25 de julho de 2013

The Walking Dead: 400 Days: Estudos de personagens

Um dos jogos que mais me surpreendeu no ano passado foi The Walking Dead, a aventura gráfica da Telltale Games enquadrada no universo do zombie apocalypse criado na banda desenhada de Robert Kirkman que, de mansinho, conquistou a crítica e a audiência - ao ponto de ter arrecadado dezenas de prémios de "jogo do ano" nas barbas de vários títulos AAA (e perante flops críticos assinaláveis como Mass Effect 3 e Diablo 3). A força de The Walking Dead (crítica aqui) não residiu no seu grafismo topo de gama, na acção ou num qualquer sistema de combate, ou mesmo nos puzzles que tornaram este género em declínio tão popular há mais de duas décadas, mas sim na atmosfera criada - perfeitamente encaixada no universo ficcional de Kirkman - e sobretudo nas personagens estabelecidas e nas suas interacções, dando forma a um enredo fascinante e emotivo. 

Com a sequela confirmada algures para o quarto trimestre do ano, a Telltale Games lançou no início de Julho o DLC 400 Days, uma inversão muito curiosa e arrojada do conceito do jogo original: ao invés de acompanhar as mesmas personagens em cinco episódios de longa duração, 400 Days propõe ao jogador acompanhar, num único episódio uma curta aventura de cinco personagens diferentes, apanhadas pelo desastre durante os primeiros 400 dias que se seguiram ao outbreak. No papel, a ideia parece muito interessante, mas nem por isso deixa de suscitar algumas dúvidas. Afinal, a qualidade da narrativa e a carga emocional do primeiro jogo deve-se sobretudo ao relacionamento entre Lee e Clementine, e à forma como o jogador vai acompanhando e fazendo escolhas para aquelas personagens durante os cinco episódios. A abordagem de 400 Days é diametralmente oposta: em cada episódio, dá ao jogador uma personagem já construída e dá-lhe a oportunidade de a acompanhar durante cerca de 20 minutos, numa breve mas intensa aventura.


O mais curioso é que este modelo funciona quase na perfeição, e mesmo as histórias menos interessantes do ponto de vista das personagens (e daquilo que lhes acontece) acabam por ser excelentes na caracterização daquele mundo devastado e no estabelecimento de um tema que poderá vir a ser dominante no segundo jogo: o conflito não dos sobreviventes com os zombies, mas entre os próprios sobreviventes. Algo já aludido no primeiro The Walking Dead, e agora explorado com consequências devastadoras.


Na sua essência, as cinco histórias colocam as várias personagens em conflito não com o ambiente apocalíptico que as rodeia, mas com outros seres humanos, outros sobreviventes. A Telltale manteve-se fiel à tradição de colocar aos jogadores escolhas complicadas e de resolução de moralidade ambígua, e Wyatt, Bonnie, Vince, Russell e Shel deparam-se com situações em uma saída fácil, onde aquilo que está em causa é a própria humanidade de cada um. E onde a dúvida impera: até que ponto a escolha certa é a escolha certa? Até que ponto a benevolência não acarretará consequências demasiado graves? E o sacrifício da humanidade pela sobrevivência, valerá mesmo a pena?


No seu todo, as cinco histórias formam um mosaico fascinante que explora vários pontos de vista em situações distintas no mesmo mundo, onde todas as referências familiares foram destruídas por um perigo constante. É certo que nem todas as histórias são igualmente interessantes, mas todas têm algo de apelativo. A de Wyatt, por exemplo, revela-se a mais fraca do conjunto, com um protagonista um tanto ou quanto insípido (uma espécie de Dude sem o carisma) - mas mesmo assim mostra alguns detalhes muito interessantes sobre a evolução do mundo após o desastre dos zombies. Os episódios de Russell, Bonnie e Vince são interessantes, cada um à sua maneira - a primeira inclui um excelente easter egg, a segunda mostra uma escolha interessante com uma personagem muito bem construída, e a terceira lembra um pouco a de Lee, mas com uma decisão mais interessante (e nada óbvia). Mas é a aventura de Shel e da sua irmã Becca que se revela a mais complexa, a mais ambígua e a mais satisfatória das cinco, construindo de forma perfeita uma situação digna das melhores do primeiro jogo.


A haver algum problema com 400 Days, será a sua curta duração. O que não deixa de ser irónico, dado que o grau de síntese que apresenta é também um dos seus pontos fortes, marca indelével do arrojo narrativo dos escritores da Telltale que não se conformaram em repetir a fórmula. É certo: aqui, tal como em The Walking Dead - e tal como em todos os role-play games e todas as aventuras gráficas que apresentaram uma mecânica de escolhas - a história tem um ponto de partida tão definido como o final, e aquilo que as decisões de cada jogador vai moldar não é tanto o final como o caminho a percorrer. Noutro jogo, poder-se-ia dizer que a escolha é apenas um mecanismo do enredo, uma gimmick glorificada e dissimulada de livre-arbítrio; mas tal como no jogo original, também em 400 Days a Telltale faz o jogador interessar-se de forma genuína por aquelas personagens, e é aí que reside a diferença. Não por todas, concedo; mas se uma não conseguir agarrar o interesse, outra se revelará excepcional. 


Não será talvez exagero dizer que, para quem jogou The Walking Dead e aguarda com alguma expectativa o segundo título, 400 Days será uma compra mais do que recomendada - sobretudo quando está disponível em formato digital por um preço bastante módico. Para todos os efeitos, e a avaliar pelo seu epílogo, aprece funcionar como um prólogo ao próximo jogo da Telltale no universo ficcional de Kirkman - e se assim for, há aqui potencial para elevar o formato a um novo patamar. Mas acima de tudo, importa salientar o arrojo da Telltale em mexer com a sua própria fórmula de sucesso, testando os seus limites e procurando outras possibilidades. Nos dias que correm, só isso seria de louvar; mas há em 400 Days muito mais do que um teste; há cinco histórias curtas mas globalmente bem trabalhadas, com personagens com substância e uma abordagem muito bem conseguida ao seu próprio universo ficcional - algo que nem todos os jogos são capazes de fazer, quanto mais um simples DLC. 8.9/10

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