30 de setembro de 2013

Tolkien: A sombra e o legado da Terra Média

Quando Michael Moorcock declara The Broken Sword como superior ao “outro” livro de fantasia épica inspirado nas mitologias escandinavas publicado em 1954, referindo-se The Fellowship of the Ring, não está apenas a fazer uma apreciação extremamente positiva ao livro, aliás excelente, de Poul Anderson – está, de forma implícita a reconhecer não só o mérito como também o tremendo impacto que a obra de Tolkien teve, e que não se limitou apenas à fantasia.

O que parece ser confirmado mais tarde, em duas ocasiões distintas. A primeira, quando Arthur C. Clarke declara Dune, de Frank Herbert, como um épico apenas comparável a The Lord of the Rings. A segunda, em 1966, quando na Worldcon de Cleveland é atribuído um Prémio Hugo especial, e até agora único, para distinguir a melhor série literária no género. Venceu, como se sabe, a então trilogia Foundation, do mestre Isaac Asimov; aparentemente, porém, a opinião mais generalizada indicava que tal Hugo estava talhado à medida exacta do épico de Tolkien.

Mais recentemente, e a propósito do enorme sucesso global de A Song of Ice and Fire, tanto na série literária original como na sua adaptação televisiva da HBO, George R. R. Martin ganhou o epíteto de “o Tolkien Americano”; o detalhe e a espessura do mundo secundário de Westeros será talvez dos poucos que a fantasia literária moderna poderá comparar (e mesmo assim mal) ao worldbuilding tolkieniano.

Goste-se ou não da obra de Tolkien, o impacto que causou na literatura fantástica é inegável – a riqueza do mundo secundário da Terra Média, o carácter épico da Guerra do Anel e as múltiplas leituras que a aventura possibilita tornaram-se na comparação inevitável que as obras mais ambiciosas da ficção de género ainda hoje enfrentam, quase 60 anos volvidos sobre a publicação original da aventura de Frodo e Sam. A sua densidade narrativa e simbólica abriu em definitivo as portas da academia aos géneros literários considerados populares, comerciais e menores; e os motivos e os temas de The Lord of the Rings tornaram-se em convenções do género, tropes reproduzidas quase até à náusea por autores com maior ou menor experiência. Muitas foram as derivações tolkienianas que a literatura fantástica conheceu desde os anos 60 – e mesmo hoje, quando muita da fantasia contemporânea parece ser desenvolvida em oposição (quando não em negação) àquelas convenções, nem por isso a sombra deixa de estar presente, e de se notar em cada capítulo.

Mas a Terra Média tornou-se num fenómeno de culto que transcendeu as suas origens literárias. As adaptações cinematográficas de Peter Jackson no início do novo milénio foram dos filmes mais bem sucedidos da história do cinema, tanto em termos comerciais como em reconhecimento crítico – e, tal como a trilogia original fez na literatura, também a série de três filmes estabeleceu um novo padrão para a fantasia cinematográfica (as imitações foram várias, mas nenhuma chegou sequer perto do original – nem Eragon, nem The Golden Compass, e nem, ironicamente, The Hobbit). E também no universo dos jogos a influência se sente com força: as inspirações tolkienianas de Dungeons & Dragons são inegáveis, tal como noutros jogos de role-play de formato pen & paper; e o mesmo se pode dizer do universo ficcional das miniaturas de Warhammer, das cartas coleccionáveis de Magic: the Gathering e das facções em confronto virtual de World of Warcraft (cujas referências a Tolkien vêm dos tempos do primeiro jogo de estratégia em tempo real desta franchise). Sem esquecer, claro, todas as adaptações directas da obra de Tolkien para estes formatos – jogadores de todo o mundo podem visitar a Terra Média em cartas coleccionáveis, em jogos de personagem, em jogos de vídeo single-player ou massively-multiplayer, e até em construções com os blocos coloridos da Lego. O mundo de Tolkien deixou há muito de ser apenas literário – é uma força extraordinária na cultura popular contemporânea, e uma que não parece perder intensidade ou passar de moda.

Em jeito de conclusão, uma posição meramente pessoal (até porque este é um blogue pessoal). Tolkien será sempre um dos meus dois ou três autores preferidos – daqueles que tentaria levar para a proverbial ilha deserta. Os meus regressos à Terra Média têm a regularidade de um movimento migratório na natureza – todos os anos lá volto para uma releitura completa, uma citação que ocorre a dado momento, uma ideia que tenciono revisitar. Na Nirnaeth Arnoediad vejo a mais extraordinária batalha descrita na literatura fantástica; nas histórias de Túrin Turambar e de Frodo Baggins encontro duas tragédias tão diferentes como memoráveis; na ousadia de Beren e Lúthien perante Morgoth, ou de Aragorn ao marchar para as Portas Negras movido apenas pela esperança, encontro uma coragem inabalável. Em em Ainulindalë, o mais extraordinário mito de criação que já descobri na literatura, e a prova definitiva de que, no que ao worldbuilding em fantasia diz respeito, Tolkien é inultrapassável. Histórias que já li e reli, tanto em edições originais como nas excelentes traduções portuguesas (caso raro no género!), e que continuo a reler com o fascínio original. O mês dedicado a Tolkien no Viagem a Andrómeda, por ocasião dos 40 anos volvidos sobre a sua morte, termina hoje – mas a ele regressarei neste espaço, tal como regresso sempre ao universo extraordinário que deixou como legado.

2 comentários:

Célia disse...

Quero deixar os meus parabéns e um grande obrigado por este conjunto de textos tão interessantes sobre Tolkien e o seu legado :)

João Campos disse...

Ora essa, muito obrigado :)