3 de maio de 2013

A impagável colheita de Reaper Man

What can the harvest hope for, if not for the care of the Reaper Man?
- Death, Reaper Man (1991)

Poderia a Morte ser despedida? É possível - se os Auditores da Realidade entenderem que o velho grim reaper não está a desempenhar as suas funções dentro dos padrões exigidos. Claro que a coisa levanta uma série de questões de resposta difícil. Se a Morte foi despedida, quem é que assegura o seu trabalho? E o que acontece a quem morre entretanto - não só os humanos mas todas as restantes criaturas? Como passam para "o outro lado"? E que ramo de actividade poderá seguir a Morte, entretanto desempregada, considerando que a única actividade do seu currículo é... ceifar vidas? E o que significam todos os pequenos globos de neve que estão a aparecer por todo o lado?

Terry Pratchett dá a resposta a todas estas questões em Reaper Man (1991), o décimo primeiro volume de Discworld. Aparentemente, os Auditores da Realidade não estão contentes com os últimos tempos de trabalho da Morte, e com o lado humano que tem vindo a desenvolver - e o despedimento torna-se inevitável. Sem emprego, a Morte vê-se obrigada a procurar um trabalho no qual a sua vasta experiência no manuseamento de uma gadanha seja útil - e, na sua ausência, o balanço entre a vida e a morte (com minúscula) de Discworld desliza para o caos. Não que seja necessário muito para que aquele mundo circular assente em quatro elefantes que viajam pelo universo sobre a carapaça da tartaruga cósmica Great A'Tuin deslize para o caos, mas em Reaper Man o pretexto é no mínimo singular (e porventura mais actual nos dias que correm do que em 1991, aquando da publicação do livro - como se sabe, a boa sátira é intemporal, e neste campo Pratchett faz o bingo ao acertar também nos vampiros e nos zombies).

O resultado, como os leitores já familiarizados com os enredos convulsos de Pratchett podem imaginar, é a todos os níveis hilariante. Há feiticeiros retidos entre a vida e a morte, globos de neve misteriosos (rapidamente aproveitados por C.M.O.T Dibbler, comerciante de ocasião), combates heróicos contra estranhos objectos feitos de grelhas de metal, com pequenas rodas e estranhamente úteis para transportar objectos (os mais frágeis no fundo, sempre), clubes de zombies, vampiros pobres, médiums, colheitas e cultos religiosos. A mistura pode parecer exótica, mas a prosa de Pratchett tece com todos estes elementos (e muitos mais) uma fascinante e muito bem humorada sátira, com um ritmo muito rápido e um sem-número de gags, one-liners deliciosas e situações divertidíssimas. Enquanto sátira, talvez The Reaper Man não seja tão coeso como Guards! Guards ou Moving Pictures, trabalhos anteriores mais centrados em elementos concretos (os policiais hardboiled no primeiro caso e o cinema no segundo), mas nem por isso a sua recriação de algumas tropes clássicas (e muito actuais) e a sua paródia ao consumismo, versão Ankh-Morpork, deixam de estar muito bem conseguidas (para além das inúmeras situações de gargalhada que o livro proporciona). E, claro, há a Morte - personagem maior dentro do elenco de Discworld, a assumir pela segunda vez o protagonismo e as rédeas da comédia numa história de Discworld (a primeira foi em Mort, o quarto livro), sempre em small caps. Talvez Reaper Man não seja o melhor ponto de entrada na série para novos leitores, mas será sem dúvida um capítulo imperdível na longa história do universo satírico de Terry Pratchett.

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