8 de outubro de 2013

Tron: o universo virtual que antecedeu os universos virtuais

Quando se fala em Tron, filme de culto da Disney que surpreendeu meio-mundo nesse ano gordo da ficção cientifica cinematográfica que foi 1982*, aquilo que regra geral surge na mente de quem viu o filme é o seu visual tão singular como bizarro, misturando actores reais com cenários esquisitos (simplifico) e animação algo abstracta, quando não mesmo psicadélica. De facto, a componente visual será porventura o traço mais identificativo e mais relevante deste filme de Steven Lisberger - e, à sua época, a sua estética única terá decerto sido surpreendente, de tão fora-do-baralho que era (ainda é). No entanto, olhando à distância de pouco mais de três décadas, aquilo que mais surpreende em Tron é, sim, o facto de ter surgido na época em que surgiu a contar a história que contou - e a propor as ideias que propôs. Em 1982, estávamos longe de imaginar que as capacidades computacionais e o software informático atingissem o nível de sofisticação do presente; não sonhávamos sequer que as experiências interactivas algo simples dos videojogos que floresciam nas (hoje quase extintas) arcadas se tornariam nas experiências narrativas hiper-realistas de alguns títulos recentes; e o cyberpunk que revitalizaria a ficção científica com as suas simulações virtuais e a sua estética underground estava ainda a um par de anos da sua afirmação definitiva e sustentada. E antes de tudo isto existiu Tron, um filme ousado que utiliza o boom dos videojogos no início dos anos 80 e uma trope clássica da ficção científica (a inteligência artificial com más intenções) para colocar a possibilidade de entrar numa interface virtual e interagir com o software.


A história é simples e, por vezes, algo ingénua: Kevin Flynn (Jeff Bridges) é um programador brilhante que criou alguns videojogos revolucionários - roubados por um colega, Ed Dillinger (David Warner), que os usou para subir na vida. Flynn tenta encontrar uma forma de provar que o sucesso de Dillinger é, na verdade, seu, mas todas as tentativas de infiltrar o sistema informático da empresa onde trabalhou com o seu rival esbarram no Master Control Program - um software com inteligência artificial que acaba por conquistar um poder demasiado grande, ao ponto de dominar o seu criador e se tornar numa ameaça mundial.


Não há em Tron subtileza narrativa: estabelece-se o protagonista-herói, o vilão e o interesse romântico, e a aventura, pelo menos no que à narrativa diz respeito, segue sem surpresas ou ambiguidade, com todos os obstáculos previsíveis. A área experimental de Lora (Cindy Morgan) serve de Chekhov's gun ao enredo, com o "dispositivo de digitalização" a dar a passagem a Flynn do mundo físico para o ciberespaço onde se move o software - e, a partir daqui, a deixar a estética de Tron assumir as rédeas do filme.


E se na narrativa Tron não se destacaria, na estética torna-se superlativo - com a sua realidade virtual colorida, luminosa e elegante a merecer lugar destacado na iconografia do ciberespaço. Os feixes luminosos, as icónicas corridas virtuais de motos a desenhar labirintos mortais, as backdoors, as interfaces defensivas estilizadas, os discos - tudo é ao mesmo tempo estranho e fascinante, fruto de uma inteligente combinação de personagens reais com efeitos computorizados topo de gama (para a época). E isso passa para a aventura, que de outra forma seria banal. Na realidade virtual, os programas ganham contornos antropomórficos, emulando os seus utilizadores - que querem continuar a servir, à revelia das directivas do Master Control Program. E Flynn, passando-se por um programa, vê-se obrigado a competir e combater contra uns, e a aliar-se a Tron (Bruce Boxleitner), um programa de segurança muito sofisticado, à medida que vai desvendando os segredos daquela estranha realidade.


É possível que, para alguns, a estética de Tron surja hoje irremediavelmente datada - a sofisticação dos efeitos especiais contemporâneos está a anos-luz daquilo que a Disney fez em 1982 (como a própria sequela, Tron: Legacy, comprova). Mas a verdade é que o ambiente colorido e mesmo clunky de Tron continua a ter um charme muito próprio. Os fatos das personagens, as motas, a nave do Master Control Program, o feixe de luz no qual se deslocam numa pequeno veículo, a forma como interagem com o meio que os rodeia - todos os seus elementos são ainda hoje reconhecidos de imediato. Na sua inocência efusiva e aventureira, nunca o ciberespaço foi representado como em Tron, antes ou depois da sua estreia - e esse será talvez o maior elogio que se lhe pode fazer. Pode não ser um marco narrativo, como outros filmes do género - mas a riqueza singular da sua estética e da sua componente visual fazem do filme um clássico incontornável da ficção científica. 08/10

Tron (1982)
Realizado por Steven Lisberger
Argumento de Steven Lisberger e Bonnie MacBird
Com Jeff Bridges, Bruce Boxleitner, David Warner, Cindy Morgan, Barnard Hughes, Dan Shor, Peter Jurasik e Tony Stephano
96 minutos

* O título é indisputado: 1982 foi mesmo o melhor ano de sempre da ficção científica cinematográfica. Vejamos: Blade Runner, E.T., The Thing, Tron, Star Trek II: The Wrath of Khan, e mais alguns menos conhecidos. É obra.  

6 comentários:

Inês Moreira Santos disse...

Excelente texto sobre um filme que gosto bastante.

TRON revelou-se um verdadeiro visionário na época em que estreou e foi pena na altura não ter chamado tanto a atenção como merecia.

Cumprimentos cinéfilos,

Inês Moreira Santos
http://hojeviviumfilme.blogspot.pt

Artur Coelho disse...

belo texto sobre um clássico do CGI, mas... deixo-te dois nomes: ivan sutherland e ted nelson. visualizaram/conceberam o tipo de conceito de espaço virtual que influencia este filme.

João Campos disse...

Inês, como alguém dizia num artigo/comentário que li, o filme precisou de 30 anos para ganhar força suficiente para ter a sua sequela :)

O que não deixa de ser curioso. É um filme realmente bom.

Cumprimentos

João Campos disse...

Obrigado, Artur. O visual de "Tron" é mesmo extraordinário. A ver se vejo a sequela um dia destes para dar seguimento ao artigo.

Rita Santos disse...

Gosto bastante. Achei que o filme mais recente não dignificava a obra original, desiludiu-me. Mas "Tron", esse, ainda vou vendo.

E sim, a tua pequena nota devia estar escrita em tamanho maior, 1982 foi um grande ano para a ficção cientifica!

João Campos disse...

Ainda não vi "Legacy", Rita. Quando o fizer, escreverei aqui sobre ele.

E sim, 1982 foi "o" ano para a FC.