20 de agosto de 2013

Elysium, ou a luta de classes a preto e branco

Quando Neill Blomkamp apresentou a sua longa metragem de estreia, District 9, surpreendeu o público – tanto o mais dedicado à ficção científica como o outro – com a sua abordagem pouco convencional mas incrivelmente expressiva e eficaz ao tema do racismo e do apartheid do seu país natal, a África do Sul. E o sucesso não se deve apenas à qualidade superlativa da componente visual do filme, mas sim pela desconstrução inteligente que fez de uma premissa clássica do género e pela forma subtil com que desenvolveu o carácter mais ideológico, chamemos-lhe assim, da obra – convidando o espectador a acompanhar o infortúnio de Wikus (Charlto Coopley) enquanto medita no que de facto significa ser diferente, ser estranho, quando a nossa própria terra se revela desconhecida. Também por isto as expectativas quando ao segundo filme do realizador, Elysium, eram altas – não só para se saber se o sul-africano, com um orçamento digno de um blockbuster, seria capaz de voltar a fazer um filme visualmente estimulante mas também se conseguiria desmontar uma ideia clássica – a da luta de classes, tão usada nos mesmos termos na ficção científica – e de lhe injectar uma visão nova através de um argumento inteligente.

Não deixa de ser uma pena que a resposta a ambas as perguntas não seja afirmativa – mas a verdade é que Blomkamp conseguiu recriar um mundo fascinante e visualmente apelativo, já na componente ideológica não consegue elevar-se acima da mediocridade e da premissa mais do que gasta de “os ricos vivem numa redoma lá em cima, os pobres vivem na miséria cá em baixo”. E, com o conceito de Elysium – um vasto habitáculo espacial redondo como uma estrutura Orbital em miniatura tornado satélite –, esta premissa ganha contornos literais. Naquele mundo circular, redondo, a elite vive num esplendor absoluto, beneficiando de todo o conforto que as mais sofisticadas tecnologias podem oferecer, com cuidados médicos de tais ordens que doenças ou enfermidades foram eliminadas de forma absoluta. A contrastar com a vida esterilizada em órbita, o resto da população humana vive numa vasta Terra-virada-favela, num Distrito 9 tornado global, com todo o tipo de carências, convivendo com criminalidade violenta e sobrevivendo nas piores condições de vida e de trabalho imagináveis.


O problema de Elysium não reside apenas no facto de esta premissa ser apresentada sem qualquer tipo de subtileza, mas também na relativa incongruência de ambos os mundos quando colocados em confronto. É certo: Blomkamp pretende debater as desigualdades contemporâneas, as questões da emigração (é difícil não ver na tentativa desesperada de os shuttles aterrarem em Elysium uma metáfora para a situação explosiva da emigração no Mediterrâneo) e o acesso aos melhores cuidados de saúde, limitado quando devia ser universal – tudo questões relevantes e pertinentes, entenda-se. Infelizmente, a subtileza narrativa de District 9 perdeu-se no processo: Elysium mostra a presença de uma burocracia opressora, de repressão policial e de um controlo dos meios de produção pelo capital – passe as designações marxistas – que, como é evidente, vive no luxo de Elysium e revela (pelas reacções dos dois únicos habitantes que conhecemos razoavelmente) desprezo e nojo pelas populações inferiores da Terra. Mas nada isto aparenta força suficiente para a manutenção indefinida do status quo; e esta incongruência acaba por ganhar contornos mais evidentes quando se coloca em perspectiva a tecnologia de que as redes criminosas dispõem. Teria sido talvez interessante ver uma dualidade menos preta-e-branca e com mais tons de cinzento; chega mesmo a haver um início de comentário interessante, pelo Max interpretado por Matt Damon e pela sua namorada de infância, Frey (uma Alice Braga maravilhosa), sobre a escolha entre a criminalidade e o trabalho duro na Terra – mas mesmo esse comentário acabou perdido nas questões aparentemente mais importantes que Blomkamp quis debater.


A isto nada ajuda a péssima interpretação de Jodie Foster no papel de Delacourt, a Ministra da Defesa de Elysium a tentar um golpe de estado – desprovida de qualquer carisma, ganha contornos de quase comic book villain com os seus trejeitos exageradíssimos. Algo que Charlto Coopley coloca em evidência com o seu magnífico desempenho no papel de Kruger, um mercenário contratado por Delacourt – mesmo quando o guião falha em algumas deixas o actor deixa transparecer uma fascinante ambiguidade, visível sobretudo na sua interacção com a personagem de Alice Braga. Ainda em termos de desempenhos, Wagner Moura desempenha com solidez um sólido Spider, criminoso e revolucionário; e Matt Damon, apesar de continuar a interpretar-se a si mesmo, tem carisma e simpatia mais do que suficientes para transportar o espectador ao longo do filme.


É em termos visuais que Elysium ascende acima da média. Tal como já fizera em District 9, também aqui Blomkamp mostra uma Los Angeles transformada em favela – nos primeiros planos, é difícil não evocar uma versão diurna da cidade nocturna que Ridley Scott mostrou em Blade Runner (sobretudo numa imagem muito particular). Todos os detalhes, dos robôs-policia aos muros grafitados das unidades fabris, das casas arruinadas e dos hospitais sobrelotados, estão soberbos, e permitem caracterizar aquele mundo melhor do que qualquer discurso ideológico das suas personagens. Elysium, por contraste, apresenta-se esterilizado, limpo, perfeitamente organizado – um paraíso ordenado que em momento algum esconde a sua artificialidade. As sequências de acção, ainda que sejam escassas, são excelentes – com Matt Damon e Sharlto Coopley a darem um grande espectáculo e combate em exo-esqueleto, completa com lâminas, mísseis, balas explosivas e escudos de energia.


Visto como um mero filme de acção, Elysium seria sem dúvida um filme interessante q.b, com um mundo repleto de potencial e visualmente irrepreensível. Blomkamp, porém, atirou mais alto do que isso, e procurou repetir a mistura de acção com comentário social que tornou District 9 num dos grandes filmes de ficção científica dos últimos anos – mas sem a subtileza e a relativa neutralidade do ponto de vista do seu anterior êxito. O resultado não deixa de ser interessante, é certo, mas nem por isso deixa de desiludir – prometia mais, e poderia ter sido muito mais. 6.9/10


Elysium (2013)
Realização e argumento de Neill Blomkamp
Com Matt Damon, Jodie Foster, Sharlto Copley, Alice Braga e Wagner Moura
109 minutos

2 comentários:

Anónimo disse...

Prezado, concordo com boa parte de sua crítica do filme. Não obstante, creio que, em um mundo cada vez mais perdido em relativismos de toda espécie, um pouco de falta de sutileza faz bem. Sim, os representantes da elite de Elysium são caricaturas maniqueístas. Mas, ainda que não fossem, isso não mudaria o fato de que uma tal divisão de classes é, sim, um mal, fonte de um sofrimento que não faz sentido, que poderia ser bem menor, caso substituíssemos a lógica da propriedade, da exploração e do poder por uma lógica da solidariedade, da generosidade e do perdão.

João Campos disse...

O problema, caro anónimo, é que mesmo as caricaturas necessitam de uma certa coerência que ali não existe. O caso mais flagrante é a personagem de Sharlto Copley.

Quanto à substituição da "lógica da propriedade, da exploração e do poder por uma lógica da solidariedade, da generosidade e do perdão", aí já estaremos no campo da utopia.