13 de novembro de 2012

O pesadelo burocrático e o sonho libertador de Brazil

Se alguém juntasse a visão distópica de Nineteen Eighty-Four, o poder alegórico de Dr. Strangelove, o visual extraordinário de Metropolis, o escape onírico de Philip K. Dick e uma pitada do humor absurdo dos Monty Python, o resultado só poderia ser um: Brazil, o clássico da ficção científica que Terry Gilliam realizou em 1985. Resumir desta forma o filme pode parecer estranho - quase como se fosse uma mera amálgama de várias influências e ideias emprestadas. Brazil é, porém, muito mais do que isso: é uma história distópica original, fascinante e arrebatadora do ponto de vista visual.

Apesar de nunca ter lido a obra de Orwell, Gilliam admitiu que Brazil tinha fortes influências de Nineteen Eighty-Four. O que, bem vistas as coisas, não é de estranhar: Orwell acabou por, de certa forma, estabelecer o cânone da distopia literária, e qualquer história contada num futuro em que o Estado assume um controlo totalitário sobre os cidadãos acaba sempre por ser comparada com o mundo sombrio de Nineteen Eighty-Four. Onde em Orwell encontramos uma sociedade permanentemente controlada pela omnipresença do "Grande Irmão", em Gilliam encontramos uma sociedade esmagada pelo peso burocrático de um Estado controlador, de tal forma que uma simples reparação de uma canalização avariada sem contactar os Serviços Centrais e sem passar um recibo é um autêntico acto de rebeldia. Onde Orwell utiliza a distopia para traçar uma tenebrosa alegoria política, Gilliam recria a distopia como uma sátira, cujos elementos oníricos e absurdos pautam uma narrativa poderosa que nem por isso perde a sua força enquanto alegoria - mostrando uma sociedade que oprime a iniciativa, a ambição, tudo envolvendo numa densa malha burocrática de tal forma complexa que dilui quaisquer noções de responsabilidade ou de individualidade.

Essa sátira à sociedade burocrática é feita através de duas personagens memoráveis. Uma delas é Sam Lowry (Jonathan Pryce), um homem que, apesar da sua visível competência no seu trabalho no Ministério da Informação, não manifesta qualquer ambição de ascensão social - por contraste com a sua mãe, obcecada com as aparências. Apenas na sua fuga para os seus sonhos as suas verdadeiras ambições são reveladas: a liberdade de um mundo que o oprime, a liberdade de ser quem quiser e fazer o que desejar, a liberdade de amar. O encontro fortuito, Jill (Kim Greist), a mulher que assombra os seus sonhos, leva-o a procurar uma forma de tornar a encontrá-la - e, enreda-o na burocracia qual aranha numa teia. A segunda personagem, com quem Lowry se cruza durante o seu percurso, é Archibald “Harry” Tuttle (Robert De Niro), considerado pelas autoridades um perigoso terrorista (mas na prática um individualista - o que num mundo ganha a qualidade de sinónimo). 

Do ponto de vista visual, Brazil é espantoso - sombrio, em momentos claustrofóbico, quase sempre arrebatador. Há nos seus cenários e nas suas formas qualquer coisa de Metropolis, mas distorcida da forma muito própria de Gilliam, ele que foi o principal responsável pela imagem tão icónica como absurda dos eternos Monty Python. Longe de estar datado, o seu visual único consegue ser ao mesmo tempo desconfortável e libertador, passando com uma invulgar simplicidade dos sonhos mais radiantes para o pesadelo da vida real - magistralmente retratado no fausto irreal de espaços como o restaurante, no caos burocrático do escritório, no portentoso edifício do Ministério da Informação, no minúsculo apartamento de Lowry e na vida arruinada dos bairros pobres. Os efeitos especiais são extraordinários e surreais, datados sem que tenham no entanto envelhecido um dia .

Brazil está sem dúvida entre os melhores filmes de Terry Gilliam - e este foi o realizador de obras como 12 Monkeys e Monty Python and The Holy Grail. Com um título inspirado na música Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (no filme interpretada por Geoff Muldaur), e com um inteligente argumento escrito por Gilliam, Tom Stoppard e Charles McKeown, Brazil é um filme particularmente influente tanto na sua componente visual como nas suas vertentes de narrativa e de temática. Destaca-se na ficção científica não só como um dos grandes filmes da década de 80, mas como um dos grandes clássicos da história do género. 8.9/10

Brazil (1985) 
Realizado por Terry Gilliam 
Com Jonathan Pryce, Kim Greist, Robert De Niro, Ian Holm, Michael Palin e Jim Broadbent 
132 minutos

4 comentários:

Loot disse...

e aquele final?

é Gilliam no seu melhor sim senhor.

João Campos disse...

O final é excelente, mas é toda a estética surreal do filme que o torna inesquecível. Fazem falta mais filmes destes.

Tiago disse...

Por incrível que pareça, ainda não tive oportunidade de visualizar esta obra do Gilliam. Em Dezembro vou colmatar está falha e vou vingar-me na versão Director's Cut de 142m. :) Abraço

João Campos disse...

Vi-o pela primeira vez há um ano, mais coisa menos coisa. Revi-o há dias. é impressionante!

Abraço