5 de agosto de 2014

Dark City: Simulacro noir

Quando passou por cá no ano passado, Ian McDonald referiu um detalhe curioso acerca do seu (excelente) Desolation Road: na época em que o escreveu, a ideia de um Marte terraformado parecia fazer parte do inconsciente colectivo da ficção científica literária, e vários foram os autores que exploraram o tema da colonização do Planeta Vermelho durante aqueles anos (Kim Stanley Robinson, por exemplo), sem aparente ligação entre si. Na segunda metade da década de 90 a ficção científica conheceu outro fenómeno desta natureza, mas no cinema - e nos anos que antecederam o novo milénio estreou um conjunto de filmes que exploraram, cada um à sua maneira, os limites da identidade, da realidade e da nossa percepção daquilo que é - ou poderá ser - real. Como se o tal inconsciente colectivo a que McDonald aludiu tivesse absorvido as preocupações da obra de Philip K. Dick para o projectar numa mão-cheia de longas metragens de bastante interesse: The Matrix será sem dúvida a mais conhecida, mas naqueles anos estrearam ainda The Thirteenth FloorThe Truman Show e Dark City

Dark City, realizado por Alex Proyas e estreado em 1998, é um caso especialmente interessante pela forma como, mesmo antes de as discussões na Internet se tornarem mais recorrentes, ser comparado de forma insistente com The Matrix, com frequência como se o segundo fosse uma cópia mais ou menos velada do primeiro. É certo que ambos os filmes foram filmados nos mesmos estúdios na Austrália, e que ainda que a estética de ambos seja bastante diferente (o cyberpunk estilizado dos Wachowski é muito diferente do noir quase gótico de Proyas), há várias aproximações em termos temáticos - sobretudo na forma como podemos ver ambas as tramas como alusões à Alegoria da Caverna de Platão. E, claro, há uma cena infame que é mesmo muito parecida, decerto pela coincidência do local de rodagem. 


A verdade é que esta comparação com The Matrix, de resto tão frequente (ainda hoje), não só peca por falta de rigor como também acaba por não fazer justiça a ambos os filmes: mais do que do cyberpunk existencial e messiânico dos irmãos Wachowski, Dark City aproxima-se dos temas da identidade, da realidade e da impossibilidade de determinar uma e outra, tão caros à ficção científica de Philip K. Dick. Para todos os efeitos, a noção de um simulacro de mundo, restrito e em circuito fechado, a ser alterado de acordo com os caprichos de uma entidade na aparência inescrutável, parece mais uma transposição em tons noir da premissa de The Adjustment Team - ou de vários outros contos nos quais Dick colocou em causa a percepção humana do real nos simulacros labirínticos em que encerrava as suas personagens.


E é num simulacro dessa natureza que Dark City se centra: uma vasta e soturna cidade a atravessar uma noite aparentemente eterna, da qual nenhum dos seus habitantes sabe ao certo como sair - ainda que possuam memórias de outros locais, de outros tempos. E, à meia-noite, pára tudo - cada habitante da cidade adormece de súbito, para acordar alguns momentos depois como se nada tivesse acontecido; quando, para todos os efeitos, muita coisa na sua cidade, nas suas vidas e nas suas memórias individuais e colectivas foi alterada. 


Aqui chegados, importa fazer um reparo: Dark City começa com uma narração em off que, na sua tentativa desajeitada de introduzir a trama, acaba por revelar desde logo a solução para o mistério: quem são aqueles perturbadores homens de negro, e quais são os seus motivos. É a grande fraqueza do filme, e aquilo que o impede de elevar a sua premissa pelo enigma que apresenta, e que vai sendo desvendado à medida que o enredo avança - os vilões são notáveis, e seriam excepcionais se a sua estranheza fosse sendo descoberta aos poucos, e não através de um infodump no prólogo. O que não deixa de ser uma pena: o verdadeiro início do filme, com Murdoch (Rufus Sewell) a acordar despido numa banheira, sem memórias, num apartamento estranho com o cadáver mutilado de uma mulher tem todos os ingredientes necessários para se tornar numa abertura clássica e icónica, que Proyas filma com mestria. 


Confuso, Murdoch começa a tentar encontrar respostas para o que lhe aconteceu - o que o levará a redescobrir a sua mulher, Emma (Jennifer Connely), de quem se tinha afastado ao descobrir que ela o traíra. Pelo caminho, encontra Frank Bumstead (William Hurt), um inspector da polícia que se encontra oficialmente a investigar o homicídio em série de várias prostitutas - e, a título não oficial, a tentar encontrar alguma pista para o caso que levou um colega seu à loucura. E encontra ainda o Dr. Daniel Schreber (Kiefer Sutherland), um psiquiatra misterioso que afirma ser o seu médico e que diz querer ajudá-lo - mas que parece ter uma agenda própria. E, claro, depara-se com um grupo de estranhos homens vestidos de negro, com poderes telequinéticos - para descobrir, num misto de espanto e desespero, que também possui tais poderes. 


O que se segue é um autêntico jogo do gato e do rato entre Murdoch, as suas memórias e aquelas estranhas criaturas - e tudo isto decorre numa cidade atmosférica que Alex Proyas constrói com requinte noir, recombinado a estética que tanto sucesso teve em The Crow com elementos do Metropolis de Fritz Lang (o relógio é icónico) e do Brazil de Terry Gilliam e com algumas inspirações no Akira de Katsuhiro Otomo (as influências, diga-se de passagem, foram as melhores) para criar uma autêntica cidade negra: sombria, soturna, pesada, um labirinto de pesadelo a que Scraber alude de forma excepcional com o labirinto onde coloca um rato, durante a visita de Emma. 


Com uma atmosfera excepcional, uma estética noir soberba e uma trama intrigante, Dark City merece com justiça o seu estatuto de clássico de culto - é um filme notável e memorável, ainda que o (excelente) enigma da sua premissa seja destruído nos minutos iniciais por uma introdução tão desnecessária como despropositada. Talvez lhe falte também uma personagem mesmo carismática - o Dr. Schaber de Kiefer Sutherland será o melhor que o filme apresenta no que aos desempenhos diz respeito, ainda que no geral as interpretações do restante elenco sejam suficientemente sólidas para não comprometer. De qualquer forma, merece mais do que a comparação com The Matrix: infodumps e spoilers à parte, Dark City tem força mais do que suficiente para se afirmar a título individual. 7.9/10

Dark City (1998)
Realizado por Alex Proyas
Argumento de Alex Proyas, Lem Dobbs e David S. Goyer
Com Rufus Sewel, Kiefer Sutherland, Jennifer Connely, William Hurt, Richard O'Brien, Ian Richardson, Bruce Spence e Colin Friels
100 minutos

2 comentários:

Nuno Mestre disse...

Mais uma excelente análise.
Ao que parece a narração inicial foi uma imposição do estúdio, à semelhança do que aconteceu com a narração do Blade Runner, mas foi removida para a edição director's cut.

João Campos disse...

Heh. O "Dark City" faz-me sempre regressar a inúmeras conversas que já tivemos, Nuno (a propósito, devias mesmo ler os contos do Philip K. Dick).

Ainda bem que a narração introdutória foi removida no director's cut - revela demasiado, e o filme fica consideravelmente mais fraco sem o mistério que envolve as origens e o propósito dos Estranhos. O que é uma pena: a atmosfera é magnífica, a fotografia é impecável, e em termos temáticos o filme é mesmo muito interessante. Este é mesmo um daqueles casos de "less is more".

(creio que a narração off do 'Blade Runner' não denuncia tudo, mas só revendo a versão original - aquela que vi mais vezes foi a "Final Cut"... e mesmo em relação a essa, já lá vão uns aninhos)