8 de novembro de 2013

A Wizard of Earthsea: Jogo de sombras

Desde a popularização do género por The Lord of the Rings que a fantasia literária se tem dedicado com regularidade aos épicos - às grandes lutas do bem contra o mal (com maior ou menor ambiguidade e grit conforme a época), aos heróis maiores do que a vida, aos detentores de grande poder que não hesitam em usá-lo. Mas há excepções; e Earthsea, o mundo secundário que Ursula K. Le Guin criou em 1968 com a publicação de A Wizard of Earthsea, é uma delas, distinguindo-se ainda hoje pelo seu extraordinário worldbuilding, pela curiosa subversão à demanda do herói e pela interessante abordagem à magia. Mas vamos por partes.

Ainda que, em termos formais, Earthsea tenha sido apresentada alguns anos antes com os contos The Rule of Names ("Fantastic", 1964) e The Word of Unbinding (idem), foi com a publicação de A Wizard of Earthsea em 1968 que Le Guin expandiu as fronteiras do universo que que criara e lhe deu a forma que se tornaria icónica: um vasto mundo de água polvilhado por inúmeros arquipélagos de milhares de ilhas, mais ou menos isoladas, onde vivem os seres humanos (e, no caso de algumas ilhas mais remotas das "West Reaches", os Dragões). Nas ilhas de Earthsea vivem várias sociedades muito diferentes entre si - e a enorme diversidade racial e cultural desta Humanidade dispersa, revelada e aludida ao longo das viagens do protagonista, é um dos traços mais característicos deste universo e um relevante indicador da sua riqueza conceptual. 

É neste mundo de mar e de terra fragmentada que o leitor é levado para a aparentemente insignificante ilha de Gont, no nordeste de "Earthsea". Nessa ilha escarpada vive um povo pacato; e, numa vila de montanha, conhecemos Duny, um jovem rapaz solitário que desenvolveu um poder institivo sobre os animais (e da sua ligação às aves de rapina surgiu a alcunha "Sparrowhawk", pela qual sempre ficaria conhecido), e a quem uma tia ensinou alguns rudimentos de magia. Mas quando a ilha é invadida e a sua aldeia atacada, Sparrowhawk defende-a com um feitiço engenhoso - e isso chama a atenção do feiticeiro de Gont, Ogion o Silencioso, que toma o rapaz como seu aprendiz e eventualmente lhe revela o seu nome verdadeiro, na linguagem antiga da criação: Ged. É a partir daqui que começa a primeira jornada de Ged, orgulhoso, ambicioso e imprudente - a deixar Gont para ir estudar as artes arcanas na ilha de Roke, onde o Arquifeiticeiro preside aos magos e à escola de feitiçaria. Mas quando um feitiço corre mal e uma sombra irrompe do reino dos mortos, Ged dá por si a enfrentar algo para o qual não estava de todo preparado - e esse acontecimento irá marcá-lo para sempre.

Mais do que uma grande cruzada para salvar o mundo, a demanda de Ged será uma fuga aos seus próprios erros e aos seus próprios fantasmas - até ao dia em que não terá alternativa que não enfrentá-los. Não há em A Wizard of Earthsea um grande e poderoso inimigo, uma ameaça velada ou exposta cuja oposição e derrota se revela um imperativo - há, sim, uma aventura extremamente pessoal que levará Ged a explorar terras distantes, a impor-se perante os majestosos dragões, a fugir em desespero e a viajar, determinado, para lá dos limites do mundo. No decorrer deste percurso, no qual o leitor acompanha o amadurecimento do protagonista, Ged conhece o sucesso e o fracasso; a vitória e a derrota; a glória e a humilhação; e tudo isso contribui para o seu crescimento, e para o surpreendente final. 

E este amadurecimento ao longo da aventura está ligado de forma íntima ao engenhoso sistema de magia que Le Guin criou para Earthsea, baseado no nome verdadeiro das coisas (na linguagem da Criação, no idioma dos Dragões) e no poder que esse nome tem para as dominar, subjugar e moldar. A esta ideia junta-se o conceito basilar do equilíbrio e da harmonia com os elementos e com o mundo envolvente - isto num mundo onde a magia, em maior ou menor escala, faz parte da vida de praticamente todas as sociedades. Na academia de Roke os jovens feiticeiros mais talentosos são treinados nas várias disciplinas mágicas (e a autora detalha isso com algum pormenor durante a juventude de Ged), partindo depois para várias ilhas onde se tornam nos feiticeiros residentes - ou regressando a Roke para ensinar. Com a sua prosa superlativa, Le Guin explora as idiossincrasias da magia na exploração de Ged, criando uma personagem muito humana e muito terra-a-terra, num universo ficcional que de facto apetece explorar para lá das (poucas) páginas do romance. 

Por tudo isto - pela excelência da prosa e do worldbuilding, pela qualidade da construção narrativa, pelo acompanhar do crescimento de Ged e pela humanidade e simplicidade da sua história -, talvez hoje seja ainda mais relevante regressar ao universo fantástico que Ursula K. Le Guin criou em Earthsea, e recuperar, numa aventura de carácter mais intimista, um dos trabalhos maiores da fantasia literária. As sequelas (The Tombs of Atuan, The Farthest Shore, Tehanu e The Other Wind, para além de vários contos) dão uma excelente continuidade à história do protaginista, e de outras personagens com as quais se irá cruzar; mas é em A Wizard of Earthsea que a extraordinária viagem de Ged começa. Que comece também a do leitor. 

4 comentários:

Anónimo disse...

Um daqueles mundos a que vale sempre a pena regressar, reler, nem que seja pela maravilhosa prosa - mas também pela extraordinária história, tão longe dos triunfos corriqueiros de outros feiticeiros juvenis...

ruisdb disse...

Eu li a triologia (na altura) antes de Tolkien. E concordo com o anónimo anterior: tem uma densidade que não tem nada a ver com os pasquins de moda. Nas 2 obras mais recentes deste universo de Terramar, nota-se muito uma tendência da autora (pelo menos desde os anos 90): o papel das mulheres velhas e o tópico do perdão.

João Campos disse...

Vale mesmo. Houve três autores de fantasia que foram para mim uma pedrada no charco: Tolkien, Pullman e Le Guin. Tolkien por todos os motivos óbvios; Pullman por alargar as possibilidades; e Le Guin por simplificá-las de forma maravilhosa. Há uma simplicidade desarmante na aventura do Ged, e vê-lo amadurecer como homem e como feiticeiro é excelente.

(o meu livro preferido, já agora, continua a ser o terceiro, "The Farthest Shore")

João Campos disse...

ruisdb, como não podia deixar de ser, tratando-se da Le Guin: prova derradeira de que é possível um texto ser feminista sem ser evidentemente moralista.