4 de fevereiro de 2014

Mad Max: Western automobilizado

Será talvez difícil para um leitor de ficção científica com os seus clássicos em dia olhar para Mad Max, o filme de estreia do realizador australiano George Miller, e não encontrar na vasta desolação australiana que serviu para recriar um dos mais fascinantes pós-apocalipses já vistos no cinema uma certa ideia de um clássico da ficção científica literária: A Canticle for Leibowitz, de Walter M. Miller, Jr. Não que George Miller tenha introduzido monges tecnocráticos, ou mesmo explorado num registo satírico a ideia da História enquanto ciclo inescapável - mas há naqueles cenários uma melancolia muito característica, mesmo quando a acção nos leva para lugares mais próximos do que passa por civilização naquele mundo; uma ideia de que seria possível conduzir por aquelas estadas sem manutenção durante dias sem encontrar vivalma. Uma desolação espiritual, digamos assim, à falta de melhor designação, em perfeita harmonia com os cenários  do Outback australiano para criar, a partir de elementos facilmente identificáveis no western, uma iconografia muito própria. E, aqui, a referência ao western é tudo menos acidental. 

A distopia pós-apocalíptica que Mad Max apresenta sem enquadramento, como um facto consumado, transporta desde cedo o espectador para a memória colectiva dos pioneiros norte-americanos, perdidos na vastidão árida de um continente inteiro. A primeira imagem do filme é icónica: o arco da entrada dos "Halls of Justice" arruinado e enferrujado, numa indicação clara de que  ali, a Justiça terá sido uma das primeiras vítimas da queda da civilização. E o "ali" é a estrada, mostrada logo de seguida. A frase "a few years from now" é o único elemento temporal que o filme introduz, e o único elemento explicativo a que o espectador tem direito.


E essa estrada, sem manutenção e com sinalética reveladora, tornou-se na arena de todos os confrontos entre a autoridade que resta e os fora-da-lei. Neste contexto pós-tecnológico, os cavalos de outrora deram lugar aos carros da Polícia e às motas dos gangs nómadas que vagueiam pelo Outback, sem lei nem ordem. E a relativa amoralidade que tempera o sentido de justiça da polícia - cujas fardas a aproximam da cultura motard, um elemento que não surge por acaso - vê-se desde logo em choque com o niilismo dos criminosos, entregues ao mais absoluto hedonismo destrutivo.


Mad Max abre com uma das mais intensas perseguições automóveis do cinema, coreografada por George Miller com a precisão tensa de um combate. Um bandido conhecido como "Nightrider" encontra-se em fuga a alta velocidade num interceptor da polícia, desafiando os agentes que o perseguem através do rádio - e, após deixar várias patrulhas para trás numa aparatosa sequência de colisões na vila, cabe ao jovem mas experiente Max (Mel Gibson) travá-lo, custe o que custar.


É no seguimento do desastre de "Nightrider" que surge o resto do seu bando nómada, que semeia o terror entre a população e entre as forças policiais, de resto incapazes de lhes fazer frente devido à erosão e corrupção da justiça - mesmo perante actos tão atrozes como violações colectivas a civis e ataques directos a agentes da autoridade. O primeiro impulso de Max, como homem de família que é, passa por se afastar de tudo aquilo. Mas quando a tragédia lhe bate à porta pela segunda vez, o seu elevado sentido de justiça cedo se transforma em desejo de vingança sangrenta.


O argumento de James McCausland e George Miller não prima, em si, pela originalidade - as reviravoltas são relativamente by the book, e a ideia de um homem honrado e justo transformado num anjo de vingança após a perda trágica de tudo o que lhe era querido já não era nova em 1979. Cientes desse facto, Miller e McCausland apresentam toda a trama de forma um tanto ou quanto previsível durante os primeiros dois terços do filme. Mas a previsibilidade da batida não a torna menos intensa, e é dessa intensidade que vive Mad Max. O espectador sabe que a tragédia vai acontecer, e até saberá mais ou menos nos moldes em que ela decorrerá - mas acompanhá-la quando tudo se precipita não deixa de ser um choque, amplificado pela forma inteligente e rigorosa como Miller escolhe o que mostrar e o que esconder.


A verdadeira surpresa, essa, surge já com Max transformado em Mad Max, no anjo da vingança: haverá retribuição, mas não haverá salvação - os danos são permanentes (e serão transportados para o segundo filme, o excelente Road Warrior). A justiça deu lugar à vingança, e essa implica olhar para o abismo - e aguentar o olhar que o abismo devolve. Para Max não há retorno ao estado original ou qualquer promessa de felicidade que lhe valha: abdicou do heroísmo pela retribuição. A sua transformação de polícia firme para homem de família e, por fim, para anjo de vingança, amoral e niilista, é magnífica - e Gibson transporta-a na perfeição.


Mas o verdadeiro charme de Mad Max reside na sua acção enérgica, tensa e sempre vagamente amoral - bem explorada a partir do argumento mais ou menos minimalista, e bem ritmada pela excelente banda sonora de Brian May, o célebre guitarrista e compositor dos Queen. Nos momentos em que o filme acelera a fundo, os seus trinta e cinco anos mal se notam - com os seus stunts da era analógica a conferirem um realismo absoluto e uma crueza original inigualáveis no cinema moderno, tão dependente da imagem computorizada.


Na era de todos os remakes, seria inevitável que Hollywood apontasse baterias para clássicos menos prováveis dos anos 70 e 80 - e, à luz da tendência actual para a distopia pós-apocalíptica (The Hunger Games) e de êxitos cinematográficos recentes (Fast and Furious), Mad Max torna-se ainda mais apetecível. E o novo filme, com Tom Hardy e Charlize Theron nos principais papéis, será também realizado por Miller, o que até é um bom indício. Mas pergunto-me se será possível recriar hoje a energia nervosa e a violência subtil que fizeram de Mad Max um clássico do seu tempo, e um filme tão cativante ainda nos dias que correm. Há toda uma pureza estética nos stunts e nos efeitos práticos de Mad Max, e até na sua recusa intransigente do gore explícito, que os efeitos especiais modernos simplesmente não conseguem reproduzir. As suas duas sequelas, Mad Max: The Road Warrior e Mad Max: Beyond Thunderdome, exploraram e desenvolveram com competência (e, no caso de The Road Warrior, com momentos de brilhantismo) a premissa original, expandindo o worldbuilding para mostrar outras facetas daquele pós-apocalipse. Mas foi em Mad Max, no original e irrepetível, que tudo começou. 8.2/10

Mad Max (1979)
Realizado por George Miller
Argumento de James McCausland e George Miller
Com Mel Gibson, Joanne Samuel, Hugh Keays-Byrne, Tim Burns, Vincent Gil, Steve Bisley, Roger Ward e Geoff Parry
88 minutos

2 comentários:

Fyredrake disse...

Pessoalmente prefiro o segundo, Mad Max: The Road Warrior. Tanto a realização como a interpretação de Mel Gibson (demasiado nervoso no primeiro) são mais seguras. Também gosto mais do argumento, recuperando uma estética "western spaghetti motorizado", com o homem sem nome a defender a "aldeia" atacada pelo gang de vilões. O espírito "Sete Samurais" mais uma vez adaptado, desta vez num cenário apocalíptico.

João Campos disse...

Gosto muito do "Road Warrior" (aliás, a ideia original deste artigo até era falar dos dois...) - é um filme extremamente intenso, com muitas cenas memoráveis, pormenores excepcionais e, claro, um "Alamo on wheels" brutal. Os filmes modernos de automóveis, todos cheios de efeitos especiais e pseudo-bullet-time, têm muito que aprender.

Mas julgo que "Mad Max" é ligeiramente superior devido à construção de personagem. Em "Road Warrior", já temos o Max anti-herói errante, sem propósito nem destino. A personagem funciona, claro; mas é em "Mad Max" que vemos como ele chegou àquele estado.

Em última análise, olho para "The Road Warrior" um pouco como para "Terminator 2": quem me dera que todas as sequelas fossem assim.