20 de setembro de 2013

Children of Húrin: A tragédia dos Homens na Primeira Era

Na semana passada referi alguns trabalhos que Tolkien começou a desenvolver ainda durante a Primeira Guerra Mundial - esboços de contos fantásticos situados no mundo secundário que, anos mais tarde e por via da tremenda popularidade de The Hobbit e de The Lord of the Rings, os leitores viriam a conhecer por "Terra Média". A sua ideia original de um livro de contos interligados intitulado The Book of Lost Tales acabou por ser materializada a título póstumo em The Silmarillion, obra resultante do trabalho exaustivo do seu filho Christopher, que organizou as várias anotações e versões diferentes (por vezes antagónicas) de diversas histórias da Primeira Era do mundo, e lhes deu o enquadramento e a sequência narrativa possíveis. Das muitas histórias dos Lost Tales originais, três destacavam-se pelas suas maiores dimensões e pelo seu relativo grau de autonomia face ao todo narrativo: The Fall of Gondolin, o primeiro trabalho de Tolkien; The Tale of Tinúviel, a célebre história de Beren e Lúthien, aludida brevemente numa passagem de The Lord of the Rings; e The Children of Húrin, a história trágica de Húrin, da casa de Hador, senhor de Dor-lómin, e dos seus filhos: Túrin Turambar e Niënor Níniel. Todas estas histórias encontram-se presentes, de forma mais ou menos eaborada, em The Silmarillion ou em Unfinished Tales of Númenor and Middle-earth; mas Christopher Tolkien dedicou mais tempo à última, consolidando diferentes versões e completando partes deixadas incompletas, num vasto trabalho de edição. O resultado foi publicado em 2007 como um romance autónomo intitulado Narn I Chîn Húrini, ou The Children of Húrin.

Diz-se autónomo pois qualquer leitor, qualquer que seja o seu grau de familiaridade para com a obra de Tolkien, poderá pegar em The Children of Húrin e apreciar a narrativa, uma impressionante tragédia inspirada na lenda de Kullervo do épico finlandês Kalevala, na saga islandesa de Völsunga (que, séculos mais tarde, inspiraria Wagner para Der Ring des Nibelungen). Dito isto, é certo que a história de Túrin e Niënor, estando tão firmemente ancorada no vasto corpo narrativo da Primeira Era e tendo como pano de fundo a guerra de Morgoth contra os Elfos e os Homens de Beleriand, fará mais sentido após a leitura de The Silmarillion. A introdução trata de fazer as apresentações necessárias, enquadradas na bibliografia de Tolkien: Beleriand, os reinos dos Elfos, as três casas dos Homens, a guerra desesperada contra Morgoth, o Vala caído. E a história começa com Húrin, da casa de Hador, senhor de Dor-lómin; que com o seu irmão Túor encontrara, anos antes, o reino élfico de Gondolin, cuja localização Turgon, o seu rei, mantinha em segredo mesmo dos restantes senhores de Beleriand. Regressaram, jurando segredo, e Húrin casou com Morwen, da casa de Bëor, e desta união nasceu um filho, Túrin, e uma filha, Urwen, que faleceu ainda criança. 

Mas a guerra entre a aliança de Elfos e Homens e as forças de Angband levou Húrin a liderar a hoste de Dor-lómin para a batalha que ficaria conhecida como Nirnaeth Arnoediad, a "Batalha das Lágrimas Inumeráveis" - uma das maiores batalhas descritas por Tolkien na sua obra, talvez superada apenas pela fúria dos Valar na última batalha contra Morgoth. Nem mesmo a presença de Turgon, vindo de Gondolin com um vasto exército, conseguiu impedir o desastre; e para dar cobertura à fuga do rei, as forças de Húrin acabaram destruídas, e o seu comandante capturado por Morgoth. Ousando desafiar o Vala, foi feito cativo e amaldiçoado - num acto especialmente cruel de Morgoth. 

E é esta maldição, estendida à família de Húrin, que se revela ao longo de toda a história à medida que o leitor acompanha a vida difícil de Túrin e a sua passagem por vários locais de Beleriand, de Doriath e Nargothrond a Amon Rhûd e à Floresta de Brethil. É, como já disse, uma história trágica do início ao fim, do desastre da Nirnaeth Arnoediad até à consumação das palavras de Morgoth - seja por via da sua própria força ou pelo orgulho de Túrin, através do qual Tolkien explora o eterno tema da oposição entre o destino e o livre arbítrio. The Children of Húrin não tem passagens de humor, ou mesmo de relativa leveza (como The Hobbit, por exemplo - e mesmo The Lord of the Rings tem os seus momentos) - o tom do texto é sempre sombrio, solene, atravessado pelo mesmo destino que parece conduzir fatalmente Túrin e Niënor. Mas esse tom funciona, e a história resulta a vários níveis: ao dar um rosto humano, muito terra-a-terra, a um conflito de dimensão quase lendária, e também ao destacar uma parcela tão significativa de um corpo narrativo mais vasto e, diga-se de passagem, fascinante no detalhe e na dimensão. É possível que não agrade a todos os leitores, e mesmo a todos os leitores que apreciam The Lord of the Rings e The Hobbit; mas quem apreciou a ambição mitológica e o tom de "contador-de-histórias" de The Silmarillion decerto não ficará desiludido com The Children of Húrin.

A edição portuguesa da Europa-América, que li, data de 2007. A tradução é de Fernanda Pinto Rodrigues

2 comentários:

Artur Coelho disse...

um amigo meu saiu-se com esta. ainda não li (tl;dr) mas parece intrigante analisar tolkien sob o ponto de vista da sociedade panopticon:
http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/704

João Campos disse...

Many thanks, many thanks :)