7 de janeiro de 2014

The Animatrix: Jogo de espelhos

À distância de quase quinze anos, ninguém duvida de que The Matrix terá sido um dos filmes mais importantes e influentes dos anos 90 - e no que à ficção científica diz respeito, a película realizada pelos irmãos Wachowski, tornou-se num marco do género, num dos seus filmes incontornáveis e obrigatórios. Corria o ano de 2003 e a expectativa em torno das duas sequelas que dariam continuidade à narrativa cyberpunk polvilhada de influências literárias, filosóficas e religiosas iniciada em 1999 era mais do que muita; e a estreia de The Matrix Reloaded fez-se acompanhar por dois outros elementos que deram forma a uma das mais interessantes experiências transmedia realizadas até hoje - num tempo em que, note-se, tal termo era ainda pouco comum. Esses dois elementos foram o videojogo Enter the Matrix e a colectânea de curtas de animação japonesa The Animatrix. Um dia destes, com mais tempo, tenciono abordar essa experiência multi-plataforma (passe o neologismo da moda) com mais alguma profundidade; por hoje, fiquemo-nos pelas curtas. 

The Animatrix consistiu num ambicioso projecto narrativo dos irmãos Wachowski em redor do universo ficcional que tinham criado com o primeiro filme. Assumindo as suas muitas influências no cinema e na animação japonesa (Ghost in the Shell é a mais óbvia), a dupla propôs a vários estúdios e a vários realizadores de animação a criação de algumas curtas-metragens que, nos seus estilos próprios, explorassem vários aspectos da premissa básica de The Matrix, referidos ao longo dos três filmes de forma mais ou menos evidente, ou não referidos de todo. Algumas das curtas acabaram intimamente ligadas à narrativa principal de Neo, Trinity e Morpheus; outras assumiram caminhos diferentes, explorando à sua maneira conceitos derivados das propostas originais. No seu todo, o conjunto das nove curtas que compõem The Animatrix é notável pela qualidade da animação, pelas propostas temáticas arrojadas, pela forma extraordinária como partem de muitas das ideias fundamentais do primeiro filme para expandir os horizontes de todo aquele universo - e também, diga-se de passagem, pela sua enorme diversidade estética. Um nove em dez, se fosse avaliar o conjunto. Mas vejamos caso a caso. 

The Last Flight of the Osiris
Realização de Andy Jones / Argumento de Larry e Andy Wachowski / Com Kevin Michael Richardson, Pamela Adlon e Tom Kenny
Em termos estéticos, The Last Flight of the Osiris é o descendente directo do filme Final Fantasy: The Spirits Within, a longa metragem da Square Pictures que se tornou numa referência pela sua animação computorizada extremamente sofisticada para a época (ainda que em termos narrativos o filme tenha deixado algo a desejar). No universo de The Matrix, esta curta serve de prequela tanto para The Matrix Reloaded como para Enter the Matrix ao mostrar como a tripulação da nave Osiris tropeçou por acidente no início da invasão das Sentinelas a Zion - e o que a tripulação fez para que essa informação chegasse ao último reduto da Humanidade. Para o seu tempo, a animação de The Last Flight of the Osiris é no mínimo assombrosa, e a forma como serve de ponto de partida para tudo o que se segue é inteligente. E, convém não esquecer, mostra pela primeira vez a utilização de armas a bordo das naves de Zion - algo que o primeiro filme omitira por completo. 08/10

The Second Renaissance Part 1 / The Second Renaissance Part 2
Realização e argumento de Mahiro Maeda / Com Julia Fletcher
As duas curtas que compõem The Second Renaissance exploram a premissa básica de The Matrix, que Morpheus expôs a Neo no filme original - o conflito entre a Humanidade e as Inteligências Artificiais que culminou numa guerra sem quartel e no (aparente) aprisionamento dos seres humanos na simulação interactiva conhecida apenas como "a Matriz". E Mahiro Maeda (que trabalhou em projectos tão distintos como Neon Genesis Evangelion como nas sequências animadas de Kill Bill) utiliza com mestria a sua extraordinária animação para recriar todo o conflito de forma magnífica, com inúmeras referências históricas, religiosas e iconográficas - o tom é levantado da Génese bíblica, e as imagens e o texto remetem para a segregação racial, o Terceiro Reich e o Holocausto, a bandeira de Iwo Jima, os acontecimentos da praça de Tiananmen, e muitos outros momentos históricos. A identificação desta história como parte dos arquivos de Zion não esclarece se a premissa básica de toda a série é de facto verdadeira ou não, mas nem por isso The Second Renaissance perde relevância: no seu estilo documental, é uma peça magnífica. 09/10

Kid's Story
Realização de Shinichirō Watanabe / Argumento de Larry e Andy Wachowski / Com Clayton Watson e Keanu Reeves
Quem tenha visto pela primeira vez The Matrix Reloaded sem ter visto estas curtas decerto terá estranhado uma personagem que surge quando a tripulação da Nebuchadnezzar chega a Zion - um miúdo que recebe Neo, Trinity e Morpheus como se os conhecesse. Kid's Story é a história desse miúdo: um adolescente chamado Michael Karl Popper (Clayton Watson) que vive alienado da realidade, como se percebesse nela a sua natureza de simulacro - mesmo sendo incapaz de a descrever de forma concreta. Mas Neo contacta-o e desafia-o a libertar-se por força da fé - o que leva a que Kid se torne no primeiro caso de alguém se se libertou da Matriz sem ajuda externa. Kid's Story é a primeira das duas curtas de The Animatrix realizadas por Shinichirō Watanabe, o aclamado criador de Cowboy Bebop; e a sua animação frenética serve na perfeição a narrativa e o ponto de vista adolescente e vagamente depressivo de Kid. 07/10

Program
Realização e argumento de Yoshiaki Kawajiri / Com Hedy Burress e Phil LaMarr
Yoshiaki Kawajiri, criador de filmes de animação aclamados como Ninja Scroll e Vampire Hunter D: Bloodlust, pega no conceito original de Cypher - o traidor de The Matrix que desejava recuar na sua escolha do comprimido vermelho e ser reinserido na Matriz - para dar forma a uma das melhores curtas da antologia. A animação, sombria e detalhada, é a todos os níveis excepcional, e serve na perfeição o dilema moral de Cis (Hedy Burress), bloqueada na sua simulação de treinos alusiva ao Japão feudal por Duo (Phil LaMarr), que pretende desafiá-la a trair Zion com ele em troca do esquecimento e da vida "normal" que só a simulação da Matriz lhes poderá devolver. O combate frenético que se desenrola entre os dois pauta a indecisão da protagonista - e abre caminho para um dos finais mais ambíguos das curtas apresentadas. 10/10

World Record
Realização de Takeshi Koike / Argumento de Yoshiaki Kawajiri / Com Victor Williams, John Wesley, Allison Smith e Tara Strong
Esta produção da Madhouse explora uma vez mais o tema da auto-substanciação abordado em Kid's Story, mas desta vez através da superação pessoal e da pura força de vontade. Dan Davis (Victor Williams) é um atleta de alta competição, detentor do recorde mundial dos 100 metros - cuja medalha lhe foi retirada devido a um escândalo de doping. Determinado a regressar à competição para bater o seu próprio recorde e provar a todos que as drogas nada tinham que ver com o seu anterior resultado, Davis ignora os conselhos do seu treinador para competir na prova dos 100 metros nos Jogos Olímpicos - e a sua superação individual fá-lo ultrapassar as barreiras da realidade simulada e ver a realidade para lá do simulacro da Matriz. Para além de explorar uma premissa interessante dentro da ideia básica de The Matrix, World Record revela-se um conto fascinante sobre a força de vontade e a capacidade infinita que os seres humanos têm para se superarem a si mesmos. 09/10

Beyond
Realização e argumento de Kōji Morimoto / Com Hedy Burress, Pamela Adlon, Matt McKenzie, Kath Soucie e Tara Strong
Beyond aborda a ideia de que os fenómenos paranormais são apenas falhas - glitches - no código da Matriz através de Yoko (Hedy Burress), uma adolescente que, enquanto procura a sua gata, encontra uma casa assombrada em plena malha urbana. Juntamente com um grupo de miúdos, Yoko depara-se com uma série de fenómenos desconcertantes naquele terreno - com objectos a levitar, garrafas quebradas que se voltam a unir como se nunca tivessem sido partidas, e zonas inteiras nas quais as leis da Física parecem não se aplicar. As crianças utilizam a casa assombrada para se divertirem a fazer acrobacias impossíveis, sem qualquer receio; mas a descoberta de Yoko leva a que os Agentes intervenham para evitar que a natureza do simulacro seja exposta. Com uma animação excepcional que empresta à premissa o onirismo de que esta necessita para se elevar, Beyond é sem dúvida um dos melhores trabalhos de The Animatrix. 10/10

A Detective Story
Realização e argumento de Shinichirō Watanabe / Com James Arnold Taylor e Carrie-Anne Moss
Nesta sua segunda curta, Shinichirō Watanabe junta-se ao animador Kazuto Nakazawa para contar uma história de detectives num bom e velho estilo noir, ao qual não falta a inevitável banda sonora de jazz (imagem de marca também em Cowboy Bebop, e aqui assegurada por uma excelente e muito apropriada faixa dos Supreme Beings of Leisure). Ash (James Arnold Taylor) é um detective privado com falta de trabalho, a quem é feita uma proposta anónima de preço irrecusável: localizar um hacker conhecido apenas pelo nickname "Trinity" (Carrie-Anne Moss). No decurso da investigação, Ash descobre que três outros detectives já trabalharam no mesmo caso, com resultados no mínimo estranhos -  e para chegar a Trinity, depara-se com um enigma retirado de Through the Looking Glass, de Lewis Carroll. Com um ritmo perfeito e uma conclusão ambígua, A Detective Story distingue-se pela animação superlativa, pela estética noir desenvolvida com rigor, e pela exploração que faz de Trinity antes dos acontecimentos do primeiro filme. 10/10

Matriculated
Realização e argumento de Peter Chung / Com Melinda Clarke
O realizador da série de animação Aeon Flux assina a mais surreal e arrojada curta de The AnimatrixMatriculated acompanha um grupo de rebeldes que, num laboratório montado na superfície do planeta, se encontra a investigar a possibilidade de converter inteligências artificiais para o lado da Humanidade sem recorrer a alterações na programação que em termos práticos consistissem numa forma de escravatura. Para tal, capturam máquinas e inserem-nas numa Matriz própria, onde tentam utilizar empatia para dar às inteligências artificiais capturadas o livre arbítrio necessário para se sobrepor à sua programação original. Uma máquina é submetida a esta experiência, e colocada numa matriz surrealista; mas os resultados vão bem mais longe do que o esperado. O arrojo conceptual da premissa de Matriculated ganha força com o carácter psicadélico da animação de Chung; e o seu final aberto deixa antever uma possibilidade fascinante em todo o universo de The Matrix. 09/10. 

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