6 de setembro de 2012

Distopias (1)

Há uma diferença assinalável entre a distopia enquanto tema literário tradicional ou mesmo subgénero da ficção científica, e a recente moda - se já podemos usar tal designação - das distopias Young Adult (YA) que Suzanne Collins parece ter inaugurado e celebrizado com a série The Hunger Games, e que parecem querer substituir a moda dos vampiros adolescentes que todos tivemos de aturar nos últimos anos*. Acontece que as distopias já cá andam há imenso tempo - e, não por acaso, algumas das obras de ficção científica que mais se destacaram junto dos círculos literários mainstream e elitistas foram distopias. Livros como Nineteen Eighty-Four, de George Orwell, A Clockwork Orange, de Anthony Burgess, Brave New World, de Aldous Huxley ou Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, para citar aqueles que serão porventura aos mais conhecidos e reconhecidos, saltaram há muito a fronteira do género e, hoje em dia, surgem com relativa frequência nas famosas - e, regra geral, previsíveis - listas dos “livros da vida” de toda a gente.

Podemos, claro, mencionar outras distopias: Stand on Zanzibar, de John Brunner; Children of Men, de P. D. James (que não é autora de ficção científica), V for Vendetta, de Alan Moore, The Space Merchants, de Frederik Pohl e Cyril M. Kornbluth, ou Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick (aliás, a obra de Dick encaixa com regularidade na distopia, e quase é uma categoria distópica própria). Mesmo o cyberpunk, em si um subgénero, entra com frequência nas convenções da distopia - exemplo disso é Neuromancer, de William Gibson (se quisermos passar para o cinema, vejamos Blade Runner ou The Matrix). Sem esquecer outras obras enquadradas numa ficção científica mais “clássica” (expressão muito pouco rigorosa neste contexto, bem sei, mas percebem a ideia) que utilizam contudo elementos tradicionalmente distópicos nas suas fundações - como, por exemplo, Gateway, de Frederik Pohl, ou a sucessão de pequenas distopias que Joe Haldeman e Ursula K. Le Guin apresentam, respectivamente, em The Forever War e The Lathe of Heaven. E a lista continua. 

Como é bom de ver, nenhum destes livros é indicado para um público YA - ou são demaisado elaborados do ponto de vista narrativo e/ou linguístico, ou apresentam um excesso de violência e de sexualidade explícita, ou, regra geral, abordam temas mais densos e complexos, que podem exigir uma maior “bagagem”. Não quero com isto dizer que as distopias YA não possam abordar temas relevantes - do que vi (adaptação cinematográfica) e li (artigos e críticas) a propósito de The Hunger Games, alguns desses temas estão lá -, mas julgo que a abordagem é bastante distinta, e de certa forma simplificada.**  

Isto para dizer, em jeito de comentário a este post, que as distopias já ocupam o seu lugar entre os leitores - e também entre as elites literárias e os académicos - há muitos anos (passe o óbvio). Constituem um subgénero tão forte que quase transcendem o próprio género (recordo-me de uma amiga que, quando lhe disse que Nineteen Eighty-Four, livro de que ela gosta muito, podia ser enquadrado na ficção científica, me respondeu “é diferente”). O que The Hunger Games me parece estar a divulgar - com bastante sucesso, diga-se de passagem - é uma variação da própria distopia, uma distopia light (não necessariamente em sentido depreciativo) que pode muito bem servir para motivar leituras mais complexas. Neste sentido, julgo que o fenómeno se possa revelar bastante positivo, mas talvez ainda seja muito cedo para perceber isso.

Nota: Fotografia retirada daqui. Apesar de o autor brincar com a inclusão de Ayn Rand na pilha de livros, a verdade é que pelo menos Atlas Shrugged pode, de certa forma, encaixar numa espécie de distopia particularmente ideológica - não sei se o mesmo se aplica a Anthem, obra que ainda não li. De qualquer forma, e apesar de simpatizar com a autora, pessoalmente não a incluiria aqui.

* Não será decerto indiferente ao fenómeno o facto de a adaptação cinematográfica de The Hunger Games ter resultado num filme bastante interessante.

** Passe a simplificação grosseira: neste tópico poderíamos falar de inúmeros aspectos característicos das distopias, como os heróis e anti-heróis específicos, as cargas ideológicas, as reflexões políticas, económicas e sociais, etc.

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