9 de dezembro de 2013

Ficção científica: Primeiros contactos, pontos de acesso

Na semana passada, Gareth L. Powell publicou, na qualidade de blogger convidado, um artigo no SF Signal que originaria uma acesa discussão na caixa de comentários, com os ecos a chegarem ao io9 (e agora, também aqui). Intitulado "Moving Forward", o artigo de Powell incidiu sobre as origens pulpy da ficção científica, sobre as convenções e as normas que marcaram as obras do período conhecido como a "Golden Age" da ficção científica, sobre o carácter datado destas obras e, por fim, como a recomendação daqueles clássicos podem hoje afastar leitores menos familiarizados com o género num primeiro contacto. O tema, diga-se de passagem, é tão interessante como pertinente; há alguns meses (é difícil precisar quantos sem esgaravatar nas profundezas do Facebook, rede social que, como todas, é menos dada à preservação da memória do que à espuma dos dias) houve na página da Trëma uma discussão bastante acalorada sobre a relevância, ou falta dela, da (re)publicação dos clássicos da ficção científica num mercado como o nosso, com vista a atrair leitores e a formar novos públicos. Em termos básicos, Powell coloca uma questão importante: devem os fãs de ficção científica recomendar a novos leitores clássicos da "Golden Age", ou livros mais recentes?

A resposta, porém, parece-me bastante mais complicada do que aquilo que Powell, no seu artigo, ou Steve Davidson (da Amazing Stories), nos respectivos comentários, possam ter dado a entender.

Até porque o artigo se revela impreciso - para não dizer enganador - no que diz respeito às balizas temporais dos vários períodos da história da ficção científica literária. De forma mais ou menos resumida, a dita "Golden Age" corresponde, grosso modo, a um período que começa em 1937 com a chegada de John W. Campbell ao cargo de editor da revista "Astounding" (mais tarde, "Astounding Science Fiction"), e à publicação nas suas páginas, ao longo da década seguinte, de muitos autores que viriam a marcar de forma indelével o género. De Heinlein a Asimov, de Sturgeon a Del Rey, muitos foram os nomes, hoje clássicos, que viram a sua ficção curta publicada nas páginas da "Astounding" de Campbell. Será talvez mais difícil precisar quando termina esta fase - o ano de 1946 costuma ser apontado*, mas mesmo esta data não surge incontestada. Robert Silverberg, por exemplo, defende que a verdadeira "Golden Age" da ficção científica deu-se já nos anos 50. Conforme o próprio descreveu no (excelente) ensaio Science Fiction in the Fifties: The Real Golden Age**,
Historians of science fiction often speak of the years 1939–1942 as "the golden age." But it was more like a false dawn. The real golden age arrived a decade later, and—what is not always true of golden ages—we knew what it was while it was happening.
De facto, foi a partir dos anos 50 que a publicação de ficção científica em livro se começou a tornar recorrente***; até então, era na ficção curta que a ficção científica fascinava gerações sucessivas de leitores (não se estranhando, por isso, a a ideia de Steve Davidson de que o conto é "o formato original da ficção científica"); e muitos romances originalmente serializados em revistas acabaram publicados em paperback: Foundation, de Isaac Asimov, The Demolished Man, de Alfred Bester, e A Canticle for Leibowitz, de Walter M. Miller, Jr., serão três exemplos entre muitos. Se seguirmos a interpretação de Silverberg, vemos que a dita "Golden Age" da ficção científica só viria de facto a terminar com o arranque da "New Wave", com o trabalho pioneiro de Michael Moorcock em Inglaterra ao leme da revista "New Worlds", e com Harlan Ellison nos Estados Unidos ao editar a antologia revolucionária Dangerous Visions em 1967, e já com a influência de obras marcantes na década anterior, como The Stars My Destination, de Alfred Bester, ou de autores mais irreverentes, como Philip K. Dick. O objectivo da "New Wave", passe a simplificação grosseira, era virar o género do avesso: abri-lo a novos temas, a novos autores - e autoras! -, à experimentação estilística e formal, e, enfim, conferir-lhe um carácter mais "literário".

Note-se que nenhum destes aspectos surge por acaso: a ficção científica da "Golden Age", sobretudo a reminescente da época das pulps, ficou tão conhecida pela imaginação das suas histórias como pela fraca qualidade da sua prosa (ainda que a negatividade com que se fala da escrita desse tempo seja muito exagerada), pelas histórias movidas pelo plot e por personagens com pouca densidade e pouco carácter. E, pecado capital aos olhos contemporâneos, com o sexo feminino representado pouco e mal, de forma demasiado machista. O que, bem vistas as coisas, no contexto da época não será de estranhar - até ao final dos anos 60 o meio literário no género era essencialmente masculino, caucasiano e anglo-saxónico. Não que tenha deixado de o ser após aquela década; a ficção científica manteve-se durante muitos anos como coutada sobretudo masculina, e diria que talvez só agora começará a aproximar-se de algum equilíbrio; no entanto, a partir dos anos 60, mais vozes femininas começaram a afirmar-se nas fileiras do género, enriquecendo-o a todos os níveis (e esse contributo para o género daria para alimentar um blogue durante muito, muito tempo).


Como é bom de ver, tais generalizações relativas à "Golden Age" não tornam toda a literatura de ficção científica anterior à revolução da "New Wave" ilegível para os leitores deste novo milénio. Colocada nos termos da datação e do seu carácter "machista", esta questão acaba por não ser tão diferente quanto isso de polémicas que ocasionalmente irrompem nos meios literários mais elitistas - basta recordarmos as polémicas da bowdlerization da Huckleberry Finn, de Mark Twain, a propósito da sua utilização da palavra "nigger" (entre outras), ou das tentativas de censura ao álbum Tintin no Congo, de Hergé, pelos seus traços coloniais e racistas. Como toda a literatura - toda a arte, aliás -, também a ficção científica é filha do seu tempo e das suas circunstâncias; com todas as suas idiossincrasias, a ficção científica da "Golden Age" merece ser lida com atenção por todos os interessados pelo género nos seus vários formatos - seja pelos seus conceitos, pelas suas ideias, pelas suas convenções, e mesmo pelas características que hoje percebemos como "erradas" ou "incorrectas". Tudo isso faz parte de um legado riquíssimo, que há alguns meses Damien Walter enaltecia, de forma hiperbolizada mas sincera, na sua coluna online no "The Guardian":
(...) What the greats of Golden Age SF may have lacked in literary skills they made up for with blistering powers of imagination and the cunning deployment of middle initials. And between them they created a genre that is arguably among the most influential literary movements of the last century. 
What other literary genre can claim the influence over popular culture, and hence the hearts and minds of the masses, of sci-fi? From blockbuster Hollywood movies to the vast popularity of video game franchises such as Halo, Mass Effect and Bioshock, sci-fi is a constant in the lives of today's generation. (...)
(por curioso que possa parecer, nos comentários ao artigo de Powell o mesmo Damien Walter surgiu como agente provocador)

Deixemos, porém, a história da ficção científica de parte para regressarmos ao essencial - no caso, à pergunta que Powell colocou no seu artigo. Clássicos da "Golden Age": podem ser atractivos para leitores contemporâneos menos familiarizados com o género (ou não familiarizados de todo), ou estarão de tal forma datados que se tornaram ilegíveis para os novos leitores do século XXI? Para os leitores mais dedicados do género, como já se viu, a sua leitura poderá ser importante, quando não fundamental. Para novos leitores, diria que não há uma resposta possível, mas várias; na prática, tantas quantos os leitores - com a convicção de que nenhuma delas passará pela dialéctica entre "clássicos datados" e "obras contemporâneas", ou por qualquer divisão entre "Golden Age", "New Wave" e o que se lhes seguiu. A segmentação terá, sim, de passar pelas preferências, pelos interesses e pela "bagagem" de cada um desses leitores potenciais.

Leitores mais jovens, e por isso mais dedicados às tendências do mercado young adult contemporâneo, poderão talvez encontrar em Psion, de Joan D. Vinge, ou em Ender's Game, de Orson Scott Card, excelentes portas de entrada no género - com este último a ser considerado não só um clássico da ficção científica geral, como também um livro fundamental da ficção científica militar, sub-género ainda em voga e com algumas obras notáveis. O mesmo se pode dizer do pós-apocalipse, tão na moda: A Canticle for Leibowitz é um ilustre representante deste tema. E que dizer das distopias? Não creio ser difícil de imaginar que um(a) adolescente que, aos quinze anos, se entusiasma com The Hunger Games venha aos dezoito ou dezanove a ler com entusiasmo as distopias adultas que se tornaram no cânone do género: Nineteen Eighty-FourA Clockwork OrangeFahrenheit 451 ou Brave New World. Clássicos intemporais de mérito inegável, e fonte de muita discussão entre as barricadas da ficção científica e da elite literária ao longo dos anos; e que são tão lidas pelos fãs do género como por leitores mainstream.

E falando nos leitores do mainstream - da dita "ficção literária", se quisermos. Para além das distopias adultas, decerto encontrarão muita food for thought no arrojo narrativo e temático de Stand on Zanzibar, de John Brunner; nas desconstruções da identidade de género e da política que Ursula K. Le Guin (uma das mais talentosas prosadoras que o género já conheceu) fez em The Left Hand of Darkness e The Dispossessed, respectivamente; na prosa de Iain M. Banks com a extravagante space opera da Culture; nas referências literárias de Dan Simmons em Hyperion; no realismo mágico de Ray Bradbury com The Martian Chronicles ou de Ian McDonald em Desolation Road; ou no drama de Charlie em Flowers for Algernon, de Daniel Keyes. Isto, note-se, para nem falar dos muitos livros onde autores do mainstream exploram conceitos tradicionais da ficção científica: The Children of Men, de P.D. James, The Time Traveler's Wife, de Audrey Niffenegger, e The Road, de Cormac McCarthy, serão sem dúvidas bons exemplos.

Adiante. Os leitores de fantasia, que nem sempre são - ou quase nunca são - também leitores de ficção científica, poderão encontrar em obras nas quais as fronteiras entre ambos os géneros se encontram mais esbatidas pontos de contacto suficientes para que a ficção científica mais hard se torne talvez mais apelativa. O incontornável Dune, de Frank Herbert, será disso um exemplo; e poderá muito bem fazer-se acompanhar por livros como Lord of Light, de Roger Zelazny, ou The Snow Queen, de Joan D. Vinge. Obras que, sem desprezar as suas componentes de ficção científica, se encontram em termos de estrutura e de temas mais próximas de muitos trabalhos de fantasia moderna. E os apreciadores de ficção mais bizarra - a palavra da moda, julgo, importada: weird - terão muito para descobrir na vasta bibliografia de Philip K. Dick.

Que, aliás, pode muito bem ser recomendado aos apreciadores de contos pela qualidade da sua ficção curta. Ou Harlan Ellison, um dos grandes mestres do formato.

Mesmo a ficção científica da "Golden Age" poderá encontrar hoje um público interessado, e não necessariamente familiarizado com o género literário. Não deixa de ser curioso, e algo irónico também, notar como as críticas que são feitas às obras daquele período são muito semelhantes às que são feitas hoje em dia ao universo dos videojogos - meio moderno em ascensão e que ainda convive com os estereótipos da simplificação narrativa, da sobreposição dos conceitos, do plot e do worldbuilding à caracterização das personagens ou ao arrojo temático*****. Isto, entenda-se, em termos gerais - há vários e bons exemplos de jogos onde a escrita, a boa escrita, se revela tão importante como os aspectos visuais e interactivo; mas não é essa a percepção global. Numa altura em que a ficção científica, como referiu Damien Walter, tem uma presença tão forte na cultura popular em geral, e na indústria dos videojogos em particular, talvez os clássicos do género possam ganhar um novo fôlego - pelos mundos que encerram, pelas ideias que apresentam, pelas possibilidades que oferecem.

E as sugestões que aqui deixei basearam-se apenas na estante, nem por isso muito grande, que tenho aqui ao lado (e que já mencionei, por várias vezes, neste blogue); muitas outras poderiam ser dadas por leitores mais experientes, com bibliotecas e leituras distintas - umas mais recentes, e outras mesmo mais antigas. Essa, aliás, é a grande riqueza da ficção científica literária no seu todo, das suas origens aos seus mais recentes trabalhos - uma bibliografia vastíssima, de uma riqueza conceptual ímpar, onde podem ser encontrados todos os tipos de prosas, de narrativas, de ideias, de personagens. E onde qualquer leitor, venha ele(a) de onde vier e tenha ele(a) as referências que tiver, poderá encontrar algo de que goste.



** Publicado como introdução no volume Nebula Awards Showcase 2010, ed. Bill Fawcett (New York: ROC, 2010). Leitura recomendada, claro.

***Os Hugo Awards, por exemplo, só começaram a ser atribuídos em 1953; o primeiro romance premiado, The Demolished Man, de Alfred Bester, foi publicado em várias partes nas páginas da revista "Galaxy Science Fiction", e só mais tarde editado em livro; só seis anos depois, em 1959, o prémio desta categoria foi atribuído a um romance publicado originalmente em livro: A Case of Conscience, de James Blish.

**** A crónica tem o título Science fiction's Golden Age writers left a fantastic legacy, e foi publicada a 13 de Setembro.

***** Ou até mesmo no tratamento das personagens femininas; hoje, será praticamente impossível evitar o debate inflamado em redor do fan service. Mas não entremos por aí. 

2 comentários:

Safaa disse...

Curiosamente, essa história da qualidade fraca da prosa dos escritores da Golden Age é explicada pela Ursula Le Guin na entrevista que concedeu ao Paris Review. Os autores davam preferência a uma escrita curta, seca, jornalística como tentativa de imitar o estilo Hemingway porque se considerava que era assim que devia ser a escrita masculina. Mas o Damien Walter tem razão quando diz que o contributo dessa geração não passa tanto pela escrita, mas pelo poder da imaginação. Há imensas histórias desse tempo que podem servir como porta de entrada para novos leitores de FC, mas o problema está mais nos leitore que insistem que apenas ESTES devem servir como porta de entrada e que este tipo de FC é o único que é válido. Por mais que seja difícil para certas pessoas aceitar que as distopias young adult de hoje estão a ensinar pela primeira vez a muita gente o que é uma distopia, podemos usar isso a nosso favor e mostrar o caminho para outros clássicos e até romances contemporâneos de FC.

João Campos disse...

Também reparei nesse detalhe da entrevista da Le Guin. E sim, subscrevo a tese do Damien Walter. Há, de facto, imensas histórias que podem e devem ser lidas hoje - mas sim, muitas vezes o problema reside não nuns ou noutros livros, mas nos próprios fãs, que se entrincheiram não só para o exterior, mas também no interior do fandom.