15 de abril de 2014

They Live: Capitalismo alienígena

Não há dúvidas de que os anos 80 foi a época dourada de John Carpenter, durante a qual realizou e fez estrear filmes como The Fog, Escape From New York, The Thing e Big Trouble in Little China - que acabaram por se tornar clássicos de culto, ainda que nem todos tenham sido sucessos comerciais no seu tempo. Este período terá acabado em 1988 com They Live, um clássico de série-B que é também um dos filmes mais politizados da filmografia de Carpenter - uma crítica mordaz e muito pouco subtil ao consumismo, à ganância e ao espírito de every man for himself das sociedades capitalistas ocidentais. Muito ao espírito do seu tempo, aliás - nos últimos anos do mandato de Reagan como Presidente dos Estados Unidos.

A mensagem de Carpenter torna-se evidente logo nos primeiros minutos: ao som de uma batida hipnotizante, bem ao seu estilo (ainda que aqui acabe por se tornar um pouco cansativa por repetição), por entre caminhos-de-ferro e comboios em movimento lento na periferia arruinada de uma cidade, surge o protagonista: John Nada (Roddy Piper), um desempregado que, apesar da crise e das dificuldades que toda a gente parece enfrentar, ainda não parece estar pronto para desistir do sonho americano. Nada aqui é deixado ao acaso: as cenas iniciais indicam "crise" em letras garrafais. Mais actual será difícil. 


Um centro de emprego local diz-lhe não ter nenhuma vaga disponível; e, sem outra alternativa, acaba por ir trabalhar para a construção civil, onde conhece Frank (Keith David). Frank convida-o a encontrar um local onde pernoitar num acampamento improvisado, onde vive muita gente nas mesmas condições. E, aos poucos, Nada começa a reparar em vários pormenores estranhos. Um padre cego a pregar o fim dos tempos. Uma igreja com um coro em ensaios fora de horas, e com gente estranha a deslocar-se nas suas imediações. Um laboratório secreto. Uma misteriosa transmissão televisiva que interrompe a programação normal com uma mensagem conspiratória. Uma carga policial violentíssima. E um par de óculos de sol perfeitamente normal.


Ou, pelo menos, assim parece. Quando Nada coloca os óculos, todo o mundo se transfigura em seu redor. Cartazes publicitários revelam mensagens subliminares escondidas. Revistas apelam à conformidade, à obediência e ao consumismo por detrás dos seus artigos inócuos na aparência. E, para seu horror, algumas pessoas não são quem aparentam - a normalidade dos seus rostos esconde figuras grotescas, esqueléticas e impossíveis. A passagem da imagem colorida para o preto e branco quando Nada coloca os óculos é um toque magnífico de Carpenter - como se todas as cores que vemos fossem uma ilusão, e o mundo real, oculto, fosse bastante mais tenebroso do que se poderia imaginar.


É a partir da descoberta de Nada que They Live assume alguns momentos de acção, ainda que o faça de forma algo errática. Há tiroteio no banco (aberto com uma one-liner digna da melhor tradição de série-B), o rapto de Holly (e a fuga subsequente), e o infame momento de wrestling entre Nada e Frank - uma luta violenta e bem coreografada, mas demasiado longa, ao ponto da irrelevância. Há ali talvez uma mensagem - será necessário uma luta violenta para fazer as pessoas verem aquilo que de facto as rodeia -, mas, como muitos outros elementos simbólicos do filme, é ao mesmo tempo excessivamente ligeira e óbvia, de tão martelada que está.


E, no fundo, é esse o grande problema de They Live: a sua premissa é interessantíssima, e alguns truques utilizados são excepcionais, mas toda a mensagem poderia beneficiar imenso de alguma subtileza e de alguma ambiguidade. Para não referir sequer as muitas incongruências da trama, com momentos demasiado inverosímeis para que a suspensão da descrença se mantenha, e os muitos erros de continuidade que Carpenter, sempre tão atento ao detalhe, deixou passar. Não há no filme a construção de tensão que marcou The Thing ou mesmo a auto-consciência que faz de Big Trouble in Little China um filme tão divertido; há, sim, uma tentativa gorada de combinar os dois elementos num thriller que acaba por se revelar pouco eficaz (pese embora o seu notável momento final, em jeito humorístico).


A esses problemas juntamos o seu casting - ou melhor, os seus erros de casting. Keith David, sem surpresa, está óptimo no papel de Frank, o sidekick involuntário do protagonista; mas a escolha de Roddy Piper para o papel principal dificilmente poderia ter sido pior. Desinteressante, desinspirado e cheesy da forma mais aborrecida possível, Piper não consegue tornar credível a sua surpresa perante a conspiração na qual tropeça por acaso, e a sua determinação em combater os overlords na segunda metade do filme. Pior só Meg Foster, num desempenho terrível que não consegue ser salvo nem pelo twist final. 


Ainda que tematicamente interessante e com alguns elementos bem conseguidos, They Live não consegue elevar-se acima das suas várias debilidades, nem mesmo quando enquadrado apenas na série-B à qual pertence. O comentário que tenta fazer a partir da premissa clássica dos alienígenas camuflados nas estruturas de poder político e económico não será decerto menos relevante hoje do que era nos anos 80, e algumas das formas que Carpenter encontrou para o passar foram engenhosas e criativas, quando não icónicas. No entanto, dois protagonistas sem capacidades de representação que se vejam, uma argumento demasiado errático e óbvio e uma boa dose de erros de continuidade arruínam quase todas as tentativas de pertinência do filme. O que não deixa de ser uma pena: They Live tem aquele charme muito próprio dos anos 80, várias ideias inteligentes na sua premissa e alguns detalhes espantosos. Mas acaba por se perder pelo caminho, e nunca consegue ascender ao patamar de outras obras na filmografia de Carpenter. 5.8/10

They Live (1988)
Realização de John Carpenter
Argumento de John Carpenter (como Frank Armitage) a partir do conto Eight O'Clock in the Morning de Ray Nelson
Com Roddy Piper, Keith David, Meg Flower, George "Buck" Flower, Peter Jason e Raymond St. Jacques
93 minutos

4 comentários:

Loot disse...

Naaa, parte da magia está precisamente no facto dos protagonistas serem canastrões :P

Adoro isto.

" I have come here to chew bubblegum and kick ass... and I'm all out of bubblegum."

épico :D

João Campos disse...

É, mas a frase soa muito melhor quando é dita pelo Duke Nukem :)

Há canastrões e canastrões - e o Roddy Piper é o tipo de canastrão que provavelmente saberá actuar num ringue de wrestling, mas que não tem estofo para ser protagonista num filme que, por mais over the top que seja a espaços, tenta passar uma mensagem inteligente.

Enfim, não é que seja um mau filme - mas podia ser incomparavelmente melhor.

Artur Coelho disse...

é arrepiante como o espírito do filme está tão actual. e um dos encantos do john carpenter é forma como consegue criar filmes que ao mesmo tempo oscilam entre o excelente e o medíocre.

(e se quiserem chatices... i'm all out of bubblegum)

João Campos disse...

Artur, até aí estamos de acordo. O espírito do filme é terrivelmente actual; a metáfora retém ainda muita da sua força, e os detalhes que lhe dão vida (o truque da cor, sobretudo) são excelentes. Fosse o Keith David o protagonista e tivesse o Carpenter encontrado uma actriz mais inspirada, e o filme seria bem melhor.

Ser série B ou ter um orçamento baixo não pode servir de desculpa para tudo... Enfim, dito de outra forma: até gostei do filme, mas fica muito mal na fotografia quando o colocamos ao lado de "The Thing".