13 de dezembro de 2013

Rocannon's World: Indistinguível da magia

A terceira lei de [Arthur C.] Clarke diz que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia - uma ideia que encontra eco em muitas histórias de ficção científica. Rocannon's World, o primeiro romance de Ursula K. Le Guin (publicado em 1966) é um exemplo claro desse eco: um curto romance de ficção científica onde uma sociedade espacial avançada coexiste com nações feudais em planetas remotos, e onde a mais sofisticada tecnologia se envolve na criação mitológica de todo um povo. 

Após algumas breves notas etnográficas de um mundo e de povos estranhos, Rocannon's World começa com um prólogo extraordinário: uma história intitulada Semley's Necklace (publicada em 1964 nas páginas da revista "Amazing Stories" com o título Dowry of the Angyar), que narra a história de Semley, princesa do povo Angyar, e da sua demanda para encontrar a herança da sua linhagem: um colar de ouro com uma safira, jóia de valor incalculável - sobretudo desde que os "Starlords" tinham descido dos céus para impor tributo aos povos daquele mundo. A demanda de Semley leva-a a procurar os diurnos Fiia, amantes do mundo natural, e os nocturnos Gdemiar, subterrâneos e industriais - de certa forma, equivalentes aos Elfos e aos Anões de tantas histórias de fantasia daquele tempo. Mas Semley não consegue conceber quão literal é a ideia de que o colar se encontra para lá da longa noite; e a sua busca vai levá-la mais longe, no tempo e no espaço, do que alguma vez imaginara.

O desfecho de Semley's Necklace marca o início da história de Rocannon, o etnologista oriundo da Terra que conhecera Semley na sua demanda - e que acaba por ir para o planeta daquela princesa, Fomalhaut II, com o propósito de estudar melhor as suas raças inteligentes, as suas civilizações, as suas mitologias e o seu potencial de integrarem a Liga dos Mundos como aliados para a guerra interestelar que se avizinha. Mas essa guerra está mais próxima do que Rocannon imaginava; e Rocannon vê-se obrigado a aliar-se ao jovem Mogien, senhor de Hallan, e a partir numa perigosa jornada rumo ao Sul desconhecido para tentar encontrar um ansible que permita alertar a Liga do que se passa naquele planeta. 

É certo que, tanto em termos formais como em termos narrativos, Rocannon's World está muito longe de ser um trabalho excepcional - o que não surpreende, sendo um romance de estreia. Mas nem por isso deixa de brilhar em alguns pontos; e onde se torna verdadeiramente fascinante é na forma como Le Guin mistura temas e convenções de fantasia épica e de ficção científica numa mesma narrativa - sem que esta perca a coesão ou o seu ritmo próprio, elevado como convém a uma história tão curta. E, claro, no adivinhar de todo um universo mais vasto para além do que as personagens, primeiro Semley e depois Rocannon, observam - seja através do passado e das lendas de Fomalhaut II, seja através do fabuloso museu etnográfico em Faraday, seja pelos mundos incontáveis que se adivinham na longa noite entre as estrelas. 

Mas o verdadeiro interesse de Rocannon's World, porém, acaba por não ser isso, ou mesmo a prosa em si (muito sólida, com indícios do carácter superlativo que Le Guin viria a desenvolver), mas sim as possibilidades que encerra. Nesta história com pouco mais de 100 páginas - uma brevidade impensável para os padrões literários contemporâneos - o leitor mais experimentado nos universos ficcionais de Ursula K. Le Guin poderá encontrar as sementes de várias histórias que escreveria alguns anos mais tarde, e que a tornariam numa das mais conceituadas figuras que a ficção científica conheceu desde os loucos anos 60. O carácter mitológico das civilizações de Fomalhaut II, num tom tão próximo da fantasia, a importância dada aos nomes e a ideia constante, transportada do prólogo de Semley para o desfecho de Rocannon de que o poder tem um preço, transporta-nos para o universo de Earthsea; enquanto todo o enquadramento de ficção científica e a ideia do estranho, do deslocado, tão cara à ficção de Le Guin, encontra eco em trabalhos tão diversos como The Left Hand of Darkness, The Dispossessed ou The Lathe of Heaven. Como romance de estreia, dificilmente Le Guin poderia ter escrito algo que conseguisse resumir tão bem aquilo que o seu percurso na ficção especulativa viria a ser nas décadas que se seguiriam; e fica na memória um prólogo excepcional para uma aventura que, não se desviando muito de moldes mais convencionais, nem por isso deixa de se revelar aliciante e muito promissora. 

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