3 de setembro de 2013

RPG: Dados viciados

No contexto geral do cinema português, a ficção científica é raríssima. Vários são os filmes que poderiam - podem - ser enquadrados num fantástico mais abrangente sem prejuízo, mas poucos abordaram temas e desenvolveram narrativas passíveis de serem categorizadas de "ficção científica". O mais recente projecto cinematográfico do realizador David Rebordão e do produtor Tino Navarro, RPG - Real Playing Game, revestiu-se por isso de especial interesse. A presença do consagradíssimo Rutger Hauer no elenco, eterno Roy Batty de um dos clássicos maiores que o género já viu no grande ecrã, foi um bónus assinalável, claro - julgo, porém, que aquilo por que os fãs de ficção científica portugueses aguardavam com expectativa era por um filme com um módico de sofisticação narrativa, rasgo visual e qualidade global.

Infelizmente, terão - teremos - de continuar a aguardar.

É certo que há ambição e muito boas intenções em RPG. A premissa, ainda que não seja de todo original, tinha potencial - partindo do tema perene, mas nem por isso gasto, do preço a pagar pela juventude eterna, os argumentistas Tino Navarro e Artur Ribeiro criaram um futuro no qual a tecnologia permite, por um preço astronómico, devolver a uma juventude temporária uma mente envelhecida. A exploração do tema é feita numa espécie de Philip K. Dick (se, arrisco, os argumentistas tivessem gasto tempo a ler Philip K. Dick) meets Koushun Takami, com a dúvida persistente sobre a natureza real ou simulada dos acontecimentos a decorrer durante um autêntico battle royale do qual só um jogador poderá emergir com vida. Na prática: dez milionários procuram os serviços da RPG, a empresa detentora de tal tecnologia, que lhes propõe um desafio: dez horas de juventude num jogo de morte. 


Claro que, como duas personagens cedo descobrem na simulação, toda a ideia é um perfeito disparate quando poderiam passar as dez horas de juventude em entrega absoluta aos prazeres carnais. No entanto, se tomarmos a premissa pelo seu valor facial, é inegável que ela tem potencial. O argumento poderia ter explorado uma meditação sobre a subversão das regras impostas e uma tentativa de obter o impossível; ou abordado a carnificina simulada como um videojogo, recorrendo à linguagem e às convenções próprias do formato; ou mesmo ousado algo mais complexo e arriscado, como a exploração da possibilidade de regressar à juventude num corpo diferente, porventura até de um género diferente - com tudo o que daí decorre. Todos estes elementos acabam por estar presente, em maior ou menor medida, mas sempre de forma inconsequente, num argumento que nunca leva nenhuma das ideias que propõe até ao fim, optando antes por misturá-las todas numa salganhada de onde se revela impossível retirar o que quer que seja.


Rico em aspectos de lógica duvidosa (o funcionamento do jogo), em incoerências várias (a escolha do corpo) e em disparates tremendos (sequestro com uma pedra?), o argumento de RPG não só não dá a devida profundidade às suas ideias (a reviravolta final bem tenta, mas o estrago está feito) como também não procura sequer desenvolver as suas personagens. Não sabemos ao certo quem é Steve Batier - e menos ainda sabemos dos outros nove jogadores, identificados apenas como "ricos". Ao longo do jogo, o espectador vai descobrindo algumas das características individuais de cada jogador - há um católico devoto, um tirano africano, uma activista lésbica, um geek, uma actriz, um atleta, um humanitário, uma cantora, e mais um ou dois. Mas, sem tempo para associar estas categorias a uma personagem (ou persona) concreta, as muitas referências que as personagens vão debitando no decorrer da acção surgem no vazio, e nele permanecem intocáveis - e irrelevantes. Excepto o "chinês", como é evidente. O jogo que se poderia criar com o espectador, movido pela curiosidade natural de descobrir quem é quem, cedo se esgota em frustração.


É certo que o argumento indigente e os diálogos absurdos e desconexos não ajudam os actores, mas nem por isso deixa de impressionar como o casting conseguiu dar tantos tiros ao lado. A gravitas e o carisma naturais de Rutger Hauer são evidentes nos escassos minutos que passa em cena, mas estão a anos-luz das interpretações sofríveis, quando não mesmo ridículas. Chris Tashima é o gamekeeper, mas talvez o termo infodump lhe assentasse melhor. Não sem ironia, persiste a ideia de que os actores que interpretam a versão jovem dos vários jogadores foram escolhidos por um de três critérios: 1) beleza física, 2) encaixe num estereótipo e 3) pretensa diversidade. O talento ficou evidentemente de fora (mesmo evidenciado, uma vez mais, a pobreza franciscana do argumento e dos diálogos), como Pedro Granger se esforça por demonstrar sempre que entra em cena. Também a capacidade de falar inglês não foi um dos requisitos para o elenco internacional - toda a sequência do jogo é falada em puro engrish. Poderia ser interessante se o objectivo fosse também gerar problemas de comunicação por alguns jogadores não partilharem um idioma comum - como está, porém, é (ou parece ser) uma mera tentativa de internacionalizar o filme que redunda num ridículo evidente, porventura evitável.


E em termos visuais o panorama pouco mais animador. Carente de qualquer enquadramento, o futuro estilizado que é apresentado nos primeiros minutos e nas instalações da RPG é igual a tantos outros que já vimos em ficção científica cinematográfica de maior ou menor qualidade - indistinguível na estética, sem inovação ou rasgo. Quando, convenhamos, não é necessário mostrar um futuro evidente pela estética e pelo design para se construir um bom filme de ficção científica (ou mesmo para indicar que a acção decorre no futuro)*. A escolha de um "Portugal arruinado" para cenário do jogo poderia ser um comentário a alguma coisa, mas não passa de mais uma curiosidade sem propósito - ainda que o espaço escolhido seja de facto interessante. E para as câmaras, a produção parece ter recrutado os operadores de The Hunger Games - a shaky camera está na moda, sim, e tem a sua utilidade, mas é difícil funcionar tão mal e ser tão desconfortável como em muitos momentos de RPG.


Ainda que em muitos casos a ficção científica cinematográfica se destaque pelos visuais exuberantes e milionários, não é de todo necessário um orçamento digno de uma Hollywood ou de muitas produções indie contemporâneas para fazer um filme de género bom - a alma da ficção científica, afinal, reside nas suas premissas desafiantes e nas possibilidades que estas encerram (e, já agora, em argumentos e elencos capazes de as elevar). Rebordão e Navarro pegaram em várias boas ideias do género e tentaram dar-lhe um twist próprio, mas o resultado é confrangedor. Um visual duvidoso com uma câmara infernal, um argumento sem nexo do início ao fim e um elenco desprovido de qualquer vestígio de talento (e uma música final tão, mas tão reminescente de Adele...) condenam RPG à irrelevância absoluta. O que, diga-se de passagem, não deixa de ser uma pena. O potencial está lá - faltou, infelizmente, tudo o resto. 03/10

RPG - Real Playing Game (2013)
Realizado por David Rebordão e Tino Navarro
Argumento de Tino Navarro e Artur Ribeiro
Com Rutger Hauer, Chris Tashima, Soraia Chaves, Cian Barry, Alix Wilton Regan, Dafne Fernández, Pedro Granger, Débora Monteiro, Genevieve Capovilla, Cloudia Swann, Christopher Goh, Nik Xhelilaj e Victória Guerra
103 minutos

Veja-se, a título de exemplo, os casos de Jurassic ParkInception ou Paprika, onde premissas que só podem fazer parte da ficção científica convivem com um mundo que poderia ser o de 2013. 

8 comentários:

André Pereira disse...

Eu que estava hyped para ver o filme, assim fico de pé atrás e poupo os meus 6 euros...

Não vale mesmo a pena?

Carlos Branco disse...

Não vi e não vou ver, não é por ler esta critica embora esta análise venha reforçar a ideia que tirei do filme logo pelo trailer. gostava de aprofundar a minha análise mas teria mesmo de ver o filme e não tenho vontade nenhuma. mais uma oportunidade perdida para a sci fi nacional não é verdade? abr,

João Campos disse...

André, eu também estava hyped - desconfiado, mas hyped. Mas o resultado é demasiado mau, a descarrilar com frequência para a comédia involuntária. O desempenho do Granger é de antologia, digno de um Tommy Wiseau.

Gostaria de dizer que isto é apenas uma questão de opinião, mas a verdade é que as críticas que li entretanto - na imprensa e em blogues - não são muito melhores.

João Campos disse...

Carlos, por acaso o trailer enganou-me. Lá está - a ideia-base, ainda que não seja original, tem potencial (e decerto não exigiria um orçamento milionário). A execução é que, enfim, é um desastre.

"Oportunidade perdida para a sci fi nacional" é um excelente resumo.

Rui Bastos disse...

Pelo que vi no trailer, o inglês do Granger é absolutamente fantástico! /fimdesarcasmo

O filme não me inspirava muita confiança, mais que não seja por ser um filme supostamente português, só que em inglês, mas é assim tão mau? Well, money has been saved!

João Campos disse...

É um desastre. Mas pelo humor involuntário de alguns canastrões até vale a pena.

Acredita: o trailer mostra muito pouco do que é o Granger. Houvesse uns Razzie cá no burgo e o homem levava-os todos, era limpinho.

Rui Bastos disse...

Damn! Agora quero ver, muahahaha.

João Campos disse...

Acho que vale a pena :)