5 de novembro de 2013

Paycheck: Philip K. Dick subaproveitado

Há alguns meses, publiquei aqui uma breve análise a Paycheck, um conto escrito por Philip K. Dick em 1952 e publicado pela primeira vez no ano seguinte nas páginas da revista Imagination. E, tal como boa parte da ficção curta de Dick, Paycheck apresenta uma premissa estimulante: num futuro distópico no qual os indivíduos vivem entalados entre os poderes opressores e antagónicos das mega-corporações e de um Estado quase-totalitário, Jennings, um mecânico talentoso, aceita um contrato de trabalho invulgar da parte da poderosa Rethrick Construction. Esse contrato prevê que, a troco de uma pequena fortuna, Jennings trabalhe para um projecto secreto da corporação durante dois anos; e, chegado ao final do prazo, todas as suas memórias daquele período serão permanentemente apagadas da sua mente. Mas ao chegar ao final do prazo, Jennings depara-se com uma amarga surpresa: durante aquele tempo, reviu o contrato para abdicar do pagamento milionário em troco de sete objectos sem valor aparente - prática algo comum entre os trabalhadores que aceitavam aquele tipo de contrato. Para espanto de Jennings, porém, aqueles objectos revelam-se de grande utilidade, não só para revelar as verdadeiras actividades da Rethrick Construction, como também para lhe assegurar um futuro livre tanto da opressão estatal como da corporativa. A descoberta da utilidade de cada objecto dá o mote para um conto bem ritmado e quase cinematográfico nas suas reviravoltas - e, no início da década passada, o realizador John Woo e o argumentista Dean Georgaris adaptaram esta história para filme. O resultado teve estreia no final de 2003: Paycheck


A premissa estabelecida no conto de Dick, como é bom de ver, tem imenso potencial. Infelizmente, a dupla Woo e Georgaris desperdiçou-a num filme de acção genérico, sem alma ou rasgo de criatividade. Esse é o grande problema de Paycheck, e não adianta dourar a pílula aqui: o conceito provocador que lhe está subjacente é posto de lado logo nos primeiros momentos do filme pela aparente necessidade de firmar ganchos narrativos para cenas de acção subsequentes. Quando se vê o protagonista, Jennings (interpretado por Ben Affleck), a praticar artes marciais com um bo staff, sabe-se logo que a coisa mais não é do que uma chekhov's gun. Da mesma forma, à medida que o filme avança é impossível não suspeitar de que os gadgets do laboratório de botânica biologia de Rachel (Uma Thurman) antevêem uma inevitável sequência de acção.


Paycheck abre com a memória de Jennings a ser apagada (numa máquina roubada a Total Recall) após um contrato de algumas semanas, estabelecendo de forma óbvia (porventura necessária, concedo) a premissa central. O contrato principal, de três anos, serve para apresentar os principais antagonistas, Rethrick (Aaron Eckhart) e o seu capanga, Wolfe (Colm Feore) - e uma elipse bem conseguida transporta o enredo com eficácia para o momento em que um Jennings atordoado (porventura a única interpretação que Affleck faz com distinção - a de alguém abananado após lavagem cerebral) percebe que não vai receber a fortuna prometida, mas sim um envelope com 20 objectos sem valor aparente.


Com estes 20 objectos (no conto eram sete) é estabelecida a ideia central do filme. Esta, porém, surge desenquadrada do seu contexto original. Não há um futuro opressivo com mega-corporações a opor-se a um Estado controlador e omnipresente, com os indivíduos esmagados no meio do conflito; não há uma revolução latente, e de moralidade ambíngua. Paycheck, o filme, procura explorar antes outra ideia, que Dick deixou suspensa no seu conto: o conhecimento do futuro gera um sem-número de self-fulfilling prophecies com resultados devastadores. Em teoria, a ideia até é boa; mas na prática, a execução dificilmente poderia ser pior.


Isso acontece porque, como já foi referido, o filme parece mais preocupado em estabelecer as sequências de acção do que em explorar as ideias propostas - e, para isso, recorre a todos os clichés que constam no manual de Hollywood. Perseguições infindáveis pautadas por product placement, explosões e stunts impossíveis. Um romance previsível e irrelevante. Actores a estrebuchar entre o diálogo medíocre e as acções incongruentes que o guião lhes impõe - ver o stand-off de Jennings e Wolfe nos túneis do metro torna-se risível. Aaron Eckhart em modo comic book villain. Uma Thurman muito apagada (quem a viu em Gattaca..!). E Ben Affleck igual a si mesmo.


A partir deste ponto, a única coisa que poderia salvar Paycheck, o filme, seria o enigma que cada objecto encerra. Mas nem isso: a partir do momento em que passam de sete para 20, torna-se impossível ao espectador ponderar a utilidade de cada um; e a excelente sequência de reviravoltas do final do conto, que torna impossível concluir a leitura sem um sorriso perante aquele desfecho, dá lugar ao supremo disparate: ao invés de fechar o círculo e apanhar os espectadores de surpresa com um rasgo de inteligência no desfecho, o último objecto serve para gerar uma explosão. Uma explosão.


É uma pena que Paycheck, o filme, seja tão típico Hollywood. Nas mãos de um realizador e de um argumentista mais interessados em explorar as ideias subjacentes à distopia criada por Philip K. Dick do que em encontrar um veículo para perseguições, explosões e pancadaria coreografada, a premissa da história que adapta para o grande ecrã seria mais do que suficiente para sustentar um filme de ficção científica estimulante e provocador. Como está, porém, é apenas mais um filme de acção baseado em ficção científica, com mais músculo do que cérebro, com boas ideias mal executadas ou não executadas de todo, e com um elenco talentoso incapaz de produzir um desempenho digno de nota (positiva, entenda-se). Ainda assim, o esqueleto do conceito elaborado por Dick está lá, e a ideia explorada através dessa premissa acaba por ser interessante - e esses dois elementos conseguem dar um módico de interesse a um filme regra geral desinteressante. 4.5/10

Paycheck (2003)
Realizado por John Woo
Argumento de Dean Georgaris com base no conto de Philip K. Dick
Com Ben Affleck, Aaron Eckhart, Uma Thurman, Paul Giamatti, Colm Feore, Michael C. Hall, Joe Morton e Kathryn Morris
119 minutos

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