27 de novembro de 2013

Entrevista a Ian McDonald, parte 2: Da fantasia à ficção científica young adult, do teslapunk à Lua

Segunda parte da entrevista a Ian McDonald, realizada durante a visita do autor britânico ao nosso país por ocasião do Fórum Fantástico. Aqui, falou-se de fantasia, da sua recente série young adult (e de algumas tendências particulares deste mercado), e dos seus próximos projectos literários. A primeira parte pode ser lida aqui.

João Campos/Viagem a Andrómeda (VA): Em termos genéricos, muitos autores de ficção especulativa – usemos o termo para simplificar – optam pela ficção científica ou pela fantasia. O Ian McDonald optou por ambos, ainda que a sua entrada na fantasia, por via de King of Morning, Queen of Day [1990], não tenha propriamente seguido a mais popular corrente de fantasia épica.

Ian McDonald (IMD): Não queria escrever esse tipo de fantasia. E, uma vez mais, King of Morning, Queen of Day foi mais uma daquelas coisas que aconteceu no zeitgeist: escrevi-o mais ou menos ao mesmo tempo em que John Crowley publicou Little, Big e Robert Holdstock publicava a série Mythago Wood. Muita da fantasia aborda a nossa entrada no mundo secundário; parte deste mundo para aquele mundo, ou decorre inteiramente naquele universo. Interessa-me mais o inverso: quando aquele outro mundo entra pelo nosso. É muito mais assustador e interessante. Holdstock fez mais ou menos o mesmo em Mythago Wood, abordando a origem dos velhos arquétipos; e Little, Big, de Crowley, mostra o que acontece quando o mundo fantástico e o nosso mundo se sobrepõem. Visto assim, torna-se evidente que algo se passava na altura.

Já vi King of Morning, Queen of Day descrito como uma proto-fantasia urbana. O que talvez não seja de todo incorrecto: tem uma heroína forte na terceira parte. O livro é sobre três gerações de mulheres irlandesas; cada uma tem a capacidade de interagir com o inconsciente colectivo, moldando e misturando mitologias e trazendo aquele mundo fantástico para o nosso. Com um detalhe: elas não sabem que o estão a fazer, ou como o estão a fazer; todo o processo decorre num nível inconsciente. E cada uma delas tem de enfrentar esse poder: algumas assumem-no, outras são destruídas por ele, e outras lutam contra ele. Na terceira parte, a heroína praticamente vai à caça de fadas. Ainda gosto muito desta história; escrevi-a em em 1990, e ela é muito anos 90, com dance music e isso tudo (risos).

VA: Já que o refere, como é regressar hoje a esses trabalhos mais antigos?

IMD: É interessante. Há alguns anos estive numa convenção em França, e colocaram-me uma pergunta sobre o final de King of Morning, Queen of Day. Não me lembrava do que acontecia, de todo (risos). Disse qualquer coisa muito vaga, e o leitor respondeu por mim. Tenho uma péssima memória para aquilo que escrevi – tenho histórias inteiras em colecções, e nem me lembro de as ter escrito.



VA: E de momento está a trabalhar numa nova série, para o mercado young adult, que começou com Planesrunner.

IMD: Planesrunner, sim. É uma história de universos paralelos com dirigíveis.

VA: E steampunk

IMD: Teslapunk!

VA: Teslapunk, certo.

IMD: Teslapunk é muito mais fixe do que steampunk! (risos). Foi uma ideia que me surgiu há já muito tempo. Está pensada para miúdos com doze ou treze anos; não tem muitos dos elementos mais típicos das histórias YA, como a atracção que alguém tem de sentir por outra personagem, o romance, todos os elementos emo… essas coisas. Os adolescentes não são assim, de todo! Basicamente, é apenas uma boa e velha aventura de ficção científica. O pai do protagonista foi raptado porque os vilões acham que ele tem um mapa de todos os universos paralelos possíveis, que lhes permitiria ir a qualquer um dos biliões de universos, ao invés de estarem limitados aos nove que se conhecem e que estão interligados pelos portões de Heisenberg. Quem controlar isso, controla o Multiverso. O protagonista tem o mapa, o pai deu-lho por segurança, e, enfim, os dados estão lançados. Ele foge para um universo paralelo onde não há petróleo – apenas carvão. Mas na verdade, o que eu queria mesmo era ter dirigíveis. É obrigatório haver dirigíveis em universos paralelos!

VA: De facto, o motivo parece recorrente.

IMD: Sim, claro – tem que haver dirigíveis. Mas eu queria um motivo lógico para haver dirigíveis e não aviões, e o motivo mais óbvio é: não há petróleo. Logo, não há aviação.

VA: Também parece uma forma elegante de imaginar uma sociedade que evoluiu de forma muito diferente, não parece?

IMD: Claro. Li há tempo um artigo na revista New Scientist sobre as coisas que quase aconteceram na nossa História. Antes de se tornar famoso pelo seu trabalho na química, Cavendish – acho que foi Cavendish, o químico britânico – fez experiências com a electricidade, e quase inventou um motor eléctrico em pleno século XVIII. Ora aqui está uma ideia espectacular. Peguei nestas duas ideias na “Terra-3”: não havia petróleo, e como o motor eléctrico foi inventado mais cedo, tudo é movido a electricidade. Logo, Teslapunk

VA: O tema dos universos paralelos presta-se a este tipo de extrapolações e comparações.

IMD: Sim, sem dúvida. Estou a gostar imenso de a escrever. Posso explorar ideias de ficção científica de uma forma muito divertida. Por exemplo, na “Terra-7”, toda a gente é gémea – um quantum entanglement em forma humana, que obriga a uma personalidade ser partilhada por duas pessoas. Um vê o que o outro vê, um pensa no que o outro pensa… são excelentes espiões: não importa para onde um seja enviado, o outro vê tudo ao mesmo tempo. E outros detalhes interessantes. Por exemplo, no caso do Cristianismo: neste universo há dois Jesus. Um foi para o céu, e o outro está de guarda às portas do Inferno (risos). É muito divertido imaginar estas possibilidades!

VA: Quantos livros terá a série? Será uma trilogia?

IMD: O terceiro livro sai agora em Janeiro, mas não, não será uma trilogia. Ainda não tenho os dois últimos vendidos, mas tenho trabalhado no sentido de fazer uma série de cinco livros. E vai terminar em grande, com algo nunca antes visto em universos paralelos. 

VA: Pode sempre seguir o exemplo do Douglas Adams…

IMD: Sim, a trilogia de cinco... pessoalmente, não gosto de trilogias. Parecem demasiado perfeitas. De resto, a história é demasiado grande para três livros.

VA: Mas a tendência não deixa de ser curiosa. O mercado editorial praticamente adoptou a trilogia como padrão, sobretudo no seguimento de The Lord of The Rings – que, na verdade, não foi escrito para ser uma trilogia.

IMD: De facto, são seis livros.

VA: E a moda pegou. Está cada vez pior, não está?

IMD: Se está. Sobretudo no mercado YA, em que todos os títulos têm de ser parecidos. Do género, o primeiro título é “Brightness”, o segundo é “Darkness” e o terceiro será “Coolness” ou qualquer coisa assim. De qualquer forma, Planesrunner não é exactamente uma história YA convencional. E está a ganhar algum sucesso em passa-palavra, com os leitores a recomendar os livros – é o tipo de sucesso que um autor quer. Ainda é muito cedo para saber como correrá; veremos. Mas também estou a trabalhar numa ficção científica para adultos.

VA: Uma nova série com a Lua como pano de fundo, certo?

IMD: Exacto. Em duas partes.

VA: Já há título? 

IMD: Sim. Luna (risos). O primeiro será Luna 1 e o segundo, Luna 2. De certa forma, continuo a escrever sobre economias em desenvolvimento – só que esta será na Lua.

VA: Já está concluída, ou ainda é um trabalho em curso?

IMD: Em curso. Vou para aí a um terço da história total. Estou a gostar imenso.

VA: Das economias em desenvolvimento para os universos paralelos, e destes para a Lua? É um percurso curioso.

IMD: Como disse, será na mesma uma economia em desenvolvimento. A ideia é: se se quiser fazer dinheiro, investe-se e vai-se para a Lua. Mas após dois anos,há uma decisão a ser tomada: ficar na Lua, e jamais regressar à Terra, ou simplesmente voltar. Toda a gente compra um bilhete de regresso; custa uma fortuna. Quem opta por ficar, recupera o preço do bilhete de regresso. Se ficar mais de dois anos, não volta. E isto é factual: após este período, a perda de massa óssea é tão acentuada que um regresso à gravidade da Terra quebraria cada osso do corpo.

VA: Essa ideia leva-me a Heinlein, e a The Moon Is a Harsh Mistress. Há um momento no enredo que explora essa diferença gravitacional muito bem.

IMD: Heinlein é uma das minhas influências, como não podia deixar de ser; mas o que estou a fazer está mais próximo de um Game of Thrones na Lua. A história gira em volta das rivalidades entre cinco poderosas famílias industriais. Os protagonistas pertencem a uma família brasileira; há também uma família chinesa, uma família do Gana – são os mais espertos, diga-se de passagem. Há os russos que controlam o sistema de transportes. E há os vilões, que são australianos. Isto porque os australianos acham sempre que toda a gente gosta deles (risos).

VA: Mas desta vez não poderá haver viagem de pesquisa.

IMD: De facto. Mas estou em contacto com astrónomos, investigadores e estudiosos dedicados à Lua. Há muita coisa interessante a ser feita neste campo actualmente. E vou desenvolvendo conceitos e ideias. Por exemplo, em termos de transportes, comboios lunares são muito eficientes. A refinação de metal é feita através de energia solar, concentrada através de espelhos… É possível construir um comboio que permaneça constantemente no ponto de maior exposição solar – uma enorme refinaria móvel, basicamente, deslocando-se pelos carris a 1,4 quilómetros por hora. É uma ideia porreira (risos). Será a base de operações dos australianos.

VA: Já há alguma previsão de quando será publicada?

IMD: Julgo que no final do próximo ano. Ainda estou a desenvolver muita coisa, é uma sociedade muito complexa: algo como a mistura de Singapura com a Nova Iorque oitocentista e com o Dubai (risos). Sem lei criminal – apenas lei contratual. Ninguém será punido por roubo ou por homicídio – mas também ninguém punirá a vingança. Tudo é negociado e contratualizado, dos casamentos à quantidade de ar respirado. Paga-se por tudo; toda a gente usa uma pequena lente de contacto que informa sobre quanto oxigénio se está a consumir a cada momento, e quanto se está a pagar. Respira, paga. É divertido.

(continua)

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