11 de julho de 2014

Ancillary Justice: A fragmentação identitária numa space opera pós-género

Título: Ancillary Justice
Autora: Ann Leckie
Editora: Orbit
Ano: 2013
Formato: Paperback
Páginas: 396
Género: Ficção Científica / Space Opera

Para todos os efeitos, a ficção científica literária de 2013 (e, dadas as balizas temporais da temporada de prémios, de 2014 também) fica marcada pelo fenómeno Ancillary Justice, o romance de estreia da contista Ann Leckie (e primeiro volume de uma "loose trilogy" intitulada Imperial Radch) que conquistou de forma tão surpreendente como incontornável os leitores, a crítica especializada do género e, sobretudo, os prémios. Até ao momento, Ancillary Justice conquistou na categoria principal os prémios Arthur C. Clarke, British Science Fiction e Nebula, tendo ainda sido distinguido com o prémio Locus para "Primeiro Romance" e tendo sido nomeado para o prémio Philip K. Dick; e, convém lembrar, a temporada ainda não acabou, e resta ainda saber se a nomeação na categoria principal do Hugo também dará frutos, o que fará deste romance algo único e histórico no contexto da género, sobretudo quando se toma em consideração que se trata de um primeiro romance (repito-me, mas o ponto é pertinente. Como se verá).

Convenhamos: tamanha unanimidade num género tão fragmentado (e, hoje em dia, entrincheirado) como a ficção científica moderna é, no mínimo, algo estranho, a justificar por si só um olhar mais atento, quando não alguma desconfiança. Mas tal acaba por se revelar desnecessário à medida que a leitura progride e a narrativa temporalmente bifurcada de Ancillary Justice começa a convergir num enredo espantoso. Ann Leckie desenvolve, em simultâneo e com engenho, um estudo de personagens com uma das mais intrigantes protagonistas da ficção científica moderna e um thriller centrado num mistério intrigante, num contexto de space opera com uma boa dose de acção e com uma componente de intriga política com muito interesse. Alguns elementos de FC militar dão uma cor especial ao worldbuilding, e as aproximações a The Left Hand of Darkness e à série Culture, de Ursula K. Le Guin e de Iain M. Banks respectivamente, a ganharem algum destaque perante os leitores mais experimentados. 

Ancillary Justice é a história de Breq, uma personagem enigmática (a descrição de género, como se verá, é irrelevante - e o ponto é mesmo esse) que, no início da história, encontra num planeta remoto um corpo inanimado com um rosto familiar que não devia ter lugar naquele tempo e naquele lugar. Cerca de um milénio antes, quando a humana (na aparência) Breq era a inteligência artificial empática da nave Justice of Toren, aquela figura caída na neve era um dos seus oficiais, chamava-se Seivaarden e era descendente de uma casa ilustre do Império Radch. A sua presença ali, naquelas condições, revela-se ao mesmo tempo uma surpresa e um obstáculo - e, sem saber bem porquê, Breq decide desviar-se um pouco da sua missão solitária naquele mundo distante para resgatar o seu antigo oficial. Num segundo momento, Leckie transporta a trama cerca de vinte anos para o passado, quando a Justice of Toren, ainda uma nave de guerra, se encontrava em simultâneo na órbita do planeta Shis'urna e no terreno com a unidade de ancillaries One Esk - corpos humanos de outros mundos anexados cuja mente foi apagada e ocupada para servir de extensão móvel à IA da nave e para prestar apoio directo aos seus oficiais - seja no interior da própria nave, em estações orbitais ou na superfície de um planeta. Shis'urna é a última anexação do Império Radch, numa mudança de política um pouco estranha para alguns sectores daquela sociedade estratificada; mas algo se está a preparar que poderá colocar alguns dos alicerces do império em causa. Até ao último terço do livro, as duas tramas surgem em capítulos alternados, e Leckie dá-lhes uma sinergia notável na forma como se enquadram de forma tão natural, fornecendo num momento a resposta às questões colocadas noutro. Ao mesmo tempo, a natureza fragmentada da protagonista - que é, em simultâneo, a Justice of Toren, todas as diferentes unidades de ancillaries da nave (entre as quais se destacam vários elementos da One Esk), e Breq - permite à autora explorar um ponto de vista único na sua dispersão, e original na forma como se apresenta, por vezes de forma simultânea, como singular e plural. 

É no enquadramento da missão de Breq (no presente) e do que a conduziu àquela demanda (no passado) que o worldbuilding notável de Ancillary Justice emerge, com a sua complexidade e ambiguidade a ser progressivamente desvendada - uma sociedade rígida na sua profunda estratificação por clãs familiares, convicta na sua superioridade galáctica e governada com firmeza por Anaander Mianaai, imortal e com inúmeros corpos a governar os destinos das várias regiões do Império. É uma sociedade na qual não existem divisões de género - e esse aspecto reflecte-se no discurso de Breq e na sua assinalável dificuldade em abordar estranhos fora do território Radch sem utilizar expressões que denunciem género. Leckie recorre sempre ao pronome feminino she, mesmo quando as personagens referidas são, ou podem ser, masculinas - e esta utilização invulgar do pronome dá toda uma nova dimensão à leitura na medida em que desafia as convenções de género que estão entranhadas na linguagem e obriga a que a caracterização das personagens (principais e secundárias) se faça de forma mais indirecta, e sempre ambígua. É um desafio curioso, ainda que valha mais pela experiência que proporciona do que pela sua pertinência narrativa. 

Mas onde Leckie se excede é na forma como utiliza motivos e conceitos mais ou menos típicos da ficção científica para reflectir sobre temas que são caros ao género, como a identidade individual ou a oposição entre inteligência natural e artificial - e fá-lo de forma profundamente original através de Breq/OneEsk/Justice of Toren e de Anaander Mianaai: a primeira, uma entidade artificial colectiva que se vê privada da sua fragmentação original e restrita a uma única unidade natural (mas que já antes manifestava sinais de individualização); e a segunda, uma entidade na aparência natural e una, fragmentada em inúmeros "eu" que podem ou não assumir aspectos psicológicos distintos. É do confronto destas duas perspectivas distintas que uma parte significativa da trama emerge, e Leckie consegue dar ao tema a complexidade e a profundidade que ele exige sem o tornar ininteligível. O resto é uma aventura de ficção científica notável pela sua plausibilidade, pela tridimensionalidade das suas personagens mais relevantes, pela textura do universo ficcional, que se nota ser muito mais vasto do que aquelas quase quatrocentas páginas dão a entender. Muito a propósito: o segundo livro da trilogia, Ancillary Sword, tem publicação prevista para Outubro próximo. 

O domínio de Ancillary Justice nos prémios literários do género não tem sido obra do acaso: para todos os efeitos, Ann Leckie demonstrou uma capacidade assombrosa de construir todo um universo tão complexo como credível, explorá-lo com uma das mais fascinantes e originais personagens da ficção científica recente numa narrativa algo arriscada, e desenvolver toda a trama evolvente e bem ritmada em duas linhas temporais distintas que se complementam na perfeição, com um ponto de vista tão original como complexo. É uma pena que provavelmente acabe por não vencer o prémio Hugo devido à "batota" de The Wheel of Time - pelo seu arrojo temático e formal, pela forma como recupera temas e motivos clássicos da ficção científica para contar uma história nova e superlativa, e por constituir uma das mais auspiciosas estreias literárias da memória recente do género, Ancillary Justice bem merece a distinção. De qualquer forma, fica a prova (se tal ainda fosse necessário) de que na FC literária, a space opera está viva e recomenda-se. 

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