3 de dezembro de 2013

Collider: O salto para o vazio

Diz-se na tradição oral que não há fome que não dê em fartura - um ditado que talvez se pudesse aplicar ao cinema português ligado ao fantástico, e sobretudo à ficção científica. Após anos sem um único filme que se aproximasse dos territórios temáticos ou estéticos da ficção dita de género, 2013 trouxe ao público português não uma mas duas longas-metragens, desenvolvidas por equipas internacionais e faladas em inglês, mas com um cunho assumidamente português. Em Agosto, estreou R.P.G., realizado por David Rebordão e Tino Navarro; e em Novembro, foi a vez de Collider, filme produzido pela beActive com base no argumento de Nuno Bernardo, e integrado numa experiência transmedia mais vasta que abrangeu uma banda desenhada, um webcomic e mesmo videojogos para sistemas de mobilidade e redes sociais. Uma experiência multi-plataforma sem dúvida ambiciosa na tentativa de conjugar vários meios para desenvolver uma narrativa, acabando por desaguar no filme que estreou em algumas salas de cinema do país. 

E Collider começa de forma bastante promissora, apresentando cinco personagens que, sem saberem como ou por que motivo, se viram transportadas para um tempo e um espaço diferente - em concreto, para um hotel arruinado em Genebra num 2018 pós-apocalíptico, após um desastre no Large Hadron Collider do CERN ter praticamente aniquilado a Humanidade e povoado a noite com criaturas aterradoras. Este ponto é esclarecido por uma sexta personagem, Peter (Iain Robertson), um cientista que parece ser o único do grupo com uma noção, por vaga ou imprecisa que seja, do que aconteceu. A ideia de trabalhar o tema das viagens no tempo - e, vá lá, do pós-apocalipse - pela perspectiva de seis personagens vindas de momentos e de lugares diferentes é apelativa, e Collider cedo estabelece condições no mínimo enigmáticas; a tensão que se gera no grupo quando os vários desconhecidos se encontram funciona, e deixa antever um desenlace para o qual os conflitos internos serão tão ou mesmo mais importantes do que uma qualquer ameaça externa.


É por isso uma pena que, esgotada a curiosidade dos minutos iniciais, Collider acabe por se revelar um filme desconexo, sem ritmo e repleto de falhas lógicas, com um argumento mais preocupado em incluir ideias na premissa inicial do que em explorar algumas delas com a profundidade de que seriam merecedoras. Sempre através de technobabble, tão críptico como oco - como se pode ver pelo desenvolvimento do conceito de viagem no tempo (sempre pantanoso, é certo), carente de uma lógica interna que o sustente e que, mais do que racional, seja clara. Mas não é caso único; alguns dos elementos mais importantes do enredo, como as condições climatéricas daquele futuro pós-apocalíptico ou as terríveis criaturas que assombram a noite, não são explicados ou mesmo integrados no enredo - o primeiro é um plot device puro, mera conveniência narrativa; e o segundo, esse, é uma red herring tornada inconsequente até nesse papel por cenas de acção mal estruturadas e interrompidas com demasiada frequência por pausas inexplicáveis para conversas inenarráveis em cenas que se quereriam talvez com maior suspense. Uma ameaça vazia, em suma; são aquelas criaturas como poderia ser outra coisa qualquer. Paira em Collider uma promessa de sobrevivência, mas essa, como muitas outras, fica por cumprir.



Mesmo nos detalhes Collider falha em toda a linha. Vários pontos suscitados pelo enredo não ganham qualquer aprofundamento, existindo no vazio; cenas como o acordar submerso de Alisha (Bella Heesom), muito ao estilo da viagem ao Inferno em Constantine, surgem sem qualquer lógica, explicação ou mesmo - e pior -, relevância. Idem para o o plot point dos possíveis sobreviventes, desenvolvido numa discussão estéril, que nada acrescenta ao enredo e às personagens, para ser logo de seguida descartado. E ainda, naquele que será talvez o melhor exemplo da falta de lógica que permeia todo o enredo, para a traição de Carlos (Marco Costa) e Fiona (Lucy Cudden), que existe apenas para gerar na aproximação ao desenlace um twist pouco lógico e pouco consequente, sem a tensão esperada.

Pelo menos, e ao contrário de R.P.G.Collider tem actores na verdadeira acepção da palavra - o argumento indigente pode não permitir aos actores grandes vôos dramáticos, mas pelo menos nenhum deles compromete o filme ao ponto de se tornar risível (ainda que as deixas da personagem de Marco Costa se aproximem desse ponto). A opção do inglês também se torna evidente logo nos primeiros momento como idioma de contacto a falantes de várias línguas; isto, por seu lado, permite enquadrar bastante bem a menor fluência de Lúcia (interpretada Teresa Tavares, cujo inglês, não sendo perfeito, é bastante aceitável) e de Carlos nas suas nacionalidades, que acabam por ter alguma relevância, ainda que mínima, para a narrativa. Também por isso torna-se doloroso ver quão incoerentes as personagens se revelam, feridas de morte pela falta de lógica do argumento. Há o momento em que o cientista do grupo é ultrapassado em conhecimento científico por aparentes leigos, de repente tornados especialistas em campos magnéticos just because. Há uma personagem  que possui uma memória impossível, capaz de decorar o caminho a percorrer após olhar para um mapa por breves instantes - numa tentativa absurda, de tão óbvia que é, de lhe dar alguma utilidade naquela história. E há ainda um outro que, num momento em que talvez devesse estar perplexo pelos acontecimentos e preocupado com a sua sobrevivência, insiste no dislate da eventual criação de uma empresa de viagens no tempo quando conseguissem regressar aos seus lugares originais na linha temporal - uma ideia que é recuperada no final com péssimo efeito, obliterando quaisquer resquícios de lógica ou de coerência que o enredo pudesse ainda apresentar naquele terrível final, que coloca definitivamente a nu toda a incoerência e toda a irrelevância do filme. E chegado a este ponto, o espectador repara que apenas uma das histórias pessoais, a de Luke (Jamie Maclachlan), foi desenvolvida com um módico de substância; todas as outras revelaram-se uma mão-cheia de nada, como peças por encaixar num puzzle muito incompleto.

Desconhecendo os restantes trabalhos que dão forma ao todo que é a experiência multi-plataforma de Collider, torna-se difícil saber se os problemas de coerência interna, as omissões lógicas e a carência de explicação para alguns dos seus elementos não estarão porventura resolvidos noutro meio. Para o espectador do filme, porém, isso será sempre irrelevante: apresentado enquanto longa-metragem, Collider tem de se bastar a si mesmo. Mas não basta; e enquanto thriller, comete o pecado capital de se tornar aborrecido. Há ali boas ideias, há um worldbuilding que, sem ser original, acaba por ter algum interesse, e há uma premissa e um ponto de partida a pedir um argumento à sua altura. Na ausência desse argumento, porém, Collider fica irremediavelmente coxo em termos narrativos; e a falta tanto de ritmo como de coerência acabam por dar ao filme a derradeira estocada. Não deixa de ser meritória a aventura num género pouco explorado pelo cinema português; mas isso, infelizmente, está muito longe de ser suficiente. 3.5/10

Collider (2013)
Realizado por Jason Butler
Argumento de Nuno Bernardo
Com Iain Robertston, Teresa Tavares, Marco Costa, Jamie Maclachlan, Lucy Cudden e Bella Heesom
Duração: --

(Nota: a falta de imagens neste artigo é devida à enorme dificuldade em encontrar stills do filme na Internet)

6 comentários:

Artur Coelho disse...

podia dizer-te "bem te avisei" mas não te avisei... mas a tua análise vai de encontro ao que eu suspeitava sobre isto. coisa transmedia, jogos/curtas, talvez com o correr do tempo consiga evoluir para algo interessante.

Paulo Morgado disse...

Um enorme bocejo! Qualquer cena da série espanhola "O BARCO" (a passar actualmente na Sic Radical e que parte essencialmente da mesma premissa), vale mais que todo este filme.
Além disso incomoda-me a falta de honestidade da produção, quando se fartou de "vender" o filme como sendo o primeiro filme de ficção científica Português. Nem é o primeiro nem é, em total rigor, Português.

João Campos disse...

I regret nothing!

Mais a sério: por maus que sejam, e são, "RPG" e "Collider" não deixam de ser filmes importantes - a percepção que tive de várias conversas no Fórum Fantástico (local privilegiado para juntar os fãs da FC cinematográfica) é que quase ninguém foi ver o primeiro, e não tencionava ver o segundo. O que é pena: fazia falta que mais fãs vissem, comentassem e criticassem. Quanto mais não fosse para que os realizadores/argumentistas percebessem que sim, até há público, mas é um público exigente. Seria mais útil do que o diálogo risível que tiveram na sessão de cinema do FF.

Quanto a experiências transmedia, ainda estou para descobrir uma que supere em termos de integração narrativa a de "The Matrix Reloaded" / "Animatrix" / "Enter the Matrix". O jogo nem era grande coisa, mas a integração com o filme era soberba, não desfazendo nenhuma das partes; e as nove curtas de animação foram (são) uma cereja deliciosa sobre todo o bolo.

João Campos disse...

Paulo Morgado, é com pena que me vejo a concordar consigo. Isso de ser o primeiro filme de FC também me fez alguma confusão: não só por esquecer filmes mais antigos ("Os Emissários de Khalom", do grande Macedo), mas por ignorar que três meses antes tinha estreado o "RPG". A vertente internacional até a dou de barato.

E subsiste a ideia que trazia do filme da dupla Rebordão/Navarro: os argumentistas nunca pegaram num livro ou num conto de FC na vida.

Rogério Ribeiro disse...

Excelente momento de discussão! :)

O Collider ainda não vi, mas quanto ao RPG sabem que nutro a opinião de que acabou por ser um produto abastardado, fruto de demasiados equivocos. Aliás, basta ver a publicitação do produtor nalguma media como unico realizador para cheirar ao longe o esturro!
Mas, óbvio, isso são pormenores perante o filme em si, e aí reconheço-lhe os defeitos (embora, como eterno optimista que sou, também algumas qualidades).
Aliás, João, se viste o Jogo Maldito, concordarás que anda por ali pessoal capaz de uma narrativa bem estruturada...

E agora, o que fazer com esses "objectos"?

Abraço,
Rogério

João Campos disse...

Rogério, o "Jogo Maldito", com uma narrativa bem estruturada? A narrativa é elementar, e a voz-off nem tem qualidade suficiente para elevar a coisa (não é uma Ellen McLain quem quer). No resto, a ideia é moderadamente interessante ("Scrabble"? Ainda se fosse "Catan!") mas explorada de forma muito limitada (como, aliás, todas as ideias apresentadas no "RPG"): tivesse arriscado em mostrar dois pontos de vista dissonantes e a coisa poderia ter sido muito mais estimulantes. Enfim, pareceu-me razoável, mas nada mais do que isso (e ver pouco depois uma curta do Cláudio Jordão não ajuda nada, que diabo).

Que fazer com estes objectos? Dir-te-ia: insistir. Aprender com os erros, tentar perceber as falhas, melhorar numa próxima. Mas pela conversa que houve no FF, tanto na sessão como noutro momento, o que grassa mais no meio é autismo bem temperado por uma dose generosa de negação: somos todos muito arrojados, os críticos é que não entendem, o público é que prefere balelas, o estado é que não dá dinheiro para fazermos o que entendemos, etc. E ainda sobra espaço para o refúgio na falsa modéstia (sabes do que falo). Assim, não há nada a fazer com estes "objectos". É esperar mais uns anos para que outras pessoas com outras ideias voltem a arriscar, e possivelmente a falhar.

No entanto, repito o que disse acima: não adianta queixarmo-nos de que não há FC no cinema português se, quando ela surge - boa ou má, não interessa -, os apreciadores do género não a apoiam. Paguei do meu bolso para ver tanto o "Collider", há dias (aliás, voltei de propósito do Alentejo para ainda o apanhar em exibição), como fiz em Agosto pelo "RPG"; e estaria disposto a fazer o mesmo por outro filme do género que surgisse entretanto, mesmo que viesse das mesmas equipas. Enfim, cada um faz o que bem entende com o seu dinheiro; mas não só não se fazem omeletes sem ovos, como também não adianta fazer omeletes para quem diz gostar mas depois não come. Se isto faz sentido.

Abraço