17 de dezembro de 2013

The Hobbit: The Desolation of Smaug: Nem tudo o que reluz é ouro

Peter Jackson continua o périplo pela Terra Média de Tolkien com The Hobbit: The Desolation of Smaug, o segundo capítulo da trilogia que adapta The Hobbit para o grande ecrã - no ano passado estreou o primeiro filme, An Unexpected Journey, e em Dezembro de 2014 deverá estrear o terceiro e último capítulo da trama, There and Back Again. Uma opção que, recorde-se, foi muito criticada em alguns quadrantes e recebida com um entusiasmo cauteloso noutros. Olhando agora para trás, admito algum excesso de entusiasmo na minha análise ao filme - as falhas do filme não me impediram de apreciar muito um regresso à Terra Média, sobretudo com o eye candy que Jackson e os feiticeiros da Weta Workshop produziram. An Unexpected Journey revelou-se um filme interessante, sem dúvida, mas se o fosse reavaliar hoje dar-lhe-ia menos um ponto: houve alguns problemas de ritmo, e esteve sempre um tanto ou quanto perdido entre o tom infantil e a estrutura de fábula da sua fonte, e o seu papel enquanto sequela da aclamadíssima trilogia The Lord of the Rings, mais adulta, solene e sombria. 

Para todos os efeitos, Peter Jackson conseguiu resolver esse problema quase na totalidade: ao afastar-se tanto do tom mais infantil de algumas cenas do primeiro capítulo como da solenidade de The Lord of the Rings, The Desolation of Smaug acaba por ser um filme mais coeso e harmonioso na junção dos seus vários elementos. O que Jackson não evitou foi a armadilha dos segundos capítulos das trilogias - e infelizmente, as costuras de todo o projecto ficaram bem à vista. (spoilers)

Um dos problemas mais evidentes da adaptação de The Hobbit em formato de trilogia reside na divisão entre os vários capítulos - a história é curta, e não foi pensada para qualquer divisão. O primeiro filme resolve a coisa com competência ao terminar na curta batalha entre os Anões e os Orcs após a fuga precipitada dos túneis das Montanhas Nebulosas; mas o segundo filme não teria tamanha benesse. Jamais poderia terminar antes de mostrar Erebor e Smaug; mas, a concluir com a batalha de Laketown e a queda do dragão, arriscava-se a que a Batalha dos Cinco Exércitos não fosse suficiente para preencher um terceiro filme, mesmo com todo o material levantado de anexos. Assim, Jackson viu-se obrigado a inventar uma sequência de acção a opor os Anões e Bilbo a Smaug no interior de Erebor. O que não é completamente disparatado, dado que a cena funciona a vários níveis: é uma sequência de aventura muito ritmada que permite ao espectador não só ter uma noção das enormes dimensões de Erebor, como também do tesouro lá guardado, e do próprio Smaug. Em termos visuais, o interior da Montanha Solitária está magnífico, e o dragão que lá habita, e a quem Benedict Cumberbatch empresta a voz, é soberbo. 


Mas quando os créditos finais começam a rolar mal Smaug levanta voo para incinerar Laketown, é impossível não nos interrogarmos: isto acaba aqui? Se compararmos com The Two Towers, vemos como Jackson conseguiu dar à trilogia The Lord of the Rings uma segunda parte muito competente: encerrou o conflito de Rohan e Fangorn com Isengard, e deixou o terreno preparado para o que se seguiria. É certo: os livros prestam-se a isso. Na prática, porém, toda a sequência de Erebor em The Desolation of Smaug só pode assumir algum significado com a resolução do conflito que apresenta - e essa resolução ficou adiada para o próximo Natal, deixando esta segunda parte fatalmente coxa.


Ao contrário do que se possa pensar, a comparação da trilogia The Hobbit com The Lord of the Rings é injusta - ao trabalhar a primeira como prequela directa da segunda, dando-lhe um tom mais próximo e introduzindo inúmeros shout-outs, referências e um certo elfo que não devia ter mais do que um cameo neste filme, Jackson convida o espectador a apreciar ambas as obras como partes integrantes de um mesmo universo e de uma mesma continuidade narrativa. Nesse sentido, é incompreensível como um fã assumido de Tolkien e um conhecedor da Terra Média se deixou deslumbrar ao ponto de quebrar a coerência interna do universo ficcional que se propôs adaptar. E fê-lo em duas situações muito concretas (e uma possível terceira).


A primeira, com o romance impossível de Tauriel (Evangeline Lilly) com Kili (Aidan Turner): ao colocar essa possibilidade, Jackson acaba por desvalorizar na trilogia original a singularidade da amizade estabelecida entre Legolas e Gimli. Afinal, quão invulgar será uma amizade entre dois guerreiros, um Anão e um Elfo, quando para todos os efeitos já houve um romance entre elementos de ambos os povos? Certo: o filme talvez precisasse de um romance, motivo mais do que suficiente para, em The Lord of the Rings, puxar para a frente (e colorir) a relação de Aragorn e Arwen; mas em The Desolation of Smaug, o romance proposto, ainda que de impossível concretização (até pelo destino de Kili), acaba se aproximar mais de uma fan fiction irrelevante - e contraditória - do que com uma liberdade artística natural numa adaptação. Isso seria, por exemplo, um romance directo entre Legolas e Tauriel, por mais batidas que estejam as paixões entre príncipes e plebeias.


A segunda quebra de coerência interna funciona por repetição, e reside na sequência de Dol Guldur, com o confronto entre Gandalf (Ian McKellen) e o Necromante (Benedict Cumberbatch, uma vez mais) quando este se assume como Sauron. Não se trata apenas de Jackson se ter desviado muito daquilo que Tolkien descreveu, fora de The Hobbit, sobre a reunião do Conselho Branco e a expulsão de Sauron da sua fortaleza no Sul de Mirkwood; trata-se, sim, de toda a cena ser uma repetição quase literal do combate entre Gandalf e Saruman em The Fellowship of the Ring, que acabou com aquele feito prisioneiro no pináculo de Orthanc. Com a diferença de que em The Desolation of Smaug o combate é mais intenso e impressionante em termos visuais, e Gandalf exibe um poder na aparência mais vasto do que aquele que possuía quando enfrentou o Feiticeiro Branco em Isengard ou o Balrog de Morgoth na passagem de Mória. No final fica a sensação de que tudo aquilo serviu para justificar a fugaz presença do Radagast de Sylvester McCoy no elenco - over the top como sempre.


No resto, alguns desvios narrativos e algumas liberdades criativas e interpretativas em relação ao livro original tornam-se incompreensíveis por nada acrescentarem à narrativa. A sequência de Beorn foi contada ao contrário para prejuízo da personagem - com a caracterização soberba do actor Mikael Bersbrandt a sublinhar a rapidez com que uma das melhores passagens do livro se esgota (quão magnífica teria sido a cena se a forma de urso não tivesse sido logo mostrada de dia, mas apenas à noite..!). A travessia de Mirkwood foi encurtada para precipitar o confronto com as aranhas gigantes; Lee Pace torna Thranduil irremediavelmente cheesy (o diálogo com Thorin é doloroso de acompanhar, com o rei dos Elfos quase em modo comic book villain). A separação da Companhia, com alguns Anões a ficarem em Laketown com Kili, ferido por uma flecha Morgul (o que poderá ser a terceira quebra na coerência interna da narrativa), serve de propósito apenas para uma trama secundária que não devia existir de todo. E com Azog ao serviço de Sauron, foi necessário inventar mais um Orc irrelevante para liderar a perseguição - que, tal como o seu antecessor, também sobreviveu ao final do filme.


Que não se pense, porém, que The Desolation of Smaug é um mau filme. Muito longe disso. Como aventura, funciona bastante bem, sobretudo na segunda parte - muitas peripécias a sucederem-se a bom ritmo, e um excelente diálogo entre Bilbo e Smaug, naquela que terá talvez sido a melhor sequência de toda a trilogia até agora. Ian McKellen continua a emprestar a gravitas necessária a Gandalf. Martin Freeman é um Bilbo perfeito - tem menos destaque do que no primeiro filme, mas com as suas expressões e os seus trejeitos consegue sempre roubar as cenas em que entra. Os Anões, ainda que um pouco mais indistintos em conjunto devido à fragmentação da narrativa, nem por isso perdem o interesse (com destaque para os poucos, mas excelentes momentos do Balin de Ken Stott). Luke Evans está perfeito como Bard, e a interpretação um pouco over the top de Stephen Fry no papel de Mayor de Laketown acaba por não destoar.


Mas é no campo visual que The Desolation of Smaug se revela magnífico. Os cenários reais, já se sabe, são lindíssimos - e os fabricados por CGI nem por isso lhes ficam atrás. Mirkwood revela-se tenebrosa, e as aranhas gigantes são magníficas - aterrorizantes o suficiente para o propósito do filme, mas sem fazerem sombra à mãe de todas as aranhas daquela região da Terra Média, a Shelob de The Return of the Ring. O reino dos Elfos de Mirkwood está extraordinário na sua concepção, e a icónica fuga nos barris é frenética q.b. - com a perseguição de Orcs aos Anões, e de Elfos aos Orcs, a dar-lhe ainda mais ritmo; Laketown está soberba, com o seu aspecto caótico de cidade medieval construída sobre o lago. No campo oposto, as soturnas ruínas de Dol Guldur, com destaque para a tumba dos Nove - um local mesmo assustador, à altura dos Ringwraiths que foram apresentados em The Fellowship of the Ring. Mas é Erebor que brilha em toda a sua glória computorizada, um cenário magnífico com um Smaug praticamente irrepreensível.


Não fosse pelo legado de The Lord of the Rings, talvez muitas das falhas de The Desolation of Smaug - e, por arrasto, dos dois terços da trilogia The Hobbit já apresentados - fossem mitigadas e pudessem mesmo ser perdoadas. Mas ao estabelecer o nexo narrativo, ao optar pelo formato de trilogia e ao dar ao Legolas de Orlando Bloom mais do que um mero cameo, Peter Jackson tornou todas as comparações não só inevitáveis como também necessárias - e uma vez nesse campo, todos os problemas da trilogia em geral, e desta segunda entrada em particular, tornam-se incontornáveis, e a espaços grotescos.Os desvios desnecessários face à fonte, os momentos de - e cintando um crítico -, pura fan fiction, a introdução de sequências que, apesar de vistosas, não servem propósito algum para além de estender a trama para ter filmes. O que se revela estranho quando outros momentos, retirados do livro, surgem apressados e fragmentados. The Desolation of Smaug não deixa de ser um regresso interessante à Terra Média, e há muito para apreciar no filme; mas é impossível afastar a sensação de que Peter Jackson se deslumbrou, qual anão perante o tesouro de Smaug, e perdeu o pé. 6.9/10

The Hobbit: The Desolation of Smaug (2013)
Realização de Peter Jackson
Argumento de Peter Jackson, Philippa Boyens e Guillermo Del Toro com base no romance de J. R. R. Tolkien
Com Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, Benedict Cumberbatch, Luke Evans, Stephen Fry, Evangeline Lilly, Orlando Bloom, Lee Pace, Ken Stott, Graham McTavish, William Kircher, James Nesbitt, Stephen Hunter, Dean O'Gorman, Aidan Turner, John Callen, Peter Hambleton, Jed Brophy, Mark Hadlow, Adam Brown e Sylvester McCoy
161 minutos

5 comentários:

ruisdb disse...

Muito boa a análise. Permite-me uma correcção. Penso que quando dizes "quando este se assume como Saruman." te referes a Sauron

João Campos disse...

Obrigado. E obrigado (todas as correcções são permitidas aqui!). Foi, de facto, erro meu - já está corrigido.

(é o que dá escrever de madrugada...)

ruisdb disse...

Com isto tudo nem comentei o teu texto. Parece-me bastante equilibrado. A respeito deste filme têm surgido umas críticas muito bota abaixo. Excessivas e injustas. É evidente que como obra de partida o Hobbit não é o LOTR. É discutível a opção do Peter Jackson de reler o hobbit no estilo épico do LOTR? é. Mas não é necessariamente errado.
É evidente que ele tem pouco material escrito pelo próprio Tolkien a preencher os buracos (o conflito com o necromante etc...). E muito tem de vir da cabeça dos argumentistas. E isso nota-se.
Mas, sinceramente, prefiro isto à versão 8 dum spiderman qualquer.
A falha maior deste filme é a discrepância a respeito da fixação de Thorin com a Arkenstone. Vários personagens (Smaug, thranduil) referem-se à cobiça dos anões e à sua tendência obcessiva; isso acta como um factor de dúvida para Bilbo mas a realização não está a conseguir mostrar a cedência à tentação por parte de Thorin.

João Campos disse...

O meu problema com o filme é o Jackson reduzir as cenas que estão no livro para dar espaço a cenas inventadas que de pouco servem. O caso do Beorn é disso um excelente exemplo - quão melhor teria sido se a personagem tivesse sido apresentada em forma humana (mas sem aquele truque do Gandalf com os anões, claro...), e só à noite se revelasse o que ele era de facto. Ou toda a cena de Mirkwood, com o rio e Bombur adormecido antes das aranhas...

A questão da Arkenstone não me incomodou por aí além porque de facto a pedra vai ser o plot device fundamental da Batalha dos Cinco Exércitos. Thorin precisa dela para unir os clãs - OK, é dar largas à imaginação, mas sempre fica uns furos acima do romance da Tauriel com o Kili.

Podia ainda ter falado da cena do Bilbo a trucidar aquela aranha pequena por causa do Anel - que não é a, mas dificilmente seria necessária. É um piscar de olhos à influência do Anel que ficamos a conhecer na trilogia original.

Enfim, não é um mau filme - é uma aventura com óptimos momentos. Mas já no ano passado, apesar de ter sido mais entusiástico na crítica, não pude deixar de pensar: quem me dera que tivesse sido o Del Toro a fazer isto.

João Campos disse...

(...)trucidar aquela aranha pequena por causa do Anel - que não é má, mas (...). Corrigido.