29 de setembro de 2013

O enigma da Terra Média: Tom Bombadil

Ilustração de autor desconhecido
Um dos aspectos que mais impressiona no mundo secundário que Tolkien apresentou em The Hobbit e sobretudo em The Lord of the Rings* é a sua textura, tornada mais densa não só pelo detalhe físico com que a Terra Média presente é apresentada, mas também pelas constantes alusões a um passado bem delineado e, a espaços, quase mitológico. Na sua maioria, esse passado que se adivinha nas palavras de sábios como Elrond e Gandalf, de anciãos como Treebeard e em pequenos detalhes apresentados quase de passagem ao longo do texto é exposto e esclarecido em The Silmarillion e nos textos inacabados que Christopher Tolkien editou após a morte do seu pai. Beren e Lúthien, Beleriand, os Balrogs de Morgoth, Glaurung e os dragões de Thangorodrim, e Ungoliant, da qual Shelob descendia, serão disso bons exemplos. Mas há outras referências mais obscuras, mesmo misteriosas, que tornam todo este mundo mais fascinante e palpável. Aragorn tornou célebre a passagem sobre os gatos da rainha Berúthiel, mas foram os hobbits quem encontrou o maior enigma da Terra Média: Tom Bombadil.

As origens de Bombadil são curiosas: era um brinquedo (um boneco) de um dos filhos de Tolkien, Michael, que se tornou protagonista do poema The Adventures of Tom Bombadil, de 1934 – e de outros poemas escritos posteriormente. Neles, Tolkien retrata-o como uma personagem alegre e espirituosa que habita com a “filha do rio” Goldberry” nas imediações do rio Withywindle e que tem um poder singular sobre a natureza que o rodeia. Mas é quando surge em The Lord of the Rings (nos capítulos 7, 8 e 9 de The Fellowship of the Ring) que o mistério se adensa.

A presença de Bombadil na grande narrativa da Guerra do Anel pode ser curta, mas reveste-se de grande significado. Fugidos do Shire, os quatro hobbits entram na Floresta Velha – onde adormecem e são capturados pelas raízes de Old Man Willow. Bombadil aparece no momento de aflição, e com o poder das suas canções liberta os hobbits e leva-os para o lar que partilha com Goldberry, onde os acolhe durante poucos dias. É uma personagem desconcertante: enverga um sobretudo azul, calça botas amarelas e ostenta uma pena no seu chapéu; fala sempre em verso, em rimas e cantigas alegres e de aparência simples.
Old Tom Bombadil is a merry fellow; 

Bright blue his jacket is, and his boots are yellow.
O tempo que os hobbits passam em casa de Tom Bombadil é, no mínimo, invulgar – como se fosse quase um outro mundo ou um outro tempo, do qual os Naz-gûl e o mal de Sauron não existem. Os dias são passados com histórias e cantigas; as noites, essas, são marcadas por sonhos especialmente estranhos (e, em alguns casos, proféticos). A surpresa maior, essa, surge no momento em que Frodo coloca o Anel no dedo, e todos se apercebem de que Bombadil consegue vê-lo através do manto de invisibilidade; mais do que isso, consegue pegar no Anel sem ser afectado pelo seu poder (que não ambiciona), e chega mesmo a fazer um pequeno gesto de prestidigitação com ele – como se fosse um artefacto sem valor. A natureza do anfitrião é um enigma para os hobbits, sobretudo após as provações que passaram para ali chegar; não surpreende, por isso, a sua curiosidade:
“Fair lady!” said Frodo after a while. “Tell me, if my asking does not seem foolish, who is Tom Bombadil?” 

“He is”, said Goldberry, staying her swift movements and smiling.
A resposta de Golberry não resolve o enigma; pelo contrário, adensou-o e suscitou inúmeras interpretações. Traçando um paralelismo com a velha alegoria cristã, houve quem pensasse que Tom Bombadil seria Eru Ilúvatar, ou um seu avatar (tese negada por Tolkien); um Valar ou mesmo um Maiar, talvez equivalente a Gandalf, Sauron ou aos Balrogs de Morgoth; ou, mais simplesmente, um avatar do mundo natural, uma força elemental muito antiga cujo poder residisse na própria terra. Julgo ser esta a interpretação mais lógica, sustentada desde logo por uma ideia apresentada de forma superlativa: 
“Eldest, that's what I am... Tom remembers the first raindrop and the first acorn... He knew the dark under the stars when it was fearless - before the Dark Lord came from Outside.”
No Conselho de Elrond, discute-se brevemente a possibilidade de deixar o Anel ao cuidado de Bombadil, dada a sua imunidade e o poder absoluto que tem sobre todas as coisas do seu domínio. Essa alternativa, porém, acaba descartada por Elrond e Galdor:
“…soon or late the Lord of the Rings would learn of its hiding place and would bend all his power towards it. Could that power be defied by Bombadil alone? I think not. I think that in the end, Bombadil will fall, Last as he was First, and then Night will come.”

“Power to defy our Enemy is not in him, unless such power is in the earth itself.”
É na contradição aparente aparente da sua construção – inquebrável perante um poder concebido para todos dominar – e no seu enigma persistente que reside a importância de Tom Bombadil. Fugindo a todas as categorias de seres que Tolkien descreveu com minúcia, permanecendo de fora de qualquer caracterização ou poder presente na Terra Média, e Tom Bombadil é uma lenda viva que, sendo um detalhe, confere a todo aquele universo ficcional uma textura extraordinária - pelo seu poder, tão extraordinário como limitadio, capaz de adormecer o Old Man Willow e destruir as Barrow-Wights, mas também pelo seu despreendimento perante um poder maior, que em momento algum ambiciona. Isto, note-se, numa história cujo tema principal é precisamente o poder e a corrupção a ele subjacente. A sua presença no texto desde as primeiras versões da narrativa, tão diferentes na forma e no tom, ganha por isso uma grande força; e a sua relevância no imaginário da Terra Média é por isso imprescindível. Conforme explicou o próprio Tolkien em carta,
"As a story, I think it is good that there should be a lot of things unexplained (especially if an explanation actually exists); ... And even in a mythical Age there must be some enigmas, as there always are. Tom Bombadil is one (intentionally)."
The Letters of J. R. R. Tolkien (1981), ed. Humprey Carpenter e Christopher Tolkien

Nem mais.


*The Hobbit, como se sabe, conheceu uma revisão assinalável em edições subsequentes para tornar mais lógica a sequência com The Lord of the Rings

2 comentários:

Anónimo disse...

Ilustração de autor desconhecido? É dos Irmãos Hildebrandt e apareceu em milhares de calendários!!

http://www.spiderwebart.com/productsd.asp?snob=100900

João Campos disse...

Boa, pá. É pena eu não coleccionar calendários desde uma antiga edição com os brasões das principais equipas do futebol europeu (das portuguesas só consegui do Boavista e do FC Porto, para tristeza minha. Mas tinha o Glasgow Rangers e o Sparta de Praga).

/end snark