27 de dezembro de 2013

2013 em retrospectiva (2): Os melhores contos

(Dangerous Visions, ed. Harlan Ellison, 1967)

Podia fazer esta lista apenas com contos retirados de Dangerous Visions (retrospectiva aqui), a antologia revolucionária com a qual Harlan Ellison deu em 1967 o impulso definitivo à “New Wave” norte-americana (deste lado do Atlântico, o movimento assentava na revista “New Worlds”, de Michael Moorcock). Robert Silverberg, Norman Spinrad, Poul Anderson, John Brunner, Roger Zelazny – os contos de todos estes autores na antologia mereceriam sem dúvida figurar nesta curta lista. Opto, porém, por destacar o texto submetido por Philip K. Dick: Faith of Our Fathers é um conto magnífico, psicadélico e abstracto q.b., sobre dois dos temas que mais marcaram a obra deste gigante do género: a irrealidade da realidade e a experiência religiosa. Situado num Vietname distópico reminescente da China comunista, o conto centra-se em Tung Chien, funcionário da burocracia estatal, que por consumo de uma estranha droga começa a ver alucinações tão estranhas como horríveis. Mas serão essas alucinações a realidade, ou um mero resultado das drogas? Intenso e surpreendente, Faith of Our Fathers é um conto soberbo de Philip K. Dick, e uma complexa reflexão sobre a natureza da realidade e a percepção religiosa.

("IF: Worlds of Science Fiction", Março de 1967)

Antes do HAL-9000 de Kubrick e Clarke se tornar numa das mais icónicas Inteligências Artificiais da ficção científica, antes de a Skynet causar o apocalipse em Terminator e antes da passivo-agressiva GlaDOS dizimar todos os cientistas da Aperture Science em nome da ciência, houve AM: a cruel IA que manipulou física e mentalmente os últimos cinco seres humanos da Terra e os colocou num labirinto infinito. Porquê, não se sabe; o leitor apenas fica a conhecer indícios do trágico destino da Humanidade quando a Singularidade emergiu em plena guerra mundial, e o puro horror que os cinco sobreviventes experimentam naquele labirinto, entregues aos humores e aos desígnios insondáveis de AM. Harlan Ellison é um mestre da forma curta, e isso nota-se: a prosa excepcional e visual, a construção de tensão e os momentos de puro horror fazem de I Have No Mouth, and I Must Scream um texto notável, que atravessa géneros e se lê hoje com o mesmo terrível fascínio de há quase cinco décadas.

("Galaxy Science Fiction", Dezembro de 1965)

Talvez este extraordinário conto de Harlan Ellison seja tão pertinente hoje, com as distopias e o tom grimdark, a dominar o género, como foi no seu tempo. "Repent, Harlequin!" Said the Ticktockman abre com uma citação de Thoreau e conta a história do Harlequin, que com as suas partidas ameaça virar do avesso aquela sociedade futurista, distópica e obcecada com o tempo e com a pontualidade, desafiando o poder absoluto do Ticktockman. Contado de forma não-sequencial, o conto começa no meio, explica o início e termina, muito apropriadamente, no final; e nos entretantos, o leitor pode deliciar-se com a extraordinária prosa de Ellison, capaz de conjurar algumas das mais memoráveis e persistentes imagens da ficção científica que li durante 2013. Da disrupção causada por jelly beans impossíveis à descrição de como o mais pequeno atraso ameaça derrubar as fundações de toda uma sociedade escravizada pela tirania do relógio, "Repent, Harlequin!" Said the Ticktockman é um texto notável, capaz de descrever a mais obscura das distopias sem em algum momento cair num tom sombrio e tenebroso.

(New Dimensions 3, 1973)

Mais uma parábola do que um conto propriamente dito, este texto de Ursula K. Le Guin descreve a cidade de Omelas, um lugar magnífico onde os seus habitantes, cultos e esclarecidos, vivem na abundância e na felicidade absoluta. Mas tal abundância e tal felicidade dependem de um segredo especialmente sórdido, do conhecimento obrigatório de todos quando atingem a maioridade; e se alguns aprendem a viver as suas vidas na abundância e na felicidade sem pensar nessa sombra, outros revelam-se incapazes de a suportar - e são esses que abandonam Omelas para parte incerta, tão incapazes de nela viver como de a mudar. Com a sua prosa excepcional e evocativa, Le Guin recria em The Ones Who Walk Away From Omelas um micro-universo verosímil, e utiliza-o com mestria para colocar algumas questões complexas sobre a oposição entre o indivíduo e o colectivo e o preço a pagar pelo bem comum.  

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