25 de março de 2014

Perfect Blue: Entre a ilusão e a ficção

Há filmes que, com o passar dos anos, acabam por se tornar irremediavelmente datados, ficando os seus elementos presos no seu tempo concreto, sem possibilidade de fornecer comentários a anos vindouros. Outros há que, pela intemporalidade dos seus conceitos e das suas ideias, resistem à passagem dos anos e são vistos com o mesmo interesse por públicos de várias épocas. E outros há ainda, porventura mais raros, cuja resistência à passagem do tempo reside sobretudo nos seus elementos datados, sem que tal se deva necessariamente a razões nostálgicas (relevantes hoje, e mais do que nunca). Em 1998, o animador japonês Satoshi Kon estreou-se na realização com um destes raros filmes: Perfect Blue, adaptação para longa metragem anime do romance homónimo de Yoshikazu Takeuchi. Será talvez impossível evitar um sorriso quando a protagonista, Mima Kirigoe, começa a aprender a utilizar a Internet e a navegar através do browser Netscape (que ninguém utiliza há mais de uma década); mas há no diário duplicado de Mima uma presciência fascinante para com os adventos da blogosfera (que se daria poucos anos mais tarde) e das redes sociais, com a dissolução da privacidade e a possibilidade do stalking anónimo e recluso; e a sua reflexão perturbada sobre a natureza da celebridade, tão fugaz como ambivalente, acaba por ganhar nova força nestes tempos em que os quinze segundos de fama se aproximaram da literalidade através de uma enigmática qualidade viral.


Perfect Blue é a história de Mima Kirigoe, uma jovem cantora que integra o trio j-pop "Cham!" - cujo sucesso discreto vem acompanhado por um grupo de fãs dedicados. Mima, porém, ambiciona ser mais do que um ídolo pop, pelo que quando surge a oportunidade de se estrear na representação, com um pequeno papel numa thriller policial televisivo, não hesita: abandona a banda para se tornar numa actriz. Um gesto que desagrada a todos - à sua agente, à sua família e aos seus fãs.


A mudança de carreira cedo lhe começa a trazer alguns dissabores - uma mensagem anónima acusa-a de traição, e surge online um blog, aparentemente da sua autoria, que funciona como um diário detalhado e público da sua vida. Nas filmagens, as coisas nem por isso correm melhor: apesar da sua dedicação e da sua vontade de vingar num meio tão difícil, acaba por obter poucas deixas e receber pouca visibilidade. Algo que vai mudar de forma radical quando o argumentista escreve para ela uma cena que promete ser polémica.


Contra os avisos da sua agente de que tal cena arruinará a sua reputação, Mima aceita fazê-la - e verá a sua vida transformada a partir desse momento, quando ao trauma da cena se junta um misterioso e persistente stalker e uma série de homicídios de pessoas que estiveram de alguma forma relacionadas com aquele momento. Aos poucos, Mima vê a realidade a fragmentar-se à sua volta, com a ficção em que participa a misturar-se de forma imperceptível com a sua vida num turbilhão vertiginoso. E, no seu centro, perguntas sem resposta: quem é o stalker? Estará relacionado com os crimes que ocorrem à sua volta? E quem é a misteriosa doppelgänger que vê em toda a parte?


Satoshi Kon recria a paranóia de Mima através de uma montagem a todos os níveis exemplar - a segunda metade do filme é quase na totalidade uma sequência perfeita de set pieces a coalescer na realidade, numa sucessão construída para deixar o espectador na dúvida sobre os limites entre a realidade, ficção e ilusão (sobretudo quando a série televisiva em que Mima participa parece estar a imitar a sua vida - ou será ao contrário?). O ritmo vertiginoso que a narrativa toma ajuda à confusão, e permite a Satoshi Kon criar cenas animadas de qualidade superlativa, icónicas pela sua ambiguidade, quando não pela sua surrealidade.


Enquanto thriller, a comparação entre Perfect Blue e a obra de Alfred Hitchcock é mais ou menos recorrente - para alguém com mais referências na ficção científica do que no cinema do mestre do suspense, será talvez possível encontrar algumas aproximações a Philip K. Dick na fragmentação identitária e na forma como a partir de dada altura a realidade se parece contorcer em redor da protagonista (ainda que o final, retorcido à sua maneira, não seja típico dos registos de PKD). E é também fascinante encontrar aqui um Satoshi Kon em início de carreira, com vários motivos e inúmeras imagens que aperfeiçoaria ao longo dos anos, e que ganhariam uma vida nova e diferente na sua obra-prima de 2006, Paprika.


Independentemente das muitas semelhanças visuais e de algumas aproximações temáticas, Perfect Blue não entra no território da ficção científica como Paprika - é um thriller em estado quase puro, e Satoshi Kon explora com mestria a premissa do romance de Takeuchi com uma animação magnífica, que contribui de forma decisiva para adensar o mistério que está no centro da trama - e, com ele, para aumentar a cada transição o estado de paranóia que se instala a partir da segunda metade do filme. Tenso, violento e complexo tanto na sua estrutura como na abordagem que faz a vários temas ainda relevantes, Perfect Blue é um estudo de personagem fascinante que serviria de influência a vários filmes de culto (Requiem For a Dream e Black Swan, de Darren Aronofski, são os mais óbvios). Em si, é um filme impressionante; como obra de estreia de um realizador, é um feito extraordinário. 8.2/10

Perfect Blue (1997)
Realização de Satoshi Kon
Argumento de Sadayuki Murai a partir do romance homónimo de Yoshikazu Takeuchi
Com Junko Iwao, Rica Matsumoto, Shimpachi Tsuji, Masaaki Ôkura, Yôsuke Akimoto, Emi Shinohara, Hideyuki Hori e Yôsuke Akimoto
81 minutos

2 comentários:

João Pires disse...

Muito bom filme.

Já agora no filme Requiem for a Dream, Darren Aronofski copia a cena da banheira.

João Campos disse...

Muito bom mesmo.

E o comentário chamou a minha atenção para um lapso meu (pelo que agradeço desde já): "Requiem For a Dream", e não "The Fountain". Vou corrigir.