22 de novembro de 2013

A ficção curta de João Barreiros (1): O Saque de Lampedusa, O Coração É um Predador Solitário e O Encantador de Bombas

João Barreiros ocupa, com toda a justiça, um lugar de grande destaque na ficção científica nacional - autor de obras como O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias (1994), Terrarium: Um Romance em Mosaicos (1996), obra maior do género em Portugal escrita a quatro mãos com Luís Filipe Silva, A Verdadeira Invasão dos Marcianos (2004) e A Bondade dos Estranhos (2007). Organizou, em 2012, a antologia Lisboa no Ano 2000, uma colecção de histórias de vários autores num universo ficcional partilhado e retrofuturista. Regressando a um ano 2000 que "nunca existiu", a antologia recria um Portugal electropunk, tecnologicamente sofisticado, como se imaginado por autores na viragem do século XIX para o século XX (um exercício metaficcional realizado com alguma graça). Em Lisboa no Ano 2000, João Barreiros publicou três contos - e desde então tem publicado, em fanzines e iniciativas esporádicas, alguns contos que continuam a expandir aquele universo ficcional. Três exemplos: 

O Saque de Lampedusa, publicado na edição de 2012 do Almanaque Steampunk, editado anualmente pela Clockwork Portugal por ocasião da convenção EuroSteamCon, enquadra-se no universo partilhado que João Barreiros desenvolveu em Lisboa no Ano 2000. Recuperando um acontecimento aludido na antologia - o saque da ilha italiana de Lampedusa, dominada pelos complexos autofabris norte-africanos -, o conto assume a forma de um relatório recolhido numa espécie de "caixa negra" de um tanque gnóstico Mak-34 de fabrico alemão, enviado para aquela ilha alemã durante a guerra com a Grosse Germânia e recuperado pela tripulação de uma embarcação . As descrições pormenorizadas colocam o leitor no centro da acção, mesmo no meio do caos e da devastação que engoliram aquele pequeno território mediterrânico. Pelas várias referências que podem ser lidas em linhas e entrelinhas, O Saque de Lampedusa funciona melhor se o leitor já se tiver aventurado em Lisboa no Ano 2000, podendo assim apreciar mais um episódio deste universo ficcional; não obstante, fica para referência uma perspectiva de primeira pessoa tão invulgar como bem conseguida, uma atmosfera de guerra muito bem montada através de descrições detalhadas mas não exaustivas, e uma uma reflexão muito curiosa sobre a produção desenfreada, sem utilidade ou nexo.

O Coração É um Predador Solitário. O título alude ao romance de estreia de Carson McCullers que se viria a tornar num clássico da literatura do século XX; o texto, esse, publicado no número 2 do fanzine Lusitânia, lançado há dias no Fórum Fantástico, regressa ao universo partilhado de Lisboa no Ano 2000 para acompanhar Eduardo Sequeira, um colector de destroços. Assombrado pela presença de um espectro da electrosfera, Eduardo recorda a expedição subaquática que o levara às profundezas lamacentas da Baía de Cascais em busca de uma criatura mecânica abatida, para lhe roubar o seu Coração - um artefacto prodigioso, que contra todas as expectativas insiste em funcionar. Mas é durante a memória da expedição que o conto ganha força, envolvendo o leitor à medida que o protagonista avança pela carcaça mecânica da Serpente - para surpreender com uma interessante reviravolta no final. À semelhança de O Saque de Lampedusa, as descrições são eficazes e vivas, evocando imagens tão vivas como macrabras sem no entanto se tornarem exaustivas; e a atmosfera resultante é soberba, envolvente nos seus carregados tons negros, e sempre com um toque de nostalgia que parece atravessar todo este universo ficcional.

O Encantador de Bombas: A introdução, datada de 7 de Setembro de 1960, parece colocar este conto, publicado na edição de 2013 do Almanaque Steampunk, num passado possível do universo ficcional de Lisboa no Ano 2000. Os seus elementos estéticos, formais, e mesmo temáticos, algo reminescentes de algum imaginário da Segunda Guerra Mundial parecem confirmar a ligação; mas o regresso aos cenários e às perspectivas da infância, território temático tão caro a João Barreiros, elevam este conto bastante acima dos anteriores. Numa subversão tão intrigante como divertida ao blitz, o autor descreve o carpet bombing de Londres pelas bombas inteligentes do bloco comunista que tomou toda a Europa. Mas estas não são bombas comuns: designadas por singing bomblettes, são bombas conscientes que, como o nome indicam... cantam. Cantam para as suas vítimas antes de as mandarem pelos ares numa explosão de fósforo branco. A descrição é soberba, e a imagem de milhares de singing bomblettes a precipitarem-se em chuva musical nos céus carregados de Londres é de uma estranheza mágica que lembra alguns momentos de Harlan Ellison. Gustav Gorski, um miúdo de família russa radicada em Inglaterra, encontra uma dessas bombas durante a noite do bombardeamento; mas esta, ao invés de explodir, afeiçoa-se à criança e decide cantar só para ele, sem explodir - mas com consequências que, sendo algo previsíveis em traços gerais, nem por isso deixam de ser simultaneamente hilariantes e trágicas. É possível que a reviravolta final esteja a mais, carente que está de um maior enquadramento e desenvolvimento; mas até esse momento, todo o conto é uma leitura excepcional pelo ambiente que evoca e pelas situações que apresenta. 

2 comentários:

Barreiros disse...

E falta a MINA DO DEUS MORTO no Dn online.

João Campos disse...

Não está esquecido, caro João - mas não o consegui ler a tempo deste artigo. Estou muito curioso com esse conto; ficará para outra Sexta-feira.