O meu problema com o filme Inception, de Christopher Nolan, não é o facto este ser um mau filme - coisa que não é, de todo. O meu problema é de outra natureza: Inception é um filme bastante bom, mas poderia ser muito mais do que isso. E não é por falta de esforço que falha.
Longe de ser apenas "pirotecnia visual", como tanto blockbuster que hoje em dia entope as salas de cinema, Inception é um filme ambicioso, da autoria de um realizador experiente e apostado em cumprir aquilo que a boa ficção científica normalmente faz muito: explorar as potencialidades da tecnologia - efeitos especiais, imagens geradas por computador, câmaras, enfim, um sem-número de truques de encher o olho - para contar uma história. A verdade é que sem recurso a esses truques, filmes como 2001: A Space Odyssey, Star Wars, Alien, Blade Runner ou The Matrix não teriam sido possíveis no seu tempo. Em termos gerais, e pese um ou outro momento menos inspirado, Inception trabalha muito bem a componente visual, e tem algumas cenas que são um regalo para a vista.
Inception parte de uma premissa interessante: a ideia de que existe tecnologia que permite entrar nos sonhos, e assim fazer várias coisas, desde implantar sonhos diferentes a roubar ideias. O problema é que esta ideia nunca é explorada de forma convincente. O filme é demasiado action-oriented, quando uma narrativa que se desenvolve literalmente dentro de sonhos devia ser mais fantasy-oriented. Não falo de elfos e orcs, atenção, mas sim da vertente onírica e surreal que os sonhos têm, e que Inception omite por completo, preferindo utilizar a desculpa de que "os cenários dos sonhos são implantados na mente" para nos presentear com vários "níveis" em que os mecanismos de defesa do inconsciente se resumem a... homens armados. Sim, há a cena do comboio, supostamente representando o "descontrolo" causado por Mal (Marion Cotillard), a falecida mulher de Cobb (Leonardo DiCaprio) - mas mesmo isso é desinspirado. O único momento em que esta lógica parece ser subvertida é quando Eames (Tom Hardy) usa um lança-foguetes, mas esse momento acaba por ser mais um comic relief do que uma demonstração do carácter imprevisível dos sonhos.
Se a isto juntarmos um elenco muito bom e terrivelmente desaproveitado com um argumento demasiado rígido e pouco imaginativo, é bom de ver porque Inception não consegue elevar-se ao patamar altíssimo em que o hype o colocou: o filme é bom, tem momentos excelentes, mas quer revelar-se tão inteligente que acaba por se perder dentro do seu próprio labirinto, sem por um momento conseguir realmente surpreender o espectador nos sonhos que cria e recria.
Por contraste, podemos dar uma vista de olhos à forma como o filme Paprika, de Satoshi Kon, aborda uma premissa parecida. É certo que Paprika é um filme de animação, tendo por isso à partida muito mais liberdade criativa para abordar o tema dos sonhos. A questão é que Paprika trabalha este tema de forma praticamente irrepreensível. Não só as personagens são muito interessantes, como os sonhos são, de facto, surreais, delirantes e imprevisíveis como devem ser. O espectador nunca sabe ao certo o que irá acontecer a seguir - que forma irão as personagens assumir, ou como irá o sonho evoluir. Até ao momento em que todas as camadas se parecem fundir num único pesadelo. Paprika leva-nos para um mundo verdadeiramente onírico, repleto de possibilidades, onde as fronteiras entre o sonho e a realidade se esbatem, e onde o bizarro é rei e senhor - tal como nos nossos próprios sonhos. Se juntarmos a isto a mestria de Satoshi Kon, é bom de ver por que Paprika é um filme tão bom, e por que consegue chegar ao patamar a que Inception aspirou.
Claro que, comparações à parte, Inception não é um mau filme - simplesmente não cumpre aquilo que a primeira meia hora promete. É interessante, sim, mas não explora da melhor maneira todos os caminhos que poderia ter explorado - e alguns dos quais teriam sido bem mais interessantes. Acontece que é justamente essa a diferença entre um filme bom e um clássico.
Inception: 7.1/10
Paprika: 8.8/10
2 comentários:
O objectivo de Inception não é mostrar um mundo onírico psicadélico induzido por substâncias psicotrópicas, mas sim assaltar a mente das vítimas, roubando informação ou introduzir ideias estratégicas. Para isso, são usados sonhos, mas sonhos construídos de forma a que a vítima não perceba que está a sonhar.
É um conceito fabuloso que Nolan consegue realizar de forma impecável.
E Nolan revela estar perfeitamente à vontade quanto à mecânica dos sonhos. Os nossos sonhos geralmente têm como base a realidade e é em alguns detalhes mais insólitos que percebemos que estamos a sonhar.
Quem é que sonha com porcos voadores e árvores de chuoa-chupa?
O ponto não é esse. O meu problema com Inception - chamemos-lhe assim para simplificar - reside apenas no facto de os sonhos em Inception serem extraordinariamente limitados. Não seria necessário o Nolan introduzir porcos voadores, mas a sério: mercenários armados? Se isto é uma boa ilustração de um mecanismo de defesa do inconsciente, então eu vou ali e já venho.
Não há rigorosamente nada de insólito nos sonhos de Inception. E isso, a meu ver, é uma grande falha.
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