14 de janeiro de 2014

El laberinto del fauno: Contos de fadas em tempo de guerra

É algo recorrente na fantasia observarmos a construção de mundos secundários que convivem com o nosso mundo - ou com um mundo verosímil e que poderíamos identificar como o nosso -, ocultos pelas sombras, à espera que o ou a protagonista descubra uma forma de nele entrar. Da toca do coelho em que Alice cai no clássico de Lewis Carrol à descoberta da Narnia de C. S. Lewis, dos universos paralelos de Philip Pullman ao mundo de magia que J. K. Rowling descreveu numa fronteira da nossa realidade que apenas alguns podem ver; muitos poderiam ser os exemplos deste tipo de universos ficcionais. Guillermo Del Toro optou por uma abordagem similar na construção do mundo ficcional de El laberinto del fauno, filme de 2006 que contrapõe a dura realidade do pós-Guerra Civil espanhola a um mundo, ou a um submundo, de fadas que existe no limiar da percepção e da imaginação: um mundo sombrio, tão maravilhoso como perigoso, onde habitam fadas de aspecto rústico, faunos telúricos, plantas mágicas e monstros inomináveis. É nessa mistura de fronteiras incertas entre o real e o fantástico que Del Toro, na qualidade de realizador e argumentista, coloca um conto de fadas tão escapista como tenebroso em marcha.

E o filme abre justamente com esse conto de fadas: com a história de Moanna, princesa do submundo, curiosa sobre o mundo onde vivem os humanos. A curiosidade leva-a a subir à superfície - mas a luz do Sol cega-a e apaga a sua memória, obrigado-a a uma vida mortal entre os homens. O seu pai, rei do submundo, acredita porém que o seu espírito encontrará o caminho de regresso para o seu mundo; e é com esta ideia que a narrativa passa da animação do mundo de fadas para uma Espanha rural em 1944. Numa coluna de carros protegida por militares segue Ofélia (Ivana Baquero num desempenho de antologia) e a sua mãe, Carmen (Ariadna Gil), grávida do seu novo marido, o Capitão Vidal (Sergi López), que as aguarda na guarnição falangista montada junto a um velho moinho para erradicar a guerrilha rebelde que continua a desafiar a autoridade de Franco.


Fascinada por contos de fadas, Ofélia encontra na estrada um estranho insecto que imagina ser uma fada - e que a segue, para diante dos seus olhos se transformar de facto numa fada, e para a conduzir pelo labirinto antigo que se encontra nas imediações do moinho. Ao centro, numa espécie de poço iniciático com um estranho altar, a jovem rapariga encontra um fauno (Doug Jones), uma criatura fantástica que lhe diz ser ali o último portal para o submundo - e ser ela, Ofélia, a Princesa Moanna daquela história. Mas para regressar ao seu reino perdido, terá de passar três perigosas provas.


É a partir daqui que a fronteira entre ambos os mundos se começa a esbater para Ofélia, que descobre todo um mundo encantado e tenebroso logo ali em seu redor, visível apenas aos seus olhos - com sapos gigantes e um mostro de pesadelo a existir paredes meias com a debilidade física da sua mãe, consumida por uma gravidez de risco, e com a crueldade do seu padrasto, o Capitão Vidal, impiedoso na sua perseguição aos rebeldes e a todos aqueles que os possam de alguma forma ajudar, por acção ou omissão.


De facto, a força narrativa de El laberinto del fauno reside na forma magnífica como Del Toro consegue criar um conto de fadas credível e gritty e enquadrá-lo com uma história de guerra realista e sangrenta - ou será a guerra real que estará enquadrada no conto de fadas de que Ofélia parece fazer parte? O filme mostra uma realidade do pós-Guerra Civil muito credível, com racionamento para evitar que a população fornecesse víveres ao movimento rebelde, propaganda franquista, uma guerrilha sangrenta - e um Capitão Vidal desumano, obcecado com o seu pai (a história do relógio é um detalhe excepcional) e com o seu filho por nascer, capaz de levar a cabo as mais horríveis formas de tortura para obter as informações que deseja.


No elenco, Ivana Baquero e Sergi López destacam-se com duas interpretações merecedoras de um longo aplauso; mas o resto do elenco também se revela bastante sólido. Maribel Verdú encarna na perfeição Mercedes, a jovem e desencantada criada de Vidal que simpatiza com a causa rebelde e se afeiçoa àquela criança inocente que acredita em contos de fadas e em criaturas fantásticas. Álex Angulo é o médico da guarnição cuja profunda humanidade contrasta de forma gritante com a crueldade de Vidal - e a sua indecisão é representada de forma muito competente. E Doug Jones, eterno companheiro de Del Toro nestas andanças, regressa uma vez mais para interpretar o fauno e o temível Pale Man.


Será talvez difícil pensar numa criatura mais aterrorizante do que o Pale Man no cinema fantástico da última década - memorável naquela que é uma das melhores e mais tensas cenas de todo o filme, no vasto banquete subterrâneo. Seria talvez fácil construir o monstro em computador; Del Toro, porém, optou pelas técnicas mais convencionais da caracterização física, proteses e maquilhagem, tanto para o Pale Man como para o Fauno - e isso salta à vista no filme, com ambas as criaturas a serem muito mais credíveis (e por que não dizê-lo, incomparavelmente mais arrepiantes). Utilizando uma combinação inteligente de efeitos práticos, imagens digitais e uma fotografia exemplar, El laberinto del fauno apresenta uma componente visual excepcional, capaz de capturar na perfeição a atmosfera sombria tanto do mundo real como do mundo secundário - e sem em momento algum confundir as duas. Os Óscares para Cinematografia, Direcção Artística e Maquilhagem não foram conquistados sem justiça.


Resta falar na música, também ela magnífica (e também ela nomeada para os prémios da Academia), criada pelo compositor espanhol Javier Navarrete a partir de uma canção de embalar que pauta o filme e lhe confere uma atmosfera perfeita, mágica e ao mesmo tempo triste.


Em El laberinto del fauno, Guillermo Del Toro tem a sua obra-prima: um filme tão belo como trágico, um conto de fadas que transporta o espectador para um contexto histórico muito concreto e lhe apresenta um mundo secundário que, sendo algo convencional na sua construção narrativa (a inspiração nos contos de fadas é evidente e assumida), se revela absolutamente mágico na sua concepção visual. Os efeitos especiais e práticos, de uma execução a todos os níveis exímia, dão às criaturas uma verosimilhança ímpar e cada vez mais rara nesta época em que as CGI se tornam dominantes; e os desempenhos superlativos de Ivana Baquero e Sergi Lopes elevam a premissa. Numa década em que a fantasia cinematográfica parecia dominada por The Lord of the Rings e Harry Potter, é bem possível que Del Toro tenha realizado a melhor entrada no género, com um filme emotivo e inesquecível. 9.6/10

El laberinto del fauno (2006)
Realização e argumento de Guillermo Del Toro
Com Ivana Baquero, Sergi López, Maribel Verdú, Doug Jones, Ariadna Gil, Álex Angulo, César Vea e Roger Casamajor
118 minutos

8 comentários:

Loot disse...

Também fiquei encantado com isto. Já viste o El Espinazo del Diablo dele? Também é muito bom e mais dentro deste género.

O Del Toro tem conseguido triunfar numa vertente mais intimista e também de entretendimento.

João Campos disse...

Ainda não, mas está para breve.

Já tinha visto há alguns anos este El laberinto del fauno, e tinha ficado muito impressionado. Recordo-me de achar interessante a forma como Hellboy 2: The Golden Army lhe sucede de forma tão natural em termos estéticos, e até numa certa componente narrativa. Vê-lo agora pela segunda vez, com mais atenção, consolidou a opinião que tinha: é um dos grandes filmes da última década.

Até agora, Del Toro ainda não me desiludiu. E quanto mais exploro a obra dele, mais lamento que não tenha sido ele a ficar ao leme da adaptação de The Hobbit...

(em jeito de curiosidade, é interessante notar que os três filmes de género de 2013 de que mais gostei - Pacific Rim, Gravity e Europa Report foram todos realizados por sul americanos)

Loot disse...

Por isso é que achei que o Hellboy 2 era a união de dois universos distintos, o criado por Mignola em Hellboy e o deste mundo de fantasia do Del Toro.

Ainda não o revi, mas a impressão que tenho é similar à que escreves.

Ainda não vi o hobbit 2 que tem gerado opiniões tão diversas. Não queria nada perdê-lo do cinema.

João Campos disse...

Há dez anos, teria adorado este segundo The Hobbit. Hoje, aprecio alguns momentos, mas em termos gerais lamento que o Peter Jacksons e tenha deslumbrado tanto.

Mas vê, sim. As opiniões têm sido um bocado divisivas, por isso não te fies na minha (e vale sempre a pena ver por alguns momentos).

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Já vi o filme duas vezes. Acho-o simplesmente magnífico, e claro que está entre os meus favoritos.

João Campos disse...

Também vi duas, mas não me parece que vá ficar por aqui :)

fyredrake disse...

Já o vi várias vezes. Gosto das referências, por vezes subtis, ao folclore, como, por exemplo, o banquete do qual é proibido comer (tema abordado no poema Goblin Marquet, de Christina Rossetti). Também o fez no Hellboy: Golden Army e é refrescante ver alguém que acerta ao retratar as mitologias que Hollywood tanto gosta de destruir com argumentos imbecis. Mas não creio que Del Toro tivesse feito melhor que P. Jackson na adaptação do Hobbit, aliás, muitas das críticas ao filme referem-se a ideias de Del Toro. Mas culpa pertence sempre à ganância dos estúdios, verdadeiros dragões acumuladores de riqueza.

João Campos disse...

Não sei se teria feito melhor - mas teria feito diferente, nem que fosse em termos estéticos. Um dos problemas de The Hobbit é o projecto estar um pouco perdido entre o tom infantil e de aventura da obra que adapta e o tom solene e adulto de The Lord of the Rings. Esta dissonância nota-se sobretudo no primeiro filme, e em alguns elementos persistentes (Radagast é o mais óbvio). Talvez Del Toro seguisse um argumento mais ou menos semelhante ao do Peter Jackson - mas bastava adoptar um tom mais próprio e menos "prequel-ish" para todo o filme ser uma experiência completamente diferente.