28 de janeiro de 2014

Stargate: Antigo Egipto e ancient astronauts

Antes de se dedicar à destruição metódica de algumas das principais cidades da Terra com a sua popular sequência de quatro "filmes de destruição massiva" (Independence Day, Godzilla, The Day After Tomorrow e 2012 - um dia dedicarei um mês inteiro a este póquer), o alemão Roland Emmerich realizou um filme a partir do argumento que escrevera com Dean Devlin e que se tornaria num sucesso comercial assinalável: Stargate. Para a história, mais até do que o próprio filme, terá talvez ficado a série televisiva a que deu origem: Stargate: SG-1, porventura a série de ficção científica mais relevante da década de 90, com um total de dez temporadas e vários spin-offs em diferentes formatos (até bandas desenhadas e videojogos). Mas o filme original, com Kurt Russel e James Spader nos principais papéis, permanece como a fundação do universo ficcional que transportou a mitologia egípcia para uma space opera militarista bastante peculiar.

Será talvez inevitável a associação da premissa às teorias dos ancient astronauts popularizadas por Erich von Däniken: a ideia de que povos extraterrestres inteligentes visitaram a Terra no tempo de algumas das civilizações antigas e, ao estabelecerem contacto com a Humanidade, foram responsáveis pelo seu desenvolvimento cultural e tecnológico. As divindades de vários povos antigos seriam, à luz desta teoria, não deuses místicos mas alienígenas sofisticados - e o seu poder seria tecnológico. Emmerich e Devlin não escondem as influências: o filme arranca numa escavação no Egipto em 1928, quando é descoberta uma estranha estrutura esculpida numa rocha junto às Pirâmides de Gizé - e um artefacto circular feito de um material que não existe na Terra.


E no presente (do filme), o egiptólogo Daniel Jackson (James Spader) vê as suas teorias acerca da construção e do propósito da Grande Pirâmide serem alvo de chacota pelos seus pares - acabando por ser recrutado pelo Exército norte-americano para decifrar uma série de símbolos antigos encontrados na estrutura encontrada em 1928. Após semanas de trabalho, Jackson descobre que os símbolos não são caracteres de um idioma antigo desconhecido, como se pensava, mas sim representações das várias constelações visíveis a partir da Terra. Essa descoberta permite que o artefacto circular, designado como "stargate", seja activado - abrindo uma passagem para um planeta numa galáxia distante.


Sob o comando do Coronel Jack O'Neill (Kurt Russel), recentemente regressado ao serviço activo após a morte acidental do seu filho, é formada uma expedição militar para atravessar o portal - com Jackson a acompanhar os soldados para decifrar o código do outro lado e abrir a passagem que lhes permita regressar (por um qualquer motivo nunca bem explicado, é impossível o regresso à Terra por um portal aberto a partir da Terra). Ao atravessarem, vão encontrar um templo e uma pirâmide à imagem das estruturas do Antigo Egipto - e uma sociedade humana que vive ainda como naquela época, e para quem a escrita e a leitura são actividades proibidas. A exploração desta sociedade cedo vai revelar a presença de uma divindade antiga com uma agenda própria executada com precisão há milénios - e um novo sentido para todos os símbolos e todas as imagens da mitologia egípcia.


Ainda que duvidosa em termos científicos (para dizer o mínimo), a teoria dos ancient astronauts tem o seu interesse pela explicação que fornece para as manifestações religiosas dos povos antigos - e não é por acaso que se revela recorrente em alguma ficção científica, do recente e malogrado Prometheus a este Stargate (e mesmo noutros universos ficcionais em outros formatos - a exploração da mitologia grega e da simbologia judaico-cristã nas séries de animação japonesa Saint Seiya e Neon Genesis Evangelion seriam talvez dignas de nota neste campo, ainda que se revelem mais abstractas). As mitologias sempre sempre exerceram um fascínio muito próprio, que Emmerich e Devlin conseguiram capturar com algum sucesso neste filme, através da subversão de algumas convenções - do outro lado da "stargate", O'Neill e Jackson não encontram primeiro alienígenas, mas humanos - arrancados do seu planeta de origem milénios antes e forçados a evoluir de forma radicalmente da Humanidade na Terra.


Por muito que Emmerich e Devlin não tenham conseguido evitar alguns clichés mais típicos dos filmes de acção e aventura, a atenção dada aos pormenores em Stargate é merecedora de destaque. A diferença entre idiomas é disso o exemplo perfeito - apenas Jackson consegue aprender os rudimentos da língua falada no outro planeta, por ser baseada no idioma falado no Antigo Egipto; em momento algum surge alguma forma de tradução, e o filme aborda em diversos momentos as dificuldades de comunicação entre dois povos separados por milénios de evolução cultural. A estética, reminescente daquela civilização, revela-se sempre interessante e coerente - do "stargate" à nave-pirâmide, das armaduras dos guardas de Rá às suas armas e a outros artefactos tecnológicos. É certo que o filme não se distingue pela qualidade dos seus desempenhos - Russel e Spader não comprometem como O'Neill e Jackson, mas o Rá de Jaye Davidson acaba por ser excessivamente cartoonish, e o restante elenco nunca tem grande espaço. Por outro lado, a banda sonora de David Arnold tornou-se célebre, sendo transportada também para a série televisiva.


Talvez a premissa de Stargate pudesse ter sido explorada de forma a aproveitar o excelente worldbuilding - em última análise, o filme acaba por se resumir a mais uma peça de aventura, abdicando de alguma densidade e de algum sense of wonder em prol da acção que acaba por marcar a segunda parte do filme (sem abdicar da acção, a série televisiva acabou por explorar mais esse encantamento próprio da ficção científica) e do dramas pessoais de O'Neill e Jackson. Por outro lado, em momento algum parece o filme ambicionar a vôos mais altos - Emmerich e Devlin propuseram-se apenas a contar aquela história, e fizeram-no com um módico de competência. Numa década que, no que à ficção científica cinematográfica diz respeito, começou com Terminator 2 e acabou com The Matrix*, Stargate não se eleva entre o melhor que o género produziu. Nem por isso, porém, deixa de ser um filme interessante de um ponto de vista temático e estético, com alguns detalhes muito bem conseguidos e um worldbuilding muito promissor - como o sucesso da série televisiva viria a atestar alguns anos mais tarde. 6.9/10

Stargate (1994)
Realizado por Roland Emmerich
Argumento de Roland Emmerich e Dean Devlin
Com Kurt Russel, James Spader, Jaye Davidson, Mili Avital, Viveca Lindfors, Alexis Cruz, John Diehl, Erick Avari e Djimon Hounsou
121 minutos

* E teve pelo meio filmes como Gattaca, Ghost in the Shell, Twelve Monkeys, Jurassic Park, The Fifth Element e Dark City, entre outras peças menores.

7 comentários:

Anónimo disse...

Um filme de mid-list que se via bastante bem, de facto. Quanto a ser impossível regressar à Terra, por acaso a explicação é lógica: os portais funcionam numa direcção, e para do outro lado regressar é preciso reprogramar o portal com as coordenadas da Terra - que eram, obviamente, desconhecidas.

João Campos disse...

Ainda se vê bastante bem.

Foi a ideia de os portais funcionarem apenas numa direcção que me fez alguma confusão. Enfim, é um pormenor sem grande importância (é uma regra própria do universo ficcional). Tenho de rever a série um dia destes.

Loot disse...

Vi-o em miúdo e achei muito engraçado a toda a mitologia exposta, a interacção dos ETs com os Egípcios e ao duo protago0nista, grande James Spader e Kurt russel.

A série vi no incício e não continuei. ia perdendo os eps na tv e depois apanhava esporadicamente.

João Campos disse...

Quando SG-1 passava na SIC aos Domingos à tarde eu estava invariavelmente em frente à televisão. Bons tempos, quando os canais generalistas passavam bons filmes e boas séries ao fim-de-semana.

Loot disse...

e a TVI no inicio? as suas sextas à noite com X-files e pretender :D

Se bem que tenho ideia que, ou o pretender envelheceu mal, ou a partir de x temporada ficou mto fraco (apanhei um ep recentemente)

Ana Martins disse...

Pretender era uma grande série no início, depois foi piorando gradualmente. Também vi um episódio de uma temporada mais à frente algum tempo depois e já não era a mesma coisa. Mas premissa inicial da série era muito interessante e boa.

Creio que comecei a ver a série do Stargate porque gostei bastante deste filme na altura. Também gostei do Stargate Universe. Já o Stargate Atlantis é mais fraco.

João Campos disse...

Nunca vi "Pretender". E só comecei a ver "X-Files" depois de a série ter feito o "jump the shark" (as últimas temporadas, portanto). Mas li alguns livros na adolescência, e lembro-me de ter gostado.

Nunca vi SGU. Vi alguns episódios do "Atlantis", mas nem a Jewel Staite salvava a coisa.