31 de janeiro de 2014

Dunk & Egg: Três histórias de um Westeros passado

Um dos aspectos mais fascinantes do mundo secundário de A Song of Ice and Fire, criado por George R. R. Martin, é a sensação constante de passado que o autor explora com mestria ao longo dos volumes que constituem a narrativa principal (de A Game of Thrones em diante); os pequenos indícios de que a história que o leitor está a acompanhar não tem, em si, um princípio e um fim determinados, fazendo antes parte de um todo muito mais vasto e antigo que se revela em passagens e pormenores mais ou menos laterais - e que esse todo é muito mais rico do que a mera genealogia das várias casas nobres e as raízes dos conflitos, abertos ou latentes, deixam adivinhar. Martin, afinal, não assume a influência de Tolkien por acaso; a distância entre ambos os universos ficcionais dificilmente podia ser maior no que às convenções da fantasia épica diz respeito, mas há no Westeros do autor norte-americano a mesma sensação de História - com maiúscula - que permeia toda a narrativa de The Lord of the Rings. Não surpreenderá por isso que, ainda nos anos 90, quando A Song of Ice and Fire estava ainda nos seus primeiros volumes (e longe de se tornar no sucesso avassalador dos últimos anos), Martin se tenha dedicado a explorar, por via de ficção curta, pequenos fragmentos desse passado histórico, até ali descrito de forma mais ou menos vaga na genealogia e nas descrições de personagens, linhagens e territórios. 

O que se revela interessante na abordagem de Martin ao passado de Westeros é o ponto de vista que escolhe: num mundo repleto de príncipes e princesas, casas nobres e linhagens ancestrais, quando não lendárias (Targaryen ou Stark, por exemplo), a escolha recai sobre um cavaleiro errante de nome Duncan, conhecido como Dunk e, mais tarde, como Ser Duncan the Tall, e sobre o seu improvável escudeiro, um rapaz cuja alcunha Egg esconde uma família poderosa. É das viagens desta dupla improvável pelos Sete Reinos que Martin mostra um Westeros passado, 90 anos antes dos acontecimentos de A Game of Thrones, quando os Targaryen ainda se sentavam no Trono de Ferro; e os torneios, as conspirações mais ou menos veladas, e as pequenas disputas locais entre casas afastadas dos seus dias de glória contribuem para pintar um retrato fascinante daquele território, longe dos grandes conflitos e dos grandes protagonistas - relegados para um segundo plano que contextualiza a narrativa sem tomar conta dela. Em A Song of Ice and Fire, o único momento que se aproxima desta experiência será talvez o longo travelogue de Brienne durante o quarto livro, A Feast for Crows - uma passagem fascinante que permite ver o pós-guerra nas Riverlands pelos olhos de uma das mais humanas personagens que Martin criou na sua série (e uma passagem muito verberada, a meu ver injustamente, pelos fãs). O que, bem vistas as coisas, até permite olhar com outros olhos para a coincidência aparente de, a dada altura, Brienne assumir o escudo-de-armas de Ser Duncan.

Até à data, George R. R. Martin publicou em antologias dispersas três novelas de Dunk e Egg - a quarta, na calha há já algum tempo, viu a sua conclusão e publicação adiadas para uma data posterior ao lançamento do sexto livro, The Winds of Winter. Conforme foi dito aqui ontem, estas três histórias serão traduzidas e editados num único volume pela Saída de Emergência. Vejamos cada uma delas:

The Hedge Knight (1998)
No final dos anos 90, Robert Silverberg editou duas antologias, uma de fantasia e outra de ficção científica, para as quais convidou autores consagrados a publicar em ficção curta (ou mais ou menos curta) histórias decorridas nos seus universos ficcionais estabelecidos. Legends foi o título dado à antologia de fantasia, editada em 1998*, e contou com textos inéditos de autores como Terry Pratchett (Discworld), Ursula K. Le Guin (Earthsea), Robert Jordan (The Wheel of Time) e Orson Scott Card (Alvin Maker), entre muitos outros. E George R. R. Martin, com The Hedge Knight - conto no qual apresentou Dunk e Egg ao colocá-los no contexto de um torneio de Ashford. Dunk, até então escudeiro de outro cavaleiro errante, decide participar no torneio após a morte do seu mentor; e numa estalagem próxima conhece Egg, um miúdo enigmático que, desejoso de assistir ao torneio, se oferece para escudeiro. Claro que no torneio, nada vai correr como esperado, e uma ofensa bem intencionada acaba por conduzir Dunk a um julgamento por combate com sete cavaleiros de cada lado, e com os príncipes Targaryen divididos. Mais do que apresentar duas personagens com contextos tão distintos como Dunk e Egg e juntá-las numa dupla improvável (como qualquer dupla que se preze), The Hedge Knight pinta um retrato muito interessante e pormenorizado sobre a cultura aristocrática de Westeros, sobre os torneios e sobre a disfuncionalidade do clã Targaryen, com as suas rivalidades internas. A prosa está ao nível daquilo a que os leitores de A Song of Ice and Fire se habituaram - rica nas descrições e nos detalhes, com uma boa caracterização de personagens (sobretudo dos protagonistas) e com um enredo interessante do início ao fim. 

The Hedge Knight foi a única das três histórias de Dunk e Egg a ser traduzida e publicada em Portugal até à data, na antologia O Cavaleiro de Westeros e Outras Histórias, da Saída de Emergência - que também traduziu e publicou a adaptação desta história para banda desenhada, na graphic novel homónima de Ben Avery, Mike S. Miller e Mike Crowell.

The Sworn Sword (2003)
Quando Robert Silverberg decidiu repetir a experiência e avançar para Legends II, George R. R. Martin (provavelmente durante o longo bloqueio de A Feast for Crows/A Dance with Dragons) voltou a contribuir com uma história de Westeros - e continuou a acompanhar Dunk e Egg. Desta vez, a dupla surge na região do Reach, após uma passagem por Dorne - e Dunk coloca-se ao serviço de um pequeno senhor local, sem herdeiros e envolvido numa disputa territorial com outra aristocrata da região. Através desta história, Martin explora não só a cultura feudal de Westeros com algum detalhe - os títulos, a hereditariedade, a propriedade territorial, os privilégios e as perdas decorrentes de se apoiar a facção errada num conflito mais vasto, as disputas por recursos -, como também enquadra a primeira Rebelião Blackfyre, uma disputa real envolvendo Targaryens legítimos e ilegítimos que dividiu os Sete Reinos e que teve uma conclusão sangrenta na Batalha de "Redgrass Field". Ainda que o final deste conto tenha pecado um pouco por excesso de conveniência (até se estranha um final "feliz" em Martin), toda a situação em que Dunk e Egg serve não só para mostrar uma faceta da vida de Westeros que o leitor à partida desconhecerá, como também para aprofundar um pouco mais o carácter dos protagonistas. 

À semelhança de The Hedge Knight, também The Sworn Sword foi adaptado para banda desenhada, numa graphic novel homónima publicada pela Marvel. Em Portugal, esta edição recebeu o título A Espada Ajuramentada

The Mistery Knight (2010)
A terceira história de Dunk e Egg foi publicada na antologia Warriors, organizada pelo próprio George R. R. Martin em parceria com Gardner Dozois. The Mistery Knight regressa ao ambiente de torneio medieval que tão bem funcionou na primeira história destas personagens, desta vez abandonando as questões familiares do clã Targaryen para explorar com mais alguma profundidade as ramificações da Rebelião Blackfyre, que já aflorara em The Sworn Sword. Dunk e Egg decidem partir para Norte, para oferecer os seus serviços aos Starks de Winterfell. Pelo caminho, porém, decidem juntar-se a um grupo que vai ao casamento do Lorde Butterwell de Whitehalls, em cujas celebrações decorrerá um torneio - e este torneio terá como prémio um cobiçado ovo de dragão. Martin começa logo cedo a estabelecer o ambiente em que decorrem as celebrações - com a revolta esmagada pela linhagem real do clã Targaryen ainda bem presente, instabilidade mais ou menos velada nas províncias e o ressentimento dos vencidos. O torneio, como não poderia deixar de ser, será palco de uma conspiração; e o autor aproveita-o tanto para contar uma história repleta de intriga, ao seu melhor estilo, como para dar aos leitores já familiarizados com A Song of Ice and Fire alguns easter eggs. A visão do famigerado Walder Frey ainda em criança não poderá ser outra coisa - mas as referências e a subsequente aparição de Brynden Rivers, uma enigmática personagem conhecida como "Bloodraven", dão aos leitores mais atentos uma pista muito curiosa a propósito do quinto livro da série, A Dance With Dragons. The Mistery Knight distingue-se dos contos anteriores na medida em que Martin introduz de forma mais explícita os sonhos proféticos que, em larga medida, constituem em simultâneo um elemento "fantástico" na série principal e uma fonte recorrente de foreshadowing, e deixa em aberto a continuação das aventuras de Dunk e Egg.

The Mistery Knight ainda não foi traduzida para português ou adaptada para qualquer outro formato.  

A quarta história de Dunk e Egg, como já foi referido, foi adiada para uma data a definir após a conclusão e publicação de The Winds of Winter. A intenção manifestada pelas personagens de visitarem o Norte e o título provisório de The She-Wolves of Winterfell dão uma indicação bastante sólida de que esta novela terá como cenário o território da Casa Stark. Inicialmente, Martin tencionava publicar esta história na antologia Dangerous Women, organizada também em conjunto com Gardner Dozois e publicada no ano passado; para esta colectânea, porém, acabou por escrever outra novela inédita, The Princess and the Queen, que recua ainda mais no tempo em Westeros. 


* A de ficção científica, intitulada Far Horizons, seria publicada no ano seguinte.

2 comentários:

Fyredrake disse...

Ansiosa por ler. É exactamente isso que me atrai na saga de George R.R. Martin,a sensação de História. Depois de Tolkien foram raros os autores que me transmitiram essa sensação.

João Campos disse...

A História e a Geografia são de facto duas das forças do universo ficcional de Martin. No que à Geografia diz respeito, julgo que os próximos dois livros da série trarão algumas novidades (Asshai). Quanto à História, estes três contos pintam um Westeros muito interessante, durante o reinado dos Targaryen. Para além de contarem óptimas histórias, claro.