12 de novembro de 2013

Ender's Game: The enemy gate is down

Corria o ano de 1977 quando, nas paginas da revista "Analog Science Fiction and Fact", um jovem autor norte-americano chamado Orson Scott Card viu publicado um conto seu. Esse conto, intitulado Ender's Game, contava a história de "Ender" Wiggin, uma criança-prodígio com uma ascensão meteórica na hierarquia militar devido à genialidade táctica revelada na "Battle School" - e será essa sua capacidade que irá vencer a guerra que a Humanidade trava contra uma raça de insectóides alienígenas. Já nos anos 80 esse conto seria alargado para um romance, curto e intenso, que manteve o título original - e que num ápice se tornou num dos mais aclamados clássicos da ficção científica moderna, tanto pela crítica como pelo fandom, vencendo os principais prémios do género e dando origem a uma vasta série literária que Card tem desenvolvido desde então. E há muito que se falava de uma adaptação ao cinema, com o próprio autor a escrever vários argumentos ao longo dos anos. Em 2009, o projecto começou por fim a sair do development hell que mantém no limbo várias adaptações de clássicos da ficção científica literária; e um ano mais tarde, o realizador Gavin Hood (X-Men Origins: Wolverine) entrou no projecto, seguido de um elenco a todos os níveis impressionante. A estreia foi marcada para 2013; e, 28 anos volvidos sobre a publicação do livro, Andrew "Ender" Wiggin, Mazer Rackham, a "Battle School" e os Formics chegaram finalmente ao grande ecrã, com Ender's Game.



A história abre com uma cena (demasiadas vezes repetida ao longo do filme) da primeira guerra com os Formics e com o sacrifício heróico de Mazer Rackham para derrotar os invasores - para logo de seguida passar para Andrew "Ender" Wiggin (Asa Butterfield) e as suas interacções com o mundo que o rodeia: estratégicas mas decididas com os bullies da escola, disfuncionais com a sua família, à excepção da sua irmã, Valentine (Abigail Breslin) - o irmão, o violento Peter (Jimmy Pinchak), tem muito pouco tempo no ecrã para se perceber ao certo a sua influência (por mais que Ender a mencione ao longo do filme).


Para todos os efeitos,  o problema que acaba por minar Ender's Game, tanto quando tomado como filme por si só ou como adaptação de outra obra, é o pouco tempo dedicado à evolução do protagonista e do mundo que o rodeia. Quem nunca tenha lido o livro, saberá que Ender é um terceiro filho, e que isso tem uma conotação negativa - mas talvez não entenda bem porquê. Não há trabalho de worldbuilding para além das batalhas - e se é certo que o enquadramento original será demasiado reminiscente da Guerra Fria, mesmo após as revisões do autor (atentemos na data de publicação), um pouco mais de contextualização seria necessária, porventura essencial, para tornar evidente o que está em causa com o programa da "Battle School".


E as cenas da "Battle School" voltam a sofrer da pressa que pautou a introdução. Os treinos intensivos, a divisão por equipas, os treinos e os jogos de combate na "Battle Room" - tudo isto encontra-se reduzido ao essencial. A interacção entre as polaridades diferentes de Graff (Harrison Ford) e Anderson (Viola Davis) enquanto monitorizam o progresso dos jovens é interessante de acompanhar; esse progresso, porém, está construído de forma a tocar apenas nos pontos essenciais, quase como se Gavin Hood e os argumentistas o tivessem feito com base numa checklist. É óbvio que Ender é um miúdo muito inteligente - o filme não se cansa de o dizer -, mas o seu génio táctico não se perceberia se não fosse martelado tanta e tanta vez através de deixas, e não de acções. Não são mostradas batalhas suficientes, nem é mostrada uma evolução clara.


Certo: no livro, o apelo é acompanhar o processo mental de Ender à medida que concebe e adapta as suas tácticas, e tal é muito difícil de passar para filme. Mas houve aqui a oportunidade de mostrar uma vertente competitiva e estimulante que foi claramente perdida. Tal como foi perdida, ainda que não na totalidade, a oportunidade de foreshadowing que o intrigante videojogo que Ender descobre constitui. Os elementos principais estão lá, claro - mas um plot point tão crucial necessitaria talvez de mais um ou dois momentos que acompanhassem de forma mais abrangente a evolução mental do protagonista.


Em termos práticos, os dois primeiros actos do filme acabam por estar mais condensados para que o terceiro acto possa ter tempo para tecer as suas constantes reviravoltas e apanhar os espectadores de surpresa - aqueles que não leram o livro, entenda-se - com a revelação final. E as reviravoltas estão lá, nos momentos certos e executadas com competência; falta é toda a evolução que ficou perdida ao longo de um filme algo curto (pouco menos de duas horas) que pedia mais uns bons 20 minutos para se tornar mesmo envolvente. A revelação final, que no livro é bombástica, acaba assim por perder muita da sua força.


Dito isto, importa salientar que, ainda que apressada, a transposição não cometeu alguns erros crassos - e se é pena que seja dado tão pouco destaque aos irmãos de Ender (sobretudo pela influência que ambos, pelos seus atributos, têm sobre ele), nem por isso deixa de ser louvável que os argumentistas tenham deixado de fora o enredo secundário envolvendo a ascensão de Peter e Valentine. Se em 1985 o optimismo quanto às potencialidades da internet para estimular um debate global com pertinência e inteligência seria talvez desculpável, em 2013 qualquer visita aos comentários do YouTube (ou às profundezas do 4chan) torna a tese risível, para não dizer disparatada.


E, claro, importa salientar o elenco, que consegue compensar as muitas limitações do enredo. No livro, os miúdos são, de facto, miúdos - Ender tem 6 anos quando a história começa. No filme, foi necessário colocar as personagens na pré-adolescência, ou já adolescentes - e é difícil pensar num elenco melhor. Como não podia deixar de ser, o destaque vai para Asa Butterfield soberbo como Ender - consegue na perfeição a sua inteligência, o seu isolamento, o seu carácter em simultâneo duro e piedoso; se a cena final retém algum do seu impacto original, tal deve-se sem dúvida à interpretação de Butterfield. Hailee Steinfeld interpreta com paixão o papel de Petra Arkanian, com quem estabelece uma amizade muito forte (há indícios de romance, que - felizmente - não são concretizados). Abigail Breslin aparece pouco, mas marca as cenas que tem. Harrison Ford consegue não interpretar um rogue, e está óptimo; com Viola Davis, estabelece uma dupla muito interessante de seguir. E Ben Kingsley é, enfim, Ben Kingsley: carismático, a sair por cima de um argumento que não o serve como talvez devesse. Os restantes actores estão regra geral bem, mas acabam por ter pouco destaque - lamenta-se sobretudo o "apagamento" de Bean (Aramis Knight) e Alai (Suraj Partha).


No que à componente visual diz respeito, o único detalhe a lamentar é que Ender's Game tenha estreado no mesmo ano, e pouco mais de um mês mais tarde, do que Gravity: todas as cenas da "Battle Room" estão bem construídas de um ponto de vista estético, e o filme transmite a sensação de que os miúdos estão a combater em gravidade zero de forma muito competente. Será impossível, porém, esticar mais o adjectivo - perto do puro eye candy do filme de Cuáron, ainda tão recente, a sensação de weightlessness de Ender's Game acaba por parecer banal. O que em nada reduz a qualidade superlativa dos efeitos especiais do filme, com imagens muito bem montadas e detalhes muito inteligentes - como a renderização do videojogo de Ender. Quanto às batalhas espaciais, os Star Wars seguintes que se cuidem: a frota da "International Fleet" está desenhada de forma soberba, e os enxames dos Formics em modo zerg são incrivelmente apelativos; as batalhas entre as duas forças são de encher o olho.


Não posso deixar de lamentar que Ender's Game tenha abdicado dos tais 20 minutos adicionais, cruciais para a caracterização de todo aquele mundo e, sobretudo, para a caracterização de Ender - para mostrar o ascendente da compaixão da irmã e da violência do irmão, para explorar o seu génio táctico um ambiente muito competitivo, para mostrar o seu isolamento e o valor que dá às poucas mas preciosas amizades que estabelece. Os momentos essenciais do livro estão lá, e em si estão bem feitos - mas necessitariam de mais algum desenvolvimento para terem todo o impacto original. Que não se pense que o filme não é bom - em termos gerais, é bastante satisfatório, com uma estética interessante e interpretações muito consistentes; e os momentos bons que tem justificam em pleno o bilhete. Mas não vai tão longe quanto poderia. The enemy gate is down, diz-se a dada altura. Está, de facto. É pena que nunca seja completamente atravessada. 7.5/10

Ender's Game (2013)
Realização de Gavin Hood
Argumento de Gavin Hood com base no romance de Orson Scott Card
Com Asa Butterfield, Hailee Steinfeld, Harrison Ford, Viola Davis, Ben Kingsley, Abigail Breslin, Aramis Knight, Suraj Partha e Nonso Anozie
114 minutos

2 comentários:

ruisdb disse...

Cá está um daqueles filmes que me vai obrigar a ler o livro para ver se há remissão. Interessou-me a centralidade da "educação" no filme: a possibilidade de mudarmos, de nos construirmos...
Mas o filme, em boa parte pelas razões apontadas no texto, fica curtinho. cai demasiado naqueles lugares comuns dos americanos.
E há algumas cenas com problemas de tamanho: Ender é um pré-adolescente. Assim para o minorca; mas em alguns planos está da altura do Harrison Ford. Cresceu no entretanto?

João Campos disse...

Não iria por aí; eu em adolescente também era bem alto... :) Mas sim, alguns truques de perspectiva teriam sido saudáveis.

O livro é excelente, e aborda com muito maior profundidade essas questões - sobretudo no ponto de vista da educação para a guerra.