22 de junho de 2012

Gateway

A roleta russa tem regras simples. Joga-se com um revólver de seis tiros e uma única bala. Aponta-se à própria têmpora. Prime-se o gatilho. Passa-se ao próximo. Com seis jogadores, a fava - ou melhor, a bala - há-de sair a algum. Podem no entanto haver formas mais interessantes de se jogar à roleta russa, dispensando até o arcaico revólver. Que tal entrar, sozinho ou acompanhado, numa nave de fabrico alienígena, com a rota previamente introduzida e inalterável, para ver onde ela nos leva e o que há no seu destino - e, mais interessante, se ela nos traz de volta ao ponto de partida? 

Foi a partir desta premissa que Frederik Pohl desenvolveu Gateway (1977), obra vencedora dos prémios Hugo e Nébula e um clássico da ficção científica espacial por mérito inteiramente próprio. A narrativa divide-se em dois momentos cronologicamente diferentes, alternando entre si a cada capítulo: o primeiro momento, no presente, passa-se no gabinete do psiquiatra robótico "Sigfrid Von Shrink", durante as várias sessões em que Robinette Broadhead, o protagonista, procura lidar com os seus medos, as suas pulsões e um enorme sentimento de culpa provocado por algo terrível no seu passado; o segundo momento, nesse passado, é a narração do próprio Robinette da sua vida miserável como mineiro na Terra, da lotaria que ganhou e da sua partida para "Gateway" para se tornar Prospector.

"Gateway" é, de forma muito resumida, uma estação espacial alienígena construída pela misteriosa raça Heechee há milhares de anos no interior de um asteróide relativamente próximo da Terra. Encontra-se na sua maior parte funcional, ainda que deserta - nenhum dos seus construtores ou habitantes originais permaneceu lá, ou deixou vestígios da sua passagem e do seu desaparecimento. Para trás ficaram, porém, várias naves espaciais - mais de um milhar, de acordo com as estimativas -, e muitas delas funcionais. Isto, claro, se ignorarmos alguns detalhes: a sua tecnologia não é entendida na totalidade; todas as tentativas de reverse-engineering resultaram na auto-destruição das naves; e, apesar de poderem ser livremente activadas e desactivadas pelos humanos, as suas rotas estão pré-definidas, e o mecanismo que as define e altera escapa à compreensão dos melhores cientistas disponíveis. De qualquer forma, está criada a oportunidade: a Humanidade instala-se em "Gateway", a corporação que controla o asteróide começa a organizar expedições e dezenas de pessoas candidatam-se para Prospectores, deixando "Gateway" em naves individuais ou de dois e cinco ocupantes, com rumo incerto, e sem saber se levam mantimentos suficientes e se regressarão vivos. Algumas naves perdem-se definitivamente. Outras regressam vazias, ou com os seus ocupantes mortos. Outras regressam normalmente com os seus Prospectores, mas sem qualquer descoberta relevante a assinalar. Há, contudo, alguns Prospectores que têm a sorte de encontrar um mundo que suporte vida, ou artefactos Heechee, ou qualquer outra descoberta de grande valor - e esses Prospectores são ricamente recompensados. O que, por sua vez, alimenta a vontade de mais e mais Prospectores querem continuar a ter lugar nesta roleta russa galáctica, na esperança de lhes sair a sorte grande. Robinette narra, justamente, a sua vida em Gateway, desde a sua partida da Terra à sua adaptação ao asteróide, ao seu treino, às suas relações amorosas e aos medos que enfrentou. 

Mais interessante do que a vida de Robinette e os motivos que o levam ao psiquiatra é a própria construção do mundo de Gateway. Frederik Pohl não poupou esforços ou imaginação - o asteróide-estação espacial, com a sua baixa gravidade e os seus habitantes peculiares, tem aquele aspecto gritty, sujo e usado que confere uma atmosfera bastante realista àquela localização fantástica. As naves Heechee são fascinantes, com os seus misteriosos controlos e o pouco que revelam sobre os seus tripulantes originais (questão que fica por responder). E, claro, todo o conceito de exploração às cegas em naves alienígenas antigas é interessantíssimo, e Pohl explora-o de forma magistral através do instável Robinette e das várias personagens que ele vai conhecendo durante a sua estadia em "Gateway". Com um final surpreendente e um sentido de humor interessante, Gateway é uma aventura muito difícil de colocar de lado. Não conheço o resto da “saga Heechee” posteriormente desenvolvida por Pohl, mas este primeiro livro é imperdível.

Sem comentários: