19 de novembro de 2013

Escape From New York: Cidade negra

Numa época em que a distopia enquanto (sub)género ficcional voltou a estar na linha da frente, talvez seja interessante o regresso a John Carpenter e ao icónico Escape From New York, filme de 1981 que introduziu o anti-herói Snake Plissken (Kurt Russel). Mais um clássico de culto do que um sucesso crítico e comercial, Escape From New York apresenta um futuro próximo alternativo no qual a criminalidade nos Estados Unidos subiu para níveis absurdos, obrigando as autoridades a transformar a ilha de Manhattan numa vasta colónia prisional, cercada por um muro intransponível. Todos os acessos estão cortados ou minados, e não há autoridade oficial para lá da vedação - na velha Nova Iorque, quem lá vive está por sua conta. Mas quando o Air Force One, que transportava o Presidente dos Estados Unidos para uma cimeira de paz com a União Soviética e a China, é desviado por terroristas para se despenhar no meio da cidade-prisão, as autoridades vêem-se obrigadas a recorrer a uma wild card para resgatar o Presidente antes do fim da cimeira, para tentarem colocar um fim à guerra que é travada entre as super-potências: Snake Plissken, antigo herói de guerra tornado criminoso, condenado a prisão perpétua e prestes a ser enviado para a prisão de Manhattan. 

Escape From New York é anterior ao extraordinário The Thing, e isso nota-se: alguns dos elementos que fazem de The Thing num clássico da ficção científica, como a utilização cirúrgica de uma banda sonora e de uma iluminação minimalistas para estabelecer uma atmosfera tensa, já estão presentes nesta distopia, ainda que não tão depurados. A banda sonora é da autoria do próprio Carpenter - uma batida electrónica que pauta o ritmo do filme e se funde na perfeição com as imagens.


Em termos estéticos, Escape From New York é formidável. Do prólogo acompanhado por imagens em linhas coloridas à skyline da Nova Iorque pré-11 de Setembro - com as duas torres do World Trade Center em destaque - cercada por um muro que encerra a desolação de uma metrópole arruinada, nada é deixado ao acaso nesta caracterização. A cidade está ao abandono, destruída, mergulhada em trevas e em sujidade - Carpenter filma-a com mestria a partir das sombras, sobretudo durante a noite escura - e mesmo as escassas cenas diurnas parecem pálidas, reflexo do mundo que se estende para lá dos limites da cidade-prisão.


A ironia que Carpenter imprime a Escape From New York é bem visível - com a Estátua da Liberdade a transformar-se em símbolo de opressão quando nela é montada a central de todo o aparato securitário. A escolha estará decerto longe de ser casual, e é impressionante a forma como toda aquela distopia consegue ser descrita em alguma profundidade recorrendo apenas a pormenores. A refinaria montada em plena Biblioteca Pública. Os espectáculos atrozes de uma Broadway decrépita. A demência do Presidente, evidenciada nas últimas cenas, como se à decrepitude moral estivessem associadas figuras políticas menores. A confusão estética, já assinalada num excelente artigo do Tiago Cavaco. Nada de grandes descrições ou de infodumps desnecessários: fiel à regra do show, don't tell, Carpenter poupa nas palavras para deixar as imagens mostrar o estado daquele 1997 alternativo. E, diga-se de passagem, que imagens.


É claro que ver hoje Escape From New York, tantos anos volvidos após a sua estreia, não deixa de ser um exercício curioso. Com as imagens do 11 de Setembro cristalizadas na memória colectiva, é impossível não as reviver quando se vê a skyline pela primeira vez, quando o Air Force One se precipita para um edifício de Manhattan, ou quando Snake Plissken aterra o seu pequeno jacto no telhado de uma das torres. Um desfasamento temporal que pode indicar o carácter datado da película, ou prova irrefutável do seu universo alternativo?


É uma pena que, em termos narrativos, Escape From New York acabe por ficar um pouco aquém da sua prometedora premissa e do seu inteligente worldbuilding. Apesar da força da sua imagem e da sua banda sonora, o filme nunca consegue construir o suspense de forma eficaz - a maior parte das cenas de acção acabam por parecer estranhamente mornas. A excepção será talvez a fuga de Snake às hordas do submundo da cidade, numa cena quase reminescente de outras películas de terror. As personagens que o protagonista encontra nem por isso se revelam interessantes por aí além - excepção feita ao taxista (Ernest Borgnine), intrigante na sua aparente loucura, e ao vilão (Isaac Hayes), ascendido a líder revolucionário.


Ainda assim, há muito para apreciar em Escape From New York. Na prática, é um Carpenter em forma, que entre dois clássicos absolutos (Halloween e The Thing) assina esta interessante peça distópica, fascinante na projecção do seu ambiente eighties, na sua inteligência estética e na atmosfera única que cria em menos de 100 minutos. E, claro, no carácter de Snake Plissken, homem de poucas palavras e anti-herói incondicional, que redime muitas das falhas do argumento com o seu gesto final. 7.2/10

Escape From New York (1981)
Realizado por John Carpenter
Argumento de John Carpenter e Nick Castle
Com Kurt Russell, Lee Van Cleef, Ernest Borgnine, Isaac Hayes, Donald Pleasence, Harry Dean Stanton, Adrienne Barbeau e Tom Atkins
99 minutos

2 comentários:

Loot disse...

Filme de culto sem dúvida a introdução de um dos mais míticos heróis de acção. A atmosfera dos filmes do Carpenter é um coisa sempre formidável, com aquela banda sonora electrónica que descreves.

Prefiro o The Thing é verdade, mas este também vale tanto a pena :)

E o escape from LA já viste?

João Campos disse...

Há muitos anos. A cena do Snake a surfar o tsunami fica na memória.