Unseen University, quem não tiver ainda lido qualquer história com Ridcully, o Reitor ou o Bibliotecário não deixará decerto de apreciar o sarcasmo que premeia todo o texto, assim como uma crítica um tanto ou quanto subtil ao ensino - e, claro, ao funcionamento muito próprio da Unseen University.

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