28 de fevereiro de 2014

Ficção curta em português: contos de André Carneiro, Manuel Alves e Inês Montenegro

Os últimos anos têm sido um tanto ou quanto férteis no que a fanzines amadoras em português diz respeito. De Norte a Sul, com maior ou menor regularidade, vários têm sido os títulos a dar voz à fantasia e à ficção científica de autores portugueses, tanto novos como veteranos. E, numa época em que o digital parece devorar tudo não deixa de ser louvável que muitas destas pequenas publicações insistam na opção impressa - sobretudo para quem, como eu, continua a preferir o suporte tradicional. Duas edições da Lusitânia, mais duas da Fénix, e outras duas do Almanaque Steampunk* acabaram por formar uma pequena pilha na estante - e se a intenção de as adquirir foi imediata, já a leitura atenta dos respectivos conteúdos tem sido adiada mês após mês. Para todos os efeitos, essa leitura continua mais ou menos adiada; mas recordando uma resolução silenciosa de Ano Novo, decidi dedicar algum tempo, tanto nas minhas leituras como nas críticas de Sexta-feira no blogue, à ficção publicada nas várias edições dos vários fanzines. Comecemos hoje: 

A Escuridão, de André Carneiro 
Fénix #2, ed. Álvaro de Sousa Holstein e Marcelina Gama Leandro, Janeiro de 2013

Será talvez difícil lermos A Escuridão, conto de 1963 do brasileiro André Carneiro, sem nos lembrarmos de um dos mais clássicos contos da ficção científica: Nightfall, de Isaac Asimov. Essa memória, porém, deve-se apenas a uma aproximação temática; se Asimov explorou, com rigor científico, o impacto e as consequências de uma súbita escuridão numa sociedade que desconhecia o conceito, André Carneiro colocou de lado a ciência para colocar a vertente humana no centro da trama. A premissa é simples: o mundo começou a escurecer e ninguém sabe porquê. Aos poucos, a luz vai perdendo o seu fulgor - toda a luz, do Sol à chama de um isqueiro. Até ao momento em que o mundo mergulha na escuridão total, absoluta, inquebrável - e o leitor acompanha o protagonista, Wladas, numa odisseia dramática para sobreviver nas trevas que se abateram sobre todos os espaços que conhecia tão bem, e que de repente se tornam estranhas e hostis. André Carneiro captura com mestria a estranheza de toda a situação - há um desconforto palpável desde as primeiras linhas -, e o turbilhão emocional por que passa Wladas durante aqueles momentos angustiantes; e toda a premissa, na sua inverosimilhança extrema, ganha uma nitidez que a torna plausível. Alguma revisão adicional e uma formatação/paginação mais adequada nesta edição da Fénix teriam decerto beneficiado a leitura; mas isso em nada diminui o texto notável que é A Escuridão: tenso, emotivo e memorável.

Coração Atómico, de Manuel Alves
Almanaque Steampunk 2012, ed. Joana Lima, Sofia Romualdo, André Nóbrega e Rogério Ribeiro, Setembro de 2012

Comecemos, uma vez mais, pelas memórias associadas: Coração Atómico, conto que Manuel Alves publicou nas páginas da edição de 2012 do Almanaque Steampunk que a equipa da Clockwork Portugal editou e publicou para a primeira edição da EuroSteamCon, começa ao jeito de Edward Scissorhands e termina numa sequência alusiva a Terminator 2 - e isto numa mistura mais próxima do steampunk do que da fantasia ou da ficção científica propriamente ditas. A combinação improvável é formulada com ritmo e intensidade pela escrita firme de Manuel Alves, que conta a história de dois autómatos, Momo e Nini, conscientes e inacabados, que se questionam sobre a sua natureza, sobre aquilo que é ser humano, e sobre a origem e o propósito dos sentimentos de ambos. O autor não explica como foram aquelas criaturas artificiais concebidas, ou com que objectivo - e o mistério joga bem com o desenvolvimento do enredo, envolvendo o criador, que tem para o par de autómatos um propósito benigno (pelo menos na aparência), e um vilão que procura utilizá-los para o mal. Coração Atómico oscila entre um momento inicial filosófico, uma passagem de acção e um final excelente na melancolia que evoca - e a transição entre estas três fases é feita de forma tão natural que se torna quase imperceptível. 

Vinho Fino, de Inês Montenegro
Lusitânia #1, ed. Carlos Silva, André Pereira, Alexandra Rolo, Anton Stark e Luís Carreto, Novembro de 2012

Ficção científica no Douro Vinhateiro - eis a proposta de Inês Montenegro nas páginas da primeira edição do fanzine Lusitânia, num conto tão curto como surpreendente. A abertura é notável, dando conta da desintegração de um meteorito sobre os socalcos, libertando pelas vinhas do Douro parasitas alienígenas microscópicos que infestam as uvas à espera de melhores hospedeiros (sem exagero: foi sem dúvida um dos melhores parágrafos de abertura que li em muito tempo). Nem tudo, porém, correrá como o previsto, e os novos organismos acabam por reagir aos parasitas de uma forma muito peculiar. Se a premissa é boa e imaginativa, a estrutura narrativa que Inês Montenegro emprega com inteligência elevam a trama para criar um mosaico de consequências imprevisíveis para quem vive e trabalha naquela região, da qual a autora pinta um retrato verosímil na sua normalidade, a qual será perturbada por uma série de acontecimentos no mínimo perturbadores. A escrita, essa, é a cereja sobre o o bolo - viva, descritiva, bem ritmada, capaz de sustentar de forma credível os pontos de vista díspares dos vários fragmentos. Com um início soberbo, uma estrutura bem montada e um final que consegue em simultâneo fechar o círculo e perpetuar o mistério proposto, Vinho Fino é um trabalho muito completo e promissor de Inês Montenegro - uma das novas vozes da ficção especulativa portuguesa (tem publicado em várias fanzines), de quem se ouvirá decerto falar. 

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