11 de outubro de 2013

World's End, ou o caos enquanto estudo de personagem

A título excepcional, o livro desta Sexta-feira será uma sequela - fica portanto feito o aviso de minor spoilers. Em 1981, Joan D. Vinge saiu da Denvercon (Worldcon), em Denver, com o galardão mais cobiçado da noite: o Prémio Hugo na categoria de "Best Novel" para The Snow Queen, um épico de ficção científica que conta a história da luta entre duas mulheres, Moon e Arienrhod, pelo controlo e pela independência do seu planeta, Tiamat, e também pelo homem que ambas amam. Claro que a história é muito mais densa do que este breve resumo - um planeta com estações de ano estranhas, uma civilização antiga e extinta com tecnologia impossível, uma Hegemonia de mundos que mantém Tiamat sob embargo tecnológico, e uma rede de conhecimento que ninguém sabe como funciona. Em termos práticos, The Snow Queen pode funcionar como um livro autónomo, uma narrativa que, deixando em aberto muitas outras possibilidades e um universo ficcional a todos os níveis fascinante, pode ser lida sem qualquer sequela. Mas a verdade é que Vinge escreveu mais: um total de duas sequelas e uma prequela. O tema de hoje será a primeira: World's End.

Publicado originalmente em 1984 (e hoje em dia fora de publicação, infelizmente), World's End funciona mais como um elo de ligação entre os dois épicos da série, The Snow Queen e The Summer Queen (1991). Afastando-se tanto de Tiamat (onde a historia original acabou) como da Hegemonia (onde a história poderia encontrar uma possível continuação), World's End incide na sua totalidade sobre BZ Gundhalinu, o polícia natural de Karemough que Moon salva nos baldios de Tiamat (o minor spoiler é este). Tendo deixado Tiamat na última nave que de lá saiu antes de o acesso ao planeta ser interrompido, BZ vê-se sem sítio para onde ir - regressar a casa está fora de questão, dado ter sido o seu irmão mais velho, HK, a receber a totalidade da herança do seu pai (na rígida sociedade estratificada de Karemough, o primogénito é sempre o herdeiro); e, sem alternativas mais aliciantes, opta por ir para Four, um planeta remoto da Hegemonia conhecido por duas coisas. A primeira, as suas vastas operações mineiras, sobretudo numa vasta zona desolada conhecida como "World's End"; a outra, o enigma local sobre aquela região, que aparentemente possui uma riqueza natural fabulosa - mas onde acontecem fenómenos imprevisíveis e inexplicáveis, com origem num local enigmático conhecido apenas como "Fire Lake". A perspectiva de muito trabalho agrada a Gundhalinu - é a forma perfeita para esquecer não só tudo o que deixou para trás em Tiamat, como também tudo o que perdeu em Karemough. Mas quando os seus irmãos, após desperdiçarem e perderem a herança familiar ancestral, partem para "World's End" em busca de nova fortuna e desaparecem, Gundhalinu decide ir atrás deles - e a sua busca vai levá-lo até ao coração daquela terra inóspita, e até um segredo muito bem guardado.

Se The Snow Queen era um épico com uma escala considerável sustentado por um vasto (e interessante) elenco, World's End é um estudo de personagem - a história pessoal de Gundhalinu a tentar recuperar a sua vida a partir de destroços. Essa história, note-se, seria sempre interessante - o assistente de Jerusha PalaThion é uma das mais interessantes personagens do romance original, um polícia com um código de honra incontornável ao ponto de ser tabu, um passado familiar nebuloso e, claro, origens fascinantes. Mas Vinge eleva a fasquia ao tornar a estrutura narrativa ao seguir algo que poderíamos talvez designar como a máxima de McLuhan aplicada à ficção literária: o meio é a mensagem. No caso, World's End começa com o final da história, deixando o grosso da narrativa para o diário áudio da expedição de Gundhalinu a "World's End". Mas à medida que a expedição se afasta da civilização e entra mais fundo naquela terra de ninguém, os fenómenos quase lendários começam a ocorrer - e, lentamente, Gundhalinu perde as noções de tempo e de espaço, e a sua própria sanidade. A estrutura narrativa acompanha a desorientação: os primeiros capítulos parecem regulares, numerados de acordo com os dias que passaram; mas à medida que o enredo avança, os capítulos tornam-se mais erráticos - sem dimensão definida, com interrupções e omissões, e por vezes em completo stream of consciousness. Até ao ponto em que qualquer estrutura possível se torna irrelevante.

O resultado, esse, é fenomenal. A irregularidade narrativa imprime um ritmo muito próprio ao enredo, caracterizando de forma extraordinária - e sem ter de recorrer a longas descrições ou a demasiados infodumps - tanto a região estranha que o protagonista percorre como a paranóia que se vai instalando aos poucos, estimulada pela indiferença de um dos seus parceiros, e pela violência de outro. Gundhalinu confirma-se como uma personagem estimulante - muito humana nas suas dúvidas, nas suas convicções, no seu desejo inabalável de fazer aquilo que está certo quando tudo o que o rodeia parece ter sucumbido à loucura; as suas características pessoais e a introdução ao livro parecem indicar uma matriz hardboiled que acaba por se perder no caos; e o final, ainda que não seja exactamente um desfecho, nem por isso deixa de dar a esta história concreta de Gundhalinu um desfecho muito apropriado. 

A fraqueza de World's End acaba por ser exactamente essa - sendo um livro de ligação, não vive de forma autónoma como o seu antecessor. Para ser apreciado na íntegra, requer a leitura prévia de The Snow Queen, para que o leitor compreenda quem é Gundhalinu, por que motivo se encontra naquele planeta, e qual é a motivação que o leva, contra todas as probabilidades (e contra toda a lógica) a aventurar-se naquela expedição; e de The Summer Queen, para que se possa ver quão longe esta personagem secundária tornada protagonista poderá ir. Mas essa fraqueza acaba por ser compensado por outros aspectos; e, enquanto exploração de Gundhalinu e preparação para o épico que se seguirá, World's End é um trabalho soberbo - uma viagem alucinante a um "coração das trevas" e ao segredo que ele encerra. Sendo uma obra de transição, nem por isso deixa de ser um trabalho notável com uma execução brilhante, e um curto mas intenso e muito importante capítulo na odisseia maior que Joan D. Vinge desenvolveu a partir de uma história de ficção científica inspirado num conto célebre de Hans Christian Andersen. Para os interessados neste universo ficcional, será sem dúvida leitura obrigatória. 

2 comentários:

Anónimo disse...

Li-o quando saiu na EA, pouco depois de Snow Queen, e lembro-me que gostei muito. A trajectória posterior de Joan D. Vinge fez-me perder o interesse em ler Summer Queen, talvez um erro, proque este e alguns contos do início da carreira (entre eles o notável Eyes of Amber) mostram bem que ela era uma excelente autora.

João Campos disse...

No que a Joan D. Vinge diz respeito sou extremamente suspeito: ela foi a autora responsável pelo meu interesse por ficção científica ("The Snow Queen" foi o primeiro livro de FC que li, também da edição da EA). Nunca li os contos dela - ando há anos a ver se arranjo a antologia -, mas tenho as duas séries que escreveu completas: "The Snow Queen" e "Cat". E gosto muito de ambas, cada uma à sua maneira.

Pessoalmente, julgo que vale a pena ler "The Summer Queen" - o livro é grande, e um editor mais exigente não lhe teria feito mal (pelo contrário), mas nem por isso deixa de ser uma excelente história com um worldbuilding notável.