6 de novembro de 2012

V for Vendetta: Os protagonistas

Uma das riquezas de V for Vendetta, a par do enquadramento histórico/distópico e dos elaborados arcos narrativos, reside nas suas personagens. Neste campo, Alan Moore não se limitou ao estritamente necessário para a história funcionar (como acontece no filme), e criou uma vasta galeria de personagens principais, secundárias e figurantes que não só compõem aquela sombria Inglaterra, como lhe dão espessura, tornando a própria narrativa mais densa e complexa à medida que as histórias pessoais de cada personagem se envolve, de forma directa ou indirecta, no grande plano de V.

Há quatro personagens que podemos identificar como protagonistas: V, Evey Hammond, Eric Finch e Adam Susan. Comecemos por este último.


Adam Susan
Adam Susan é o líder do Norsefire e quem, na prática, governa o reino através do supercomputador “Fate”. Revela uma profunda convicção nos seus ideais fascistas e nas suas convicções de pureza racial, e está seguro de que as suas acções no pós-guerra para ascender ao poder foram legítimas e correctas. No entanto, Susan não é um vilão no sentido habitual do arquétipo; considera-se um homem comum ("I am a man, like any other man"). Parece amar genuinamente o seu país e o seu povo, sem contudo deixar de ter a perfeita noção de que esse sentimento não é recíproco. Contenta-se com a alternativa: o respeito através do medo. Do conceito de fascismo deriva o ideal que orienta o seu partido e a sua governação: força pela pureza e pela união - "And if that strenght, that unity of purpose, demands an uniformity of thought, word and deed, so be it". Exigiu ao seu povo que abdicasse de uma liberdade na qual não acredita em troca de estabilidade e segurança - e considera ele mesmo ter abdicado da sua liberdade, tal como o seu povo ("I sit here within my cage and I am but a servant"). Afastado até dos seus colegas de partido, vive num profundo isolamento, com um mínimo indispensável de contacto com outras pessoas e sem vida social relevante. A adoração que sente pelo supercomputador “Fate”, ao ponto da obsessão, é o indicador perfeito do grau de isolamento de um líder totalitário particularmente denso e ambíguo, e estabelece um contraste muito interessante com V.

V
A primeira pergunta que ocorre quando V surge é: quem é este personagem? Alan Moore deu muita informação: foi prisioneiro em Larkhill, o que indica que pode ter pertencido a um grupo (étnico ou político) mal visto pelo fascismo em ascensão. Foi submetido a tortura e a experiências naquele campo de concentração - como resultado, as suas capacidades físicas evoluíram de forma anormal, e desenvolveu uma psicose invulgar e uma personalidade magnética e muito carismática. Dotado de uma extraordinária inteligência (e de uma vasta cultura), concebeu um plano de longo prazo que culminou na destruição de Larkhill; nas sombras, perseguiu e matou de forma dissimulada os responsáveis pelo campo, até se revelar no rapto e tortura a Lewis Prothero e nos assassinatos de Delia Surridge e do Bispo Lilliman. Anárquico convicto, desenvolveu um plano elaborado para derrubar o partido fascista no governo e devolver o poder de Inglaterra aos cidadãos. Assumiu a máscara de Guy Fawkes e fez o que o conspirador se propusera fazer e não conseguira: explodir o Parlamento em Londres. É, para todos os efeitos um terrorista (ainda que muito teatral), e neste ponto não há qualidades redentoras: tem um objectivo e não hesita na hora de matar quem estiver entre ele e o seu propósito. Alan Moore diz-nos isto e muito mais nas páginas do comic - mas mesmo com toda esta informação, não sabemos quem de facto é V.

A densidade de V for Vendetta é bem visível na elaborada construção do seu protagonista. A identidade de V é irrelevante na medida que a personagem, considerada enquanto indivíduo, é irrelevante - o que acompanhamos ao longo das cerda de 260 páginas não é tanto uma personagem, mas uma ideia ("ideas are bulletproof", diz-se a dada altura, uma noção do comic que passou de forma particularmente forte na adaptação cinematográfica). Uma ideia de defesa intransigente de liberdade acima de tudo o resto, por todos os meios que forem necessários. Daí a sua morte não ser, para todos os efeitos, uma morte - a ideia que V encarnava perdurou em Evey, e fica a ideia de que perdurará para além dela. Podemos ter a tentação de olhar para V como um herói - afinal, combate um regime fascista opressivo -, mas Alan Moore em momento algum o ergue acima da sua ambiguidade. Como o próprio afirmou em entrevista, a decisão de definir V como herói ou vilão, como louco ou são, fica ao critério do leitor.

Evey Hammond
Apesar do protagonismo de V ao longo de toda a obra, diria que Evey Hammond é a verdadeira protagonista - quando não mesmo heroína - de V for Vendetta. É apresentada logo nas primeiras vinhetas como uma jovem e insegura rapariga que, sem outras alternativas na vida, opta pela prostituição - apenas para cair nas malhas dos “Fingermen” e ser salva por V. Na "Shadow Gallery", conhecemos o seu passado: a vida familiar em criança, a perda da mãe, a captura e presumível morte do pai, a institucionalização e o trabalho fabril, a vida no limiar da miséria. De todas as personagens de V for Vendetta, será porventura aquela que tem um crescimento mais sustentado, através de um arco narrativo longo e memorável. O seu fascínio por V leva-a a ajudá-lo, mas não a impede de contestar o seu recurso a métodos violentos.

Evey vive num estado de insegurança permanente até ao momento em que se vê obrigada a enfrentar os seus maiores medos e a decidir entre os seus princípios e a sua vida, num dos momentos mais marcantes tanto do comic como do filme. Para a sua resistência e subsequente transformação de adolescente inocente e frágila para uma mulher forte, determinada e segura de si contribui de forma definitiva a carta de Valerie Page, prisioneira de Larkhill que não sobreviveu às experiências a que foi submetida (e uma fascinante personagem ausente, com um contributo muito relevante para a caracterização da ascensão do Norsefire). No final, percebe o que V não é um indivíduo mas uma ideia - e, como tal, assume a máscara e o legado de V optando por não descobrir o rosto do homem que encarnara aquela ideia até então.

Eric Finch
Eric Finch é o líder da nova polícia de investigação e responsável pelo departamento habitualmente designado como “The Nose”. Desde o primeiro momento, com o ataque de V ao Parlamento, percebe que as autoridades não estão a lidar com um problema comum, e receia o momento em que tenha de pensar como o terrorista para poder prever o seu próximo passo. Pragmático por natureza, não só não tem ilusões quanto à natureza do regime político em vigor como também não faz questão de manter em segredo o seu desinteresse pelas questões políticas e, sobretudo, pelo Norsefire; é tolerado por Adam Susan devido à sua integridade, à sua honestidade e ao seu rigor.

A cruzada de vingança de V interfere directamente na vida pessoal de Finch quando Delia Surridge é assassinada. Finch dedica todos os seus esforços (indo mesmo a alguns extremos) para desvendar o enigma de Larkhill para descobrir quem é V e poder eliminá-lo. O seu eventual sucesso não consegue parar as engrenagens do vasto plano que V colocara em marcha.

(continua)

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