1 de novembro de 2012

O sofisma da ficção "de género"

Há dias, publiquei um artigo sobre a introdução escrita por Paul Krugman (sim, esse mesmo) a uma nova edição da trilogia Foundation, de Isaac Asimov. Nos comentários, o Rogério Ribeiro faz uma alusão à tendência, deveras irritante, de retirar do género a literatura de género que se destaca pela sua qualidade e que é recebida entre a literatura mainstream - séria, sofisticada e não-comercial. O ponto reside no seguinte excerto do texto de Krugman:
Quando li o (excelente) texto de Paul Krugman interpretei de forma diferente as palavras do economista. Não é segredo para ninguém que para a trilogia Foundation Asimov inspirou-se de forma mais directa no clássico The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, de Edward Gibbon, do que noutras obras de ficção científica da década de 40 (quatro das cinco histórias que compõem o primeiro livro da trilogia original, Foundation, foram publicadas na revista Astounding Magazine entre 1942 e 1944; o livro data de 1951). Julgo - mas é a minha interpretação, claro - que Krugman não quis dizer que a trilogia Foundation é tão relevante tanto de um ponto de vista qualitativo como temático que "transcendeu o género" (já lá irei), mas sim que esta extraordinária obra de Asimov, um dos mestres da ficção científica, incide mais sobre o nosso passado e o nosso presente do que sobre o futuro distante que aparentemente imagina ou retrata, e mais sobre a sociedade em si do que sobre os seus aspectos tecnológicos. Não anda longe da verdade, e esse é um dos aspectos mais interessantes a propósito da grande ficção científica: não é tanto sobre o futuro como sobre o presente. Mas isso é outra história.

De qualquer forma, o comentário fez-me relembrar o recente retorno da velha polémica da literatura de género versus grande literatura, há dias reacendido por Arthur Krystal com um artigo intitulado It's genre. Not that there's anything wrong with it!, publicado na revista The New Yorker. O tema é mais ou menos recorrente, e mesmo a discussão que Krystal reacendeu surge na resposta à crítica de Lev Grossman na revista Time a um outro texto seu, também na The New Yorker, já de Maio. Como disse, esta polémica é velha, e assenta - passe a simplificação quase grosseira - na noção de que a ficção "de género" (por género entendemos o policial, o thriller, a fantasia e a ficção científica, entre outros) será sempre inferior à dita ficção literária. A tal "grande literatura", que recebe prémios importantes, que figura em listas como esta do Expresso e que toda a gente dita "importante" tenciona ler no Verão.

Cartoon de autor desconhecido (mas irresistivelmente apropriado)
Mas divago. Na verdade, boa parte da tese que Arthur Krystal defende no seu texto mais recente foi respondida (e não sem ironia) no texto de Lev Grossman ao qual respondeu, mas julgo haver nesta resposta à resposta mais alguns pontos que merecem ser comentados - e que, ao longo da última semana, têm sido muito comentados em vários espaços online dedicados à tal literatura menor, "de género". De facto, a réplica algo condescendente de Krystal revela alguma pobreza argumentativa, a começar desde logo pelo início, na alusão que faz ao comentário de Ursula K. Le Guin (por sinal uma das mais relevantes autoras de fantasia e ficção científica da segunda metade do século XX) no contexto desta polémica reacendida:
The science-fiction writer Ursula K. Le Guin, for instance, announced that literature “is the extant body of written art. All novels belong to it.” Is that so? A novel by definition is “written art”? You know, I wrote a novel once, and I’m pretty sure that Le Guin would change her mind if she read it.
Passe o algo ridículo humor auto-depreciativo, aqui reside o primeiro problema da argumentação de Krystal - ignora tudo aquilo que, na ficção literária, existe entre o razoável e o mau para, a partir dos casos excepcionais, estabelecer comparações com tudo o resto de forma mais ou menos indiscriminada. Não por acaso, Le Guin tem razão naquilo que diz: a questão não é se uma obra de ficção é ou não literatura, mas sim se é boa ou má literatura - e ao entrarmos em categorias qualitativas, importa deixarmos preconceitos de género (pun intended) à porta. Será provavelmente verdade que pouca literatura de ficção científica (para me centrar no género que conheço melhor) se compara a The Sound and the Fury de Faulkner - mas, com franqueza, quanta ficção literária se lhe pode comparar?

Ainda assim, e apesar da sua desonestidade intelectual, este argumento nem seria, em si, problemático. A ficção científica e a fantasia (e, decerto, o thriller e o policial) possuem imensos exemplos de obras de elevada qualidade, como também possuem muita palha, algo que é comum ao cinema, à pintura - enfim, a toda a arte. O problema é que Krystal insiste na batota argumentativa:
Genre, served straight up, has its limitations, and there’s no reason to pretend otherwise. Indeed, it’s these very limitations that attract us. When we open a mystery, we expect certain themes to be addressed and we enjoy intelligent variations on these themes. But one of the things we don’t expect is excellence in writing, although if you believe, as Grossman does, that the opening of Agatha Christie’s “Murder on the Orient Express” is an example of “masterly” writing, then you and I are not splashing in the same shoals of language. (...) It seems to me that Chabon, Egan, and Ishiguro don’t so much work in genre as with genre. “All the Pretty Horses” is no more a western than “1984” is science fiction. Nor can we in good conscience call John Le Carré’s “The Honorable Schoolboy” or Richard Price’s “Lush Life” genre novels. (destaques em bold da minha autoria)
Em resumo: se o livro exibir "excellence in writing", é "ficção literária" e não "ficção de género". Um sofisma, portanto - assim é fácil argumentar. Para ilustrar o seu exemplo, Krystal vai buscar, entre outros, 1984, de George Orwell, um dos clássicos da literatura do século XX e uma obra-prima literária a todos os níveis - uma daquelas que, como se costuma dizer, "transcende o género", argumento que todos já ouvimos ou lemos aplicado a livros como A Clockwork Orange, de Anthony Burgess ou Brave New World, de Aldous Huxley. O problema é que não transcendem género algum - são, sim, obras excepcionais dentro do seu género que atestam que a grande literatura é alheia a géneros ou temas. Para perceber isto basta desconstruir um pouco 1984 em alguns dos seus elementos fundamentais, como a projecção num futuro de questões pertinentes do presente ou a evolução tecnológica e a respectiva problematização, tanto em termos políticos como em sociais (uma vez mais, estou a simplificar) - justamente dois dos pilares da ficção científica desde que Mary Shelley escreveu Frankenstein (outro exemplo, por sinal).

No seguimento desta ideia surge outra - a de que alguns autores não escrevem dentro do género mas com base no género (passe a tradução). Convém acrescentar que esta ideia é difundida e defendida não só pelos críticos da "ficção literária" como também por alguns autores. Margaret Atwood, por exemplo, celebrizou o conceito de "ficção especulativa" para definir os seus livros de ficção científica (e também ficou célebre por ter ganho o Prémio Arthur C. Clarke em 1987 com The Handmaid's Tale, e não ter ido receber o prémio). Também P. D. James defendeu algo idêntico sobre The Children of Men, livro de 1992 (adaptado ao cinema em 2006), apesar de a premissa fundamental da obra - a infertilidade como base de uma distopia - fazer parte da ficção científica desde que Brian Aldiss publicou Greybeard, em 1964. É um bom truque: vão ao género buscar as premissas que sustentam as suas narrativas, para depois fugirem do género - que horror, o género - como o diabo da cruz. Quem resumiu muito bem a coisa foi o escritor e crítico Michael Chabon numa crítica, já antiga, publicada na The New York Review of Books ao livro The Road, de Cormac McCarthy: The anti–science fiction prejudice among some readers and writers is so strong that in reviewing a work of science fiction by a mainstream author a charitable critic will often turn to words such as “parable” or “fable” to warm the author’s bathwater a little (...). Não por acaso, cheguei a este texto através de um artigo muito interessante de Sam Jordison no The Guardian (de 2008) sobre, precisamente, The Road e um clássico da ficção científica que o autor define como "antecessor" do livro premiado de McCarthy: A Canticle for Leibowitz, de Walter M. Miller, Jr.. Mas, honra lhe seja feita, não faço ideia se o norte-americano rejeitou ou não a influência da ficção "de género" nesta sua obra (ou, já agora, se leu Miller, Jr.).

Esta discussão, como decerto já se percebeu, cedo se torna estéril. Alyssa Rosenberg, num curto mas incisivo artigo sobre o tema, deixa uma pergunta que julgo ser a mais interessante em todo o debate: Why they’re resistant to that recognition [of science fiction as literature] is the really interesting question. Não creio, contudo, que algum dia haja uma resposta a tal questão. Certo é que dificilmente o preconceito se desvanecerá enquanto os próprios autores continuarem a agir como se alérgicos ao género - à ficção científica ou a outro considerado "popular" e "comercial". Mas, verdade seja dita, no fundo isso pouco importa - e é por isso que este debate se revela estéril. Enquanto leitores, temos ao nosso dispor boa literatura e má literatura; e, na literatura, bons e maus romances, boa e má ficção científica, bons e maus mistérios - em suma, temos liberdade de escolher o que queremos ler. Vivemos num mundo onde podemos, sem qualquer constrangimento, optar por Philip K. Dick, Raymond Chandler ou James Joyce - e, já agora, num mundo onde a mesma The New Yorker que publicou os artigos de Arthur Krystal editou uma revista especial dedicada à ficção científica no início do Verão (com textos de, entre outros, Ray Bradbury, Ursula Le Guin, William Gibson, Anthony Burgess e, curiosamente, Margaret Atwood). Perante tal diversidade, estas polémicas - duas literaturas "engalfinhadas", aludindo à cena clássica de Eça - são reduzidas à sua verdadeira (e ínfima) dimensão.

Fontes:
Krystal, Arthur, "Easy Writers: Guilty Pleasures Without Guilt", The New Yorker, 28/05/2012
Krystal, Arthur, "It's Genre. Not That There's Anything Wrong With It!", The New Yorker (online), 24 /10/2012
Grossman, Lev, "Good Books Don't Have To Be Hard", The Wall Street Journal (online), 29/08/2009
Grossman, Lev, "Literary Revolution in the Supermarket Aisle: Genre Fiction Is Disruptive Technology", Time Entertainment (online), 23/05/2012
Jordisson, Sam, "The Hugo Award Winner that spawned a Pulitzer Prize winner", The Guardian (online), 27/10/2008
Chabon, Michael, "After the Apocalypse", The New York Review of Books, 15/02/2007
Rosenberg, Alyssa, "Arthur Krystal Revives the Genre Fiction v. Literature Debate", Think Progress (online), 29/10/2012
Anders, Charlie Jane, "Guy who thinks all lit fiction is superior to genre obviously hasn’t read much lit fic", io9 (online), 30/10/2012

4 comentários:

Rogério Ribeiro disse...

SOBERBO!

Abraço,
Rogério

João Campos disse...

Obrigado, Rogério!

Abraço,
João

Álvaro de Sousa Holstein disse...

Parabéns! Excelente artigo.

João Campos disse...

Obrigado, Álvaro!