24 de janeiro de 2014

Soul Music: Sexo, drogas e rock 'n' roll. Ou talvez só rock 'n' roll

E ao décimo-sexto livro de Discworld (terceiro do arco narrativo da Morte, após Mort e Reaper Man), Terry Pratchett dá música aos seus leitores. Em termos literários, dificilmente a expressão poderia ser mais literal: em Soul Music, o olhar satírico de Pratchett incide sobre a música. Não sobre a soul, entenda-se, mas sobre rock - sobre a music with rocks in que surgiu após um desejo inconsequente e uma guitarra suspeita na cena underground de Ankh-Morpork (leia-se: na taberna 'The Mended Drum') e que tomou a cidade de assalto com o seu som irreverente, da Unseen University até 'Hide Park', e que envolveu gente tão diversa como o 'Archchancellor" Mustrum Ridcully, Ponder Stibbons, C. M. O. T. Dibbler e o "padrinho" Crysoprase.

Mas Soul Music não começa em Ankh-Morpork; começa longe da cidade, numa perigosa estrada de montanha, onde uma carruagem caiu de um precipício. Um acidente ao qual não faltou cliché algum - nem as duas explosões, nem sequer a roda a soltar-se dos destroços em chamas. Um acidente com duas vítimas, e que leva a Morte a retirar-se do seu emprego (uma vez mais), em busca de um significado para algo que lhe está a escapar. Sem Mort, ou outro aprendiz, que lhe tome o lugar, a tarefa recai na sua neta, Susan Sto Helit - uma rapariga excepcional tanto pelo seu raciocínio lógico e muito terra-a-terra como pela sua invulgar capacidade de não se fazer notar. Enquanto Susan se vê confrontada com um corvo falante chamado Quoth que se recusa a dizer a "N" word (decididamente, tanto Pratchett como Gaiman têm uma predilecção por Poe) e que serve de intérprete para a Morte dos Ratos, Imp y Celyn, um jovem bardo de uma pequena, verdejante e chuvosa nação governada por druidas, abandona a sua casa prometendo vir a ser o músico mais famoso do mundo, e parte para Ankh-Morpork - onde, quis o destino (ou outra força mais "oculta"), acabou por se cruzar com outros dois músicos, o anão Glod e o troll Lias "Cliff" Bluestone. As circunstâncias levam a que se formem uma banda, a qual designam de The Band with Rocks In - e, após Imp adquirir uma guitarra suspeita numa loja obscura e assumir o nome artístico de "Buddy", a banda acaba por dar um concerto tão memorável como inesperado no 'The Mended Drum' - com uma música magnética e inclassificável que ficou desde logo conhecida como music with rocks in

Mas o dia do célebre concerto do 'The Mended Drum' é também o dia em que Susan começa a fazer o trabalho que lhe é imposto - e, rebelando-se contra a lei rígida da morte, tenta evitar que Buddy morra como previsto no motim que a music with rocks in provoca no interior da taberna. O resultado da sua acção, porém, vai ser surpreendente - e, como não podia deixar de ser as consequências cedo se vão fazer sentir. 

A música, como é bom de ver, é o centro de Soul Music, e a sátira de Pratchett estende-se até ao Big Bang e à ideia de um mito de criação "musical" - numa subversão inteligente tanto da teoria científica como de outros mitos de criação (será talvez impossível não pensar em Ainulindalë, de Tolkien). Mas esta é uma ideia que se vai instalando ao longo das duas narrativas que Pratchett tece em paralelo: a de Susan, dividida entre a rigidez do seu dever e o seu carácter humano (com a Morte à mistura), e a da Band with Rocks In, na sua ascensão meteórica pela cena musical de Ankh-Morpork, com o empreendedor Dibbler como agente musical e à revelia da Guilda dos Músicos. E esta segunda história é construída com inúmeras referências musicais - a músicos, a canções, a bandas, a acontecimentos lendários da história do rock. Como é costuma, Pratchett não deixa pedra sobre pedra (pun intended) - e não será decerto necessário ser-se um melómeno para soltar uma gargalhada com a referência ao "leopardo surdo", à música "Pathway to Paradise", à luva de Michael Jackson ou à rat music

Mais do que uma boa entrada na série Discworld, Soul Music atesta a versatilidade de Terry Pratchett no que à criação de sátiras diz respeito. Em Moving Pictures, conseguira sair da "zona de conforto" da literatura e dos contos de fadas para satirizar, com o seu humor inigualável no género, um aspecto fundamental da cultura popular contemporânea: o cinema. Em Soul Music repete a brincadeira, desta vez com o fenómeno da música rock que marcou a segunda metade do século XX; e fá-lo com graça (em ambos os sentidos) e inteligência, construindo uma história muito sólida polvilhada de gags e de referências mais ou menos evidentes (algumas só ao alcance de melómanos) à história do rock e a outros acontecimentos relacionados. Tal como em Moving Pictures no que ao cinema diz respeito, conhecedores de rock terão neste livro muitos detalhes para descobrir; e os leitores menos experientes, esses, encontrarão um livro ao bom estilo de Pratchett - uma história bem ritmada, com excelentes personagens a envolver-se nas situações mais incríveis e hilariantes imagináveis.

4 comentários:

Fyredrake disse...

Boa. É sempre agradável encontrar outro fã de Pratchett. Já li toda a série Discworld até agora. Conheces as adaptações que a BBC fez dos livros The Colour of Magic, Hogfather (Death e Susan novamente) e Going Postal? Não estão mal mas não são tão hilariantes como os livros.

João Campos disse...

Estou a ler Discworld por ordem cronológica. Não vi qualquer adaptação (aliás, ainda nem li Hogfather ou Going Postal), mas conto fazê-lo um dia. Quando acabar os 40 livros da série principal, provavelmente.

Anton Stark disse...

Desd que me prometas que não vais ler o último, João... porque garanto-te que não vais querer fazê-lo.

João Campos disse...

O "Raising Steam"? Quererei, como todos os outros.