1 de novembro de 2013

Dracula: O vampiro moderno

Não é difícil de imaginar que, quando viu Dracula publicado pela primeira vez no Reino Unido em 1897, Bram Stoker jamais terá imaginado que acabara de criar não só um dos romances mais notáveis do horror gótico, mas também um dos fenómenos literários mais persistentes do século que se seguiria. Para todos os efeitos, mesmo quem nunca tenha lido o livro estará familiarizado com o seu protagonista: Drácula, tão célebre quanto tenebroso, conde da região romena conhecida como Transilvânia, na orla dos Cárpatos. Amaldiçoado pelos seus actos, Drácula é o vampiro, criatura nocturna e imortal que ataca as suas vítimas durante após o pôr-do-Sol para lhes beber o sangue e as transformar em criaturas da noite.

Numa época em que os vampiros na literatura já ultrapassaram todas as fronteiras do ridículo e da paródia involuntária, será talvez mais importante do que nunca regressar a Dracula, texto fundador de uma das mais persistentes criaturas ficcionais da noite. É certo: Bram Stoker não inventou o vampiro. Com o Conde Drácula, porém, deu forma ao vampiro moderno, ao vampiro definitivo - àquele que serviu (serve ainda) de molde a praticamente todos os que se lhe seguiriam. É certo: em larga medida, a transversalidade de Drácula na cultura popular contemporânea deve-se em larga medida à descoberta da obra literária por outra arte: a sétima. A adaptação cinematográfica não autorizada de F. W. Murnau, Nosferatu, levou o Conde Drácula para o cinema  - se não em nome, pelo menos em espírito, em ideia; e deu o mote para uma das personagens mais persistentes no grande ecrã, interpretada em várias épocas por actores tão distintos como Bela Lugosi, Christopher Lee ou Gary Oldman, em três das versões mais conhecidas; mas muitos outros filmes de muitos outros países retrataram a personagem de Bram Stoker, transpondo a história original ou criando algo novo, no mesmo género ou noutros. 

A imagem do cinema reforçou a popularidade do romance e o seu estatuto de clássico da literatura gótica, ao lado de obras como Frankenstein; Or, the Modern Prometheus ou The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Um estatuto que, diga-se de passagem, não alcançou por acaso. À semelhança dos clássicos de Mary Shelley e Robert Louis Stevenson, Dracula constrói-se sobre uma estrutura narrativa epistolar, neste caso fragmentada e dispersa pelas notas, memorandos e apontamentos e entradas de diários das muitas personagens que se cruzam no caminho de Drácula. Clippings e outros registos completam o quadro ao introduzir perspectivas neutras de acontecimentos envolvendo o protagonista nos quais nenhuma outra personagem teve qualquer intervenção, directa ou directa. Esta estrutura narrativa poderá talvez parecer estranha para os leitores contemporâneos num primeiro contacto, mas a verdade é que funciona surpreendentemente bem, imprimindo ao texto um ritmo e uma tensão assinaláveis, criando momentos de horror perfeitos e contribuindo de forma decisiva para a atmosfera desconfortável que a história vai criando à medida que se desenrola com urgência para o clímax memorável.

Dracula abre com a viagem do solicitador John Harker de Londres para a Transilvânia, em busca do longínquo castelo do Conde Drácula - que deseja adquirir propriedades em Londres. O encantamento inicial perante aquele conde tão carismático como misterioso cedo dá lugar ao horror quando Harker se apercebe do que se passa no castelo durante a noite; e, quando Drácula parte por fim, é quase por milagre que o solicitador se salva das criaturas que habitam entre aquelas paredes. Em Inglaterra, um estranho naufrágio esconde algo sinistro entre um carregamento invulgar de caixas com terra oriunda da Roménia. Recordando as conversas com Harker, Drácula começa a procurar a sua noiva, Wilhelmina Murray (Mina), e a sua amiga, Lucy Westenra. As suas acções, porém, não passam desapercebidas; e quando Lucy cai doente, o Dr. John Seward chama da Holanda o seu mentor, o Professor Abraham Van Helsing, que vai expor as origens sobrenaturais das aflições de Lucy e tentar encontrar uma forma de parar a criatura que ameaça Londres. E a história progride, repleta de tensão e de memoráveis momentos de horror, aberta por um elenco tão vasto como interessante: ao casal formado por Mina e Harker junta-se Lucy e os seus três pretendentes, o Dr. Seward, o norte-americano Quincey Morries e Arthur Hornwood; e, mais tarde, Van Helsing, portador de grande carisma, inteligência e sagacidade. Os pontos de vista individuais destas personagens dão forma à narrativa; e os seus contactos com Drácula, directos e indirectos, tornam possível a construção excepcional do vilão, com uma textura digna de nota. 

Com o seu tom sempre sombrio, a sua prosa impecável e a sua estrutura epistolar a imprimir uma cadência muito própria e muito eficaz à narrativa, Drácula é uma obra-prima em todos os sentidos da palavra - com a aventura que encerra e os horrores que descreve. E a lenda de Drácula transbordou das páginas do manuscrito de Bram Stoker - tornou-se na imagem original do vampiro, no padrão por excelência que muitos autores imitaram, homenagearam ou evitaram - mas que não conseguiram contornar. Por mais reinvenções e actualizações e modas que surjam e passem, Conde Drácula só há um: eterno, único e inigualável.

10 comentários:

Loot disse...

Um clássico sem dúvida. Logo no início aquela viagem pela Transilvãnia do Harker é qualquer coisa de fantástico. Coma chegada ao castelo e a interacção com o vilão.

Acho também que foi o Murnau o primeiro a matar um vampiro com a luz do sol no "Nosferatu" acho que também ficou intrincamente ligado para sempre à mitologia do vampiro.

João Campos disse...

E a viagem final para a Transilvânia naquela corrida louca também não lhe fica atrás.

De facto, Stoker é omisso nessa questão - Drácula apenas vê os seus poderes grandemente reduzidos e limitados durante o dia, mas não vira torresmo. Por outro lado, os seus poderes são mais vastos do que os de outros vampiros subsequentes - a transformação noutros animais para além do clássico morcego e o controlo de ventos e tempestades são disso exemplo.

Loot disse...

Tanto o Murnau como o Coppola pegaram nisso de forma diferente.

O Coppola por exemplo coloca o Dracula a caminhar de dia muito à vontade. Mas manteve a ideia do vampiro ficar mais fraco fora da sua terra (O Murnau se calhar tb já não me recordo).

Algo que o Coppola tb muda é que torna o Vlad o primeiro vampiro justificando porque é mais poderoso. No livro a ideia que tenho é que o Dracula é um vampiro e não "o" vampiro. Aliás este realizador apesar de querer fazer o filme mais fiel, mudou algumas coisas no tom do mesmo, nomeadamente o acrescentar do romance. (eu adoro ambos os filmes já agora e o início do do Coppola é tão portentoso).

em relação ao poder, talvez com maior idade, mais poder. Isso tornou-se um mote na mitologia vampirica :P

Só estou a apontar estas curiosidades porque adoro esta mitologia e acho o livro do Stoker um marco. Gosto da escrita e como bem apontas da ideia de transmitir tudo a partir de diários, cartas, artigos, etc.

Já agora saiu uma revista da disney com esta história adaptada. Pelas imagens já vi que o Mickey é o Harker :D

João Campos disse...

Por favor, está à vontade para apontar as curiosidades que quiseres..!

De facto, o filme do Coppola dá um destaque muito maior ao romance, fazendo para isso alterações radicais na personagem de Mina Harker (no filme ela aceitou a sedução de Drácula). A ideia da terra própria, como de não poderem entrar em casa de alguém sem serem convidados, dão um toque muito interessante à mitologia dos vampiros - e é pena que muitas histórias contemporâneas tenham descartado estes elementos.

(numa tema completamente diferente, estás a pensar ir ao Fórum Fantástico?)

Rui Bastos disse...

A forma da narrativa foi exactamente o que mais me impressionou. E espantou, por funcionar tão bem!

Realmente os diferentes pontos de vista permitem uma visão bastante vívida do Drácula, e aquilo que senti foi que ele, e o medo, eram as únicas coisas constantes nos relatos de todas as personagens. Uma espécie de ponto fixo ominoso.

E tenho essa Comix com a história adaptada, ainda não li, mas o desenho está absolutamente fantástico! E tem o Pateta como Van Helsing :D

João Campos disse...

A estrutura epistolar é uma das grandes forças de "Dracula" - torna o protagonista quase omnipresente, e aprofunda bastante a caracterização (para além de tornar alguns momentos muito mais "creepy").

O Pateta como Van Helsing? Bom, podia ser pior. Podia ser o Peninha. Mas ia jurar que era um papel à medida do Prof. Pardal.

Rui Bastos disse...

Exacto. Um momento que me lembro bem é quando ele trepa (ou desce, talvez fosse descer) uma das torres do seu castelo. A descrição da forma animalesca e claramente sobrenatural como o faz foi das coisas que mais me impressionou em todo o livro, e uma das passagens mais arrepiantes que já li!

Se te fizer sentir melhor, há umas achegas/homenagens à estrutura epistolar, pelo que checkei agora mesmo :)

João Campos disse...

Cena memorável, de facto.

Loot disse...

A forma como a história é narrada nunca nos dá um ponto de vista a partir do Dracula e penso que isso funciona a seu favor para lhe dar mais força e terror.

Quanto ao fórum fantástico ainda não sei. Costumo alternar fins-de-semana entre Porto e Lisboa e estarei no festival da Amadora no próximo.

Esta altura é caótica, entre amadora, doclisboa, agora vem o estoril film festival (que promete muito) e o forúm fantástico :P

Já passaste pela Amadora?

Abraço

João Campos disse...

Sem dúvida, Loot. Essa é uma das virtudes da estrutura narrativa - permitir que vejamos Drácula sempre pelos olhos, pelos medos e pelas incertezas dos outros.

Não passei pela Amadora, e infelizmente é pouco provável que passe. Mas estive hoje na apresentação do Dog Mendonça na Fnac. Se tiveres oportunidade, não deixes de passar pelo FF (estarei lá a menos que o céu me cai em cima da cabeça).

Abraço