9 de novembro de 2012

O legado de V for Vendetta

Ao longo da semana, descrevi V for Vendetta como um comic “icónico”, e este adjectivo não surge por acaso. Alan Moore e David Lloyd criaram nas páginas da extinta “Warrior” uma verdadeira obra de culto, com um futuro próximo assustadoramente plausível, e cuja verosimilhança não se perde apesar de 1997 ser já um ano distante e de o mundo como o conhecemos ter mudando de forma muito radical (porventura mais radical do que gostaríamos) nos últimos 15 anos. V for Vendetta mostra-nos como pode ser fácil um regime autoritário erguer-se e dominar uma população, e mostra-nos o papel assustador que a tecnologia pode assumir para um nível de repressão nunca antes visto. Até aqui, nada de novo - Orwell já o fizera nos anos 40, e de forma  sublime. Aquilo que Moore e Lloyd nos mostram, e que Orwell e outros não mostraram, é os meios que um povo subjugado podem utilizar para lutar contra o totalitarismo - e como esses meios não são necessariamente bons ou justos num mundo em que o Bem e o Mal não são valores absolutos, mas variáveis e muito, muito voláteis. V for Vendetta questiona a autoridade do Estado, e a sua vertente repressiva - mas, ao mostrar-nos a luta contra essa repressão, está também a colocar questões relevantes. É legítimo falar em nome de todo o povo? É legítimo matar e torturar para obter a liberdade? Em última análise - se descemos ao mesmo abismo dos nossos inimigos, e empregamos métodos similares, o que nos distingue?

É bom de ver que, neste início do século XXI, esta mensagem é mais pertinente do que nunca.

Ainda assim, a mensagem e o simbolismo de V for Vendetta - tal como a sua excelente arte, a narrativa de complexidade literária, as personagens densas e ambíguas - poderiam ter permanecido não perdidos mas ignorados. Sim, o comic foi muito lido, e é há anos considerado uma das obras mais importantes do formato. Mas os comics, a banda desenhada - enfim, na designação mais nobre, as graphic novels - continuam conhecer um consumo reduzido em relação a outros formatos artísticos. Independentemente dos seus méritos e das suas limitações, o filme que adaptou V for Vendetta ao grande ecrã levou a luta de V para um público muito mais vasto - que absorveu desde logo a mensagem. Frases como “ideas are bulletproof”, retirada do comic e reproduzida no filme, ou “people should not be afraid of their governments. Governments should be afraid of their people”, original do filme, tornaram-se recorrentes em protestos políticos que hoje acompanhamos a uma velocidade desconcertante na Internet. E Guy Fawkes, personagem algo esquecida da história de Inglaterra, chegou por fim à cultura popular. O colectivo Anonymous, sem dúvida um dos mais interessantes fenómenos que emergiu da Internet, adoptou as máscaras de Guy Fawkes em 2008 na “Operation Chanology”, contra a Igreja da Cientologia, e desde então a máscara de Guy Fawkes tornou-se no seu símbolo. Aliás, é interessante notar como o colectivo Anonymous assumiu parte da mensagem de Moore e Lloyd: também este grupo, composto por imensa gente, não tem um rosto, um líder, uma estrutura.

Com o mediatismo do colectivo Anonymous, as máscaras de Guy Fawkes tornaram-se ainda mais populares. Ao que consta, vendem-se como pãezinhos quentes na Amazon, e não há protesto político contemporâneo que não tenha uma ou mais pessoas com a cara coberta pelo sorriso desconcertante da máscara - dos movimentos"Occupy" às revoluções da dita “Primavera Árabe”. Tanto Moore como Lloyd já manifestaram satisfação por o símbolo que criaram estar associado à luta pela liberdade em tantos locais e tantas circunstância diferentes. Mas essa associação só se tornou possível pela súbita popularidade de V - e essa popularidade só se tornou global após o filme, mesmo que o filme tenha levado (como acredito que levou) muita gente a ir ler o comic original.

Mas a verdade é que discutir se a popularidade de V for Vendetta se deve aos comics ou ao filme acaba por ser um exercício mais ou menos irrelevante - foi através das duas obras que V conquistou o seu lugar no imaginário popular, e mais como símbolo do que como personagem. O que, diga-se em jeito de conclusão, faz plena justiça ao ideal que Moore e Lloyd escreveram e desenharam juntos em V for Vendetta, e dá ao comic uma dimensão que muito poucas obras do género alcançaram.



7 comentários:

Loot disse...

Vou começar por referir que já li a entrevista de Moore e é realmente das entrevistas mais amargas (dentro da BD) que já li. Uma pena que as coisas tenham chegado a esse ponto, mais do que os problemas com a DC, tenho pena da forma como as coisas seguiram com Gibbons e até Lloyd.

Tudo começa como eu pensava, aquele contrato em que ele se sente enganado e a partir daqui as coisas assumem proporções gigantes (verdadeiras ou não). Chega a um ponto que ele nem tem um exemplar de Watchmen em casa, é triste.

Eu imagino o que é, mexerem com as nossas criações, os nossos bebés. Custa. Apesar de no caso de Watchmen, se ele tivesse autorização da DC teria usado personagens existentes, ou seja, personagens que já teriam outras histórias, já haveria de certa forma um before watchmen e ele seria o autor a pegar no trabalho de outros. E nada disso diminuiria Watchmen. Mas, como ele diz é preciso é isto estar assente, uma pessoa saber para o que vai.

Há sempre uma vertente comercial, por norma. Mesmo para editar livros pelo amor à arte é preciso dinheiro, é preciso editar livros que vendam. Não se pode esquecer este aspecto, infelizmente, o dinheiro leva a uma ganância que muitas vezes é leva a destruição de certas relações, de certas obras até. é uma pena, a DC só teria a ganhar com Moore a bordo. Os livros dele continuam a ser os melhores neste registo de BD, ele trouxe uma componente literária fortíssima e soube fazê-lo, porque a linguagem em BD é diferente, não são todos os autores de literatura que escrevem bem BD. Moore.

Bem, dava para falar mto disto. Vou só salientar a menção que ele fez a Jack Kirby, que é tão merecida.

Loot disse...

Quanto ao post. Sem dúvida que o filme, levou alguns ao livro, não sei se foram mts, mas é, como dizes, irrelevante.

A mensagem passou. O Lloyd sempre quis isso, daí optar pela coloração do livro e por concordar com a adaptação em cinema. Porque tudo isto levaria V a mais pessoas, e tinha razão. Hoje basta olhar para as máscaras de Fawkes.

Não sei porque as graphic novels continuam a ter um consumo reduzido. Talvez porque não há um hábito de compra, porque a oferta não abunda. Os preços...

A verdade é que em literatura o vende mais também são livros como os do Rodrigues dos Santos e Dan Brown, que na BD não seriam os Watchmen e V for vendetta's. Ainda assim é mais reduzido que nas outras artes, o consumo. Seria interessante ter valores estatísticos para discutir isto, assim sinto que estou a especular demasiado correndo o forte risco de estar errado.

Ainda voltando aquela entrevista. O jornalista, podia ter feito referência a outras obras. Há livros muito interessantes mesmo dentro dos comics, que merecem destaque, e ideia novas e originais. Há vida além das obras de Alan Moore, que são importantíssimas e do melhor claro. Mas há.

abraço

João Campos disse...

As graphic novels continuam a sofrer do estigma da banda desenhada: ou é para crianças, ou é para nerds. Vai ser necessário haver mais duas ou três gerações a desenhar bandas desenhadas eróticas para resolver o problema.

Na literatura a coisa é um bocadinho diferente porque os grandes escritores vendem sempre muito, nem que seja por uma questão de aparência. Ninguém vai comprar V for Vendetta ou Sin City para passar por "intelectual"; já um Saramago (que nunca li) ou um Dostoievsky (que li e adoro) serve para o efeito.

E sim, a entrevista é muito amarga. O Alan Moore pode ser teimoso, mas também me pareceu que a DC foi tudo menos correcta. Aquele contrato é muito sacaninha...

Abraço

Loot disse...

A DC foi sacana, apesar de ele próprio admitir que não leu bem o contrato, confiou nas pessoas. E, infelizmente, foi o erro dele. "amigos, amigos. negócios à parte". E é aqui que tudo se desmoronou com muita pena minha. O Warren Ellis parece-me um tipo que já soube jogar melhor com isto, faz BD's para grandes editoras para ter dinheiro para os seus projectos pessoais.

Eu do Saramago li o ensaio sobre a cegueira e gostei muito. Dostoievsky é das coisas mais poderosas que já li.

A BD é diferente da literatura, e tens razão na parte da imagem do intelectual. Mas os comics é que são associados aos nerds e geeks. A BD europeia é de certa forma elitista e intelectual tb. Tenho ideia que quem tinha dinheiro é quem lia, pelo menos no tempo dos meus pais, é a percepção que tenho quando vejo hoje quem lê este género de BD.

As obras do Moore remetem-nos para a literatura, mas nem todas as BD's têm de o fazer. Há muita poesia de imagens por aí fora. E coisas experimentais, humorísticas que são completamente aparte da literatura, específicas desta linguagem. Veja-se o exemplo de um "O amor infinito que te tenho e outras histórias" do Paulo Monteiro.

E vice-versa claro, há livros que adaptados a BD, mesmo ficando bons perderiam "a voz" do autor e a força das suas palavras. Há um filme, que nunca vi, do crime e castigo. Acredito que seja bom, mas estar dentro da cabeça do Raskolnikov, só dá daquela maneira :)

Eu pessoalmente gosto de tudo, e tb quando os géneros se encontram. Há espaço para tudo, há mesmo muita coisa interessante neste mundo.

Isto faz-me lembrar um post teu atrás, sobre a literatura e ficção científica. Como se o 2º não fosse o 1º para algumas pessoas. O que não faz sentido nenhum.

Abraço

João Campos disse...

Talvez, mas a BD europeia a mim não me diz tanto como alguns comics e algumas graphic novels. Salvo algumas excepções: sou fã incondicional de Astérix e ando há anos a ver se deito a mão à trilogia "Nikopol" de Enki Bilal, sem grande sucesso.

E sim, cada macaco no seu galho. Não teria qualquer interesse num filme, numa série ou numa BD de "Crime e Castigo" - ou de "Aparição", de Vergílio Ferreira (outro livro que li na mesma altura e que tenho entre os meus preferidos). Nesse aspecto, partilho a tua opinião: ainda bem que vivemos num mundo onde há de tudo um pouco.

A discussão entre literatura e ficção científica... ui, essa é longa :)

Abraço

Loot disse...

A BD europeia tem o problema, para mim, da língua. Não domino de todo o francês e há muitas coisas que me escapam, ando a ver se melhoro isso. Digo o francês porque há tudo editado nesta língua. Estando dependente das edições em português é muitas vezes tramado porque, ou não acontecem ou ficam incompletas, o que acontece muitas vezes. Este ano tem sido bom por acaso, editaram dois livros do Cyril Pedrosa, o PORTUGAL (ASA) e o 3 sombras (Polvo).

Mas, a BD Europeia é riquíssima e tem muita coisa dentro da ficção científica :P

E em termos de desenhos é do melhor. Não existe aquele mercado mensal como na americana e na japonesa, onde tudo é editado mais rápido. Aqui muitos autores têm anos para completar certas BD's. Não é uma questão de dizer que uns são melhores, nada disso, apenas há mais tempo para dedicar às páginas.

A trilogia Nikopol, experimenta ir à feira do livro à banca da ASA. Compras na hora h por metade do preço e costuma haver. Vale a pena, nem que seja pelo desenho que Bilal é genial, mas eu também aprecio os seus argumentos alucinogénicos.

O Astérix é na linha clássica fraco-belga e também cai nas minhas preferências. Porque o Goscinny foi um dos grandes argumentistas deste género. Veja-se os seus argumentos para o Lucky Luke também, ou o seu Iznogoud. E depois foi das primeiras coisas que li na vida, ganha outra força também.

Abraço

João Campos disse...

Ah, mas eu não duvido da riqueza da BD europeia. Bem pelo contrário.

Já passei por isso das edições incompletas. Há já largos anos, comprei cá um álbum de BD francesa intitulado "Paraíso Perdido", editado pela Vitamina BD. Faz parte de uma (excelente) série de quatro, e foi o único a ser traduzido. Os outros três foram comprados em França, quando tive oportunidade de lá ir. Não que o meu francês seja brilhante, mas é suficiente para ler uma BD que não seja demasiado complexa.

Vou aproveitar a tua sugestão para conseguir a Trilogia Nikopol, obrigado :) Ando para a comprar desde que vi o filme.

Abraço