29 de novembro de 2013

2001: A Space Odyssey a dois tempos: a visão literária de Arthur C. Clarke

Ao contrário do que alguns hábitos resultantes dos cruzamentos mediáticos na ficção científica possam sugerir, 2001: A Space Odyssey, livro assinado pelo mestre Arthur C. Clarke, não é uma simples novelização do filme que Stanley Kubrick co-escreveu e realizou, e que se viria a tornar numa das mais fundamentais peças da iconografia do género. Como o filme, aliás, não se trata de uma adaptação cinematográfica de um livro; ambas as obras foram produzidas em simultâneo; quis o acaso que, ao contrário do pretendido por ambos, o livro apenas fosse publicado após a estreia do filme. Quanto ao processo de escrita, esse foi singular pela forma como colocou dois notáveis de áreas distintas a trabalhar em simultâneo no mesmo projecto a partir de dois meios diferentes; uma raridade que o próprio Clarke reconheceu, como se pode ler em Back to 2001, texto escrito em 1989 e publicado em jeito de prefácio nas edições de 2001 da Orbit:
(...) though towards the end novel and screenplay were being written simultaneously, with feedback in both directions. Thus I rewrote some sections after seeing the movie rushes - a rather expensive method of literary creation, with few other authors can have enjoyed. Though I am not sure if 'enjoyed' is the right word.
Divergências entre autor e realizador à parte, a verdade é que várias são as diferenças que podemos encontrar entre as duas versões de 2001, a de Kubrick em filme e a de Clarke em livro, em larga medida recorrentes das diferenças entre meios. A mais notável, e porventura mais conhecida, será talvez a mudança no destino da missão Discovery, enviada para Júpiter no filme quando nas versões iniciais do guião e na versão final do livro Bowman seguiu para Saturno. A mudança foi aconselhada pelo supervisor de efeitos especiais do filme, Douglas Trumbull, perante a impossibilidade de se conseguir reproduzir de forma convincente os famosos anéis de Saturno - uma alteração que Clarke acabaria por reconhecer e continuar nas sequelas literárias desta história, a partir de 2010: Odyssey Two. Muitas outras, com maior ou menor importância, poderiam ser mencionadas; talvez possam servir para estimular a curiosidade de alguns leitores, que ainda não se tenham aventurado na palavra escrita de 2001.

Em termos narrativos, 2001: A Space Odyssey, o livro, segue mais ou menos o mesmo percurso do filme. A primeira parte, "Primeval Night", passa-se três milhões de anos antes do nosso tempo, quando os nossos antepassados proto-humanos deambulavam pela savana primordial, selvagem e intocada. É uma passagem notável de Clarke, descrevendo com o rigor possível a uma perspectiva estranha - ou primitiva, se quisermos - um acontecimento extraordinário, que potenciará o salto evolutivo que cedo se vai começar a evidenciar. E segue-se o match cut, no caso pela forma, tão inevitável como banal, de passagem de capítulos, para "TMA-1", sobre a visita do cientista Heywood Floyd à base lunar de Clavius, bloqueada por quarentena, e à cratera de Tycho, onde se descobriu a anomalia magnética impossível. Para além de colocar o leitor uma vez mais perante a impossibilidade da primeira parte do livro e de precipitar a expedição da Discovery, "TMA-1" é notável pela forma como, através da viagem de Floyd, descreve aquele 2001 imaginado - da plataforma em órbita, dividida pelos vários blocos geopolíticos; da tecnologia desenvolvida para lançar naves para o espaço a partir da superfície terrestre, para sobreviver em órbita ou para manter expedições na Lua; e até mesmo de coisas tão banais para as sociedades contemporâneas, como o infodump noticioso, passagem de pouca importância no texto mas que ganha contornos proféticos muito curiosos.

A terceira parte de 2001: A Space Odyssey, "Between Planets", trata da expedição  da Discovery, descrevendo os detalhes, as rotinas e outras tarefas da viagem, para além de introduzir a tripulação composta por David Bowman, Frank Poole, os três cientistas em hibernação e, claro, Hal-9000, a mais célebre das inteligências artificiais da ficção científica. Será na quarta parte, "The Abyss", situada no vazio que separa Júpiter de Saturno, que terá lugar o célebre "confronto" entre Bowman e um Hal transtornado - e esse confronto é radicalmente diferente daquele que se pode ver no filme de Kubrick, explorando com mais detalhe as origens do erro do computador através de uma suposição de "culpa" - ou de um processo análogo na perspectiva de uma inteligência artificial. A diferença, porém, nem por isso retira a tensão ao momento; essa está lá, diferente mas também eficaz.

"The Moons of Saturn", a quinta parte, marca a transição entre os dois momentos fundamentais de 2001: o erro de Hal e a passagem de Bowman pela "Star Gate", tornado icónico pela última transmissão do solitário astronauta, omitida no filme*: "The thing's hollow - it goes on forever - and - oh my God - it's full of stars!" A sequência final, talvez a passagem mais polémica do filme de Kubrick devido à extraordinária abstracção obtida pelo visual psicadélico de Trumbull, é descrita com pormenor por um Bowman incrédulo, à medida que atravessa tempo e espaço rumo ao infinito aparente, a um destino que desconhece e que está para além da sua imaginação. É uma passagem formidável pela belíssima estranheza que evoca, pelos mundos que sugere, e pela metamorfose final, metáfora derradeira de toda a aventura da Humanidade. 

Mas de 2001, o livro, surge mais do que uma metáfora a sugerir - ou melhor, a exigir - interpretações; surge um futuro próximo (para a sua época) bem estruturado a partir da sua realidade contemporânea, descrito com rigor e verosimilhança, e com uma ou outra profecia menos evidente, mas nem por isso menos certeira. Não terá decerto sido o livro de ficção científica proverbial, como Kubrick queria fazer em filme; mas é sem dúvida uma obra notável da hard science fiction mais pura, bem ao estilo de Clarke e digna de figurar entre os seus melhores trabalhos. 

Colocado lado a lado com o filme de Kubrick, obra-prima de uma arte visual, aquilo o livro de Clarke faz é tornar evidentes as diferenças fundamentais entre ambos os meios, entre cinema e literatura, mesmo quando estão a contar, sem tirar nem pôr, a mesma história. Porque é apenas disso que se trata: não sendo novelização ou adaptação uma da outra, as duas obras intituladas 2001: A Space Odyssey, a cinematográfica e a literária, mais não são do que duas versões factualmente - digamos assim para simplificar - exactas mas radicalmente distintas de uma mesma história, vista pelas especificidades de cada meio. Onde Kubrick optou pelo simbolismo, Clarke prosseguiu com factos; onde o realizador arriscou na abstracção, o escritor assegurou-se na descrição. Mas o mesmo rigor que atravessa o filme e que se tornou num dos seus elementos distintivos pode ser encontrado nas descrições pormenorizadas, mas não exaustivas de Clarke, e na qualidade analítica das suas palavras - tanto quanto examinam o familiar como o desconhecido, ou mesmo inimaginável. Mais do que uma curiosidade para quem apreciou ou filme no grande ecrã ou do que um manual for dummies de uma película que continua a confundir espectadores pelo seu elevado grau de simbolismo e abstracção, 2001: A Space Odyssey é um texto fundamental da hard science fiction, uma peça única da criação literária do género e um épico arrojado com a ambição de explorar a evolução humana, desde a pré-Humanidade à uma possível pós-Humanidade. E, nesse sentido, é um texto raro, e de leitura imprescindível para os fãs de ficção científica.


* Esta será talvez a única passagem do livro que lamento não ter passado para o filme - as últimas palavras de Dave em 2001 são formidáveis -, ainda que entenda por que motivo Kubrick preferiu o silêncio da personagem e a sugestão da banda sonora para montar a transição da Star Gate

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