24 de abril de 2013

O fantástico, os idiomas ficcionais e o Nadsat de A Clockwork Orange

No blogue da Amazing Stories, Lesley Smith publicou ontem uma interessante reflexão sobre o papel dos idiomas imaginários a propósito do mais recente episódio da terceira temporada de Game of Thrones. No artigo, intitulado The Rising Tide of Alien Languages, Smith diz o seguinte:
Dothraki, Valyrian and the other constructed languages, they are an important part of series like Defiance and Game of Thrones because they offer a feeling of validity which makes a fantastical world seem a little bit more real. Westeros and the future terraformed world of Defiance would be too alien, too unbelievable without them. Languages, even made up ones, offer a way in which we, the viewers, can become more deeply invested (...)
Em termos muito sucintos, o papel dos idiomas artificiais na ficção de género no cinema e na televisão é aquele que Smith aponta: tornar aqueles mundos ficcionais mais plausíveis, consistentes e diversificados. E, não sem ironia, menos estranhos pela sua estranheza. Ouvir Neytiri a falar um idioma estranho acompanhado por gestos também estranhos deu aos Na'vi em Avatar deu substância não só à personagem, como à todo o povo Na'vi - tornou-o mais "alienígena" (apesar do seu aspecto humanóide). O mesmo acontece com o povo Castithan em Defiance - o seu idioma próprio, muito usado nos (dois) episódios já exibidos, contribui de forma decisiva não só para a caracterização tribal daquelas personagens, como para a diversidade de toda a cidade de Defiance (e toda a série, por conseguinte). Tal como o Valyrian que os povos de Slaver's Bay falam em Game of Thrones, e que Daenerys também domina, dá um contributo inestimável para a caracterização da personagem e dos diferentes povos do mundo criado por George R. R. Martin - e, no caso em questão, serve de plot device para uma cena a todos os níveis notável. 

É certo que a questão idiomática torna-se mais prática na ficção audiovisual* como a televisiva, a cinematográfica ou a interactiva (videojogos), onde podemos ouvir os idiomas artificiais e seguir as suas traduções através de legendas, ou através de indicações de outras personagens. Isto, porém, não significa que na literatura não haja bons exemplos. Um dos mais óbvios será porventura o de J. R. R. Tolkien, ainda que no caso em questão a criação dos idiomas anteceda a prática ficcional, sendo de certa forma esta uma ferramenta daquela. No entanto, a mistura de vocabulário inventado e a distorção ou corrupção do idioma corrente são técnicas utilizadas por alguns autores para gerar o mesmo sentimento de estranheza e classificar uma personagem, um grupo ou uma tribo como "o outro". Afinal, quando Anthony Burgess coloca Alex a dirigir-se ao leitor de A Clockwork Orange no misto de inglês vernáculo e russo que designou por "Nadsat", não o faz apenas por uma questão estilística, por algum "snobismo" literário ou como mera táctica de ofuscação - há no exercício um propósito muito claro**. 

A referência a Burgess neste contexto não é inocente. Há dias, li em dois blogues diferentes duas apreciações, por acaso negativas (questão aqui irrelevante), ao clássico de Burgess (no Bookeater/Booklover e no Chaise Longue), e ambas "tropeçaram" no Nadsat. É possível que o problema resida nas traduções, e seria de facto interessante analisar as edições portuguesas de A Clockwork Orange para perceber se o significado e o contexto do Nadsat se perdeu na tradução (sugestão ao cuidado do Luís e da Mag). Independentemente de tais considerações, no Bookeater/Booklover escreve-se o seguinte
Mas será que acho que a linguagem "nadescente" ("nadsat" em inglês) é necessária para contar a história? Não. Como leitora, dificultou-me durante todo o livro o acompanhamento da história. Fui-me habituando ao uso de algumas palavras que aparecem mais, mas praticamente até ao fim tive de ir consultar o glossário, o que corta a fluidez da leitura. E será que a linguagem serve a história de algum modo? Se o objectivo era mostrar-nos como esta juventude está perdida, acho que os actos de violência falam por si, não precisam do nadescente.
E no Chaise Longue, o seguinte:
Apesar de ser um acto extraordinário e dever ser-lhe entregue os créditos por isso, a verdade é que mesmo tendo tido facilidade em acompanhá-la, achei que esta servia apenas para tornar ou fazer parecer que esta é uma história extraordinária, algo com que não posso concordar. (...) Para mim, há uma ideia que ganha sem dúvida pontos, e não, não é a linguagem que mais serve para aumentar o ego de um certo senhor e dificultar a leitura de algo simples, é sim o programa Ludovico.
O Nadsat não é, de facto, necessário para contar a história - mas, uma vez utilizado, tem um valor inestimável pela densidade e verosimilhança que confere a todo o mundo ficcional criado por Burgess. A linguagem é algo em permanente mutação, seja de forma natural seja por imposição política (temos um caso bem presente), algo de que Burgess estava bem ciente. Só por isso, a questão de linguagem  em A Clockwork Orange seria sempre relevante, impedindo que o calão de Alex se tornasse datado, preso à época em que o livro foi escrito. Mais do que isso, serve para individualizar Alex e reforçar a sua caracterização de alguém indiferente à sociedade em que se insere (algo que também se revela evidente na adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick). Como escreve Peter Stockwell no ensaio Invented Language in Literature***:
Nadsat serves to increase the reader’s involvement with the focalizer, Alex, but replacing many of the words also allows scenes of ‘ultra-violence’ and rape to be portrayed with an immediacy that the readermight otherwise recoil from more instantly. In this way, the novel pitches the reader into Alex’s mind more effectively than if the narrative had been written entirely in Standard English.
No fundo, a Nadsat de Burgess serve um propósito que não é tão diferente quanto isso dos idiomas artificiais de séries como Game of Thrones, Defiance ou Star Trek (convém não esquecer o Klingon), ainda que na sua essência seja mais ambicioso. Longe de ter o propósito de "aumentar o ego", ou algo que lhe valha, o Nadsat enriquece a obra, conferindo-lhe uma maior densidade e uma textura única e inconfundível. Sociopatas há muitos - mas nenhum outro sociopata de ficção - científica ou não - fala como Alex. Da mesma forma, a distopia literária de Burgess distingue-se das demais, e na sua caracterização a Nadsat tem um papel de relevo. Podemos, para todos os efeitos, considerar tal mecanismo um detalhe; mas talvez valha a pena lembrar que, em muitas situações, são detalhes como este que podem distinguir um excelente livro de um clássico. E A Clockwork Orange não é um clássico da literatura por acaso.


Fontes: Amazing Stories / Bookeater/Booklover / Chaise Longue

* E também na banda desenhada. Não foi por acaso, já agora, que Uderzo e Goscinny colocaram as falas de várias personagens das bandas desenhadas de Astérix em fontes diferentes nos balões - caracteres angulares para os gregos, góticos para os povos germanos, imagens - alusivas aos hieróglifos - para os egípcios, e para os escandinavos a sua característica acentuação; é uma solução não só muito inteligente como proporcionou várias situações hilariantes.

** Não considerei o newspeak de Orwell em Nineteen Eighty-Four por considerar que, no caso em questão, o propósito é radicalmente diferente (mas não menos interessante - bem pelo contrário). Outros exemplos, porventura mais próximos da Nadsat de Burgess ainda que não tão ambiciosos, podem ser encontrados em The Moon Is a Harsh Mistress, de Robert A. Heinlein, e Stand on Zanzibar de John Brunner.

*** Stockwell P (2006), Invented Language in Literature. In: Keith Brown, (Editor-in-Chief) Encyclopedia of Language & Linguistics, Second Edition, volume 6, pp. 3-10. Oxford: Elsevier.

2 comentários:

Loot disse...

Texto muito interessante. Não li "laranja mecânica" mas valorizo muito este tipo de trabalho que é hercúleo. Já o Newspeak do Orwell é fantástico, mas como não surge tanto durante a narrativa não incomodará muito os leitores. Mas, aquele apêndice é qualquer coisa de formidável.

Nada menos que formidável também me parece o trabalho do Burgess pelo que descreves. Acho que as pessoas são rápidas a julgar, em vez de perderem algum tempo a reflectir nas opções dos autores.

Isto remete-me para o Planeta dos Macacos (o filme, tb não li o livro), em que é completamente inverosímil o protagonista não estranhar que se fale inglês naquele planeta. Mais, o inglês é idêntico ao do seu tempo. Atenção, eu adoro o filme, apenas o uso como comparação, para sublinhar as razões da opção do Burgess.

Abraço

João Campos disse...

É um trabalho hercúleo, de facto - e muito interessante. Por vezes bastam algumas pequenas mudanças vocabulares para o idioma corrente parecer algo bastante diferente, e para tornar todo o universo ficcional bem mais credível. O Nadsat do Burgess foi muito bem transmitido no filme do Kubrick - aliás, a formidável interpretação do Malcolm McDowell ajuda.

Nunca vi o "Planeta dos Macacos" (uma das falhas!). Mas o inglês é sempre problemático. Lembras-me eu a jogar Mass Effect e a pensar "mas os humanos são a raça mais nova desta comunidade galáctica, e já toda a gente fala inglês? E alguns com sotaque russo? Espectacular." Enfim, é um mal necessário. Nem todas as produções audiovisuais podem ter um louco (no bom sentido) como o Mel Gibson à frente, tal como nem todos os autores conseguem arranjar soluções elegantes - ou hilariantes - como o "Babel Fish" de Douglas Adams... :)

Abraço