13 de setembro de 2013

Terra Média, a história e os mitos: The Silmarillion

Após a morte de J. R. R. Tolkien em 1973, o seu filho e executor literário, Christopher Tolkien, deu início a uma tarefa hercúlea de organizar as anotações e os rascunhos deixados pelo seu pai, e de tentar publicar as lendas e as histórias da primeira era do mundo secundário apresentado em The Hobbit e sobretudo em The Lord of the Rings. Tais histórias e lendas faziam parte de uma obra maior, que Tolkien tentara publicar sem sucesso aquando da publicação original da trilogia do Anel; temas e ideias em desenvolvimento muito antes de os hobbits se tornarem tão populares. The Fall of Gondolin, o mais antigo destes textos, teve a sua primeira versão escrita em 1917, em plena Primeira Guerra Mundial. Nele, Tolkien narra a fundação da cidade de Gondolin, reino fundado por Turgon em segredo, e que foi mantido em segredo até à traição de Maeglin e à queda perante as forças de Morgoth. Mas muitos outros foram escritos e re-escritos após The Fall of Gondolin , desde a criação do mundo de Ëa até aos antecedentes da Guerra do Anel. São essas histórias e essas lendas que Christopher Tolkien, com a ajuda de Guy Gavriel Kay, compilou, completou e editou em 1977 com o título The Silmarillion.

Ainda que incompleto e de natureza inevitavelmente fragmentária, The Silmarillion é um registo fascinante daquele que será um dos mais vastos e ricos mundos secundários jamais criados em literatura. Partindo dos mitos de criação com criaturas divinas e semi-divinas, Tolkien explora as origens de Elfos, Anões e Homens, com conflitos e tragédias, vitórias e conquistas. As várias histórias interligadas criam uma narrativa única na sua escala e na sua ambição, construindo os sólidos alicerces sob os quais assenta The Lord of the Rings - adivinhados em vários momentos daquela obra - e consubstanciando as origens de várias personagens, e a natureza do próprio mundo em que habitam.

Dividido em cinco partes, The Silmarillion abre com aquela que julgo ser a mais fascinante peça literária deixada por Tolkien: Ainulindalë, a Música dos Ainur, o mito de criação de Ëa pelo próprio Deus, Eru Iluvatar. Tendo criado os Ainur como "filhos do seu pensamento", Iluvatar deu-lhes vários temas de música para comporem para seu prazer, primeiro individualmente, depois em duos e pequenos grupos - até que reuniu todos os Ainur e lhes propôs algo mais vasto, um tema composto por todos em harmonia, de acordo com a natureza de cada um. É aqui que surge a discórdia de Melkor, e a criação do mundo físico onde alguns Ainur virão a residir como Valar e Maiar, e onde surgirão Elfos e Homens e todas as criaturas que os leitores conheceram na restante obra; e para onde irá Melkor, semeando a discórdia e o conflito à sua passagem. Mais um mito do que um conto, Ainulindalë é um texto extraordinário, escrito num registo de "contador de histórias" que remete para as lendas e mitologias de outros tempos. A utilização da música como chama da criação do mundo é interessante, sobretudo num mundo secundário cujas origens são também linguísticas - e o resultado é soberbo, estabelecendo na perfeição os temas que ocuparão a maior parte da obra.

A segunda parte de The Silmarillion não é exactamente uma história. Na sua essência, Valaquenta é um glossário elaborado sobre os Valar, os Maiar e os seus inimigos, descrevendo as várias figuras divinas (Manwë, Varda, Mandos, Ulmo e mesmo Melkor, mais tarde conhecido como Morgoth) e servindo como ponte entre a criação de Ainulindalë e a narrativa de principal da obra, concentrada na sua terceira parte: Quenta Silmarillion.

Composto pelos várias histórias que, juntas, compõem um registo dos acontecimentos da Primeira Era do mundo, desde a sua criação até ao fim da Guerra da Ira (que mudaria para sempre, e a todos os níveis, a face de Arda, ou do mundo), Quenta Silmarillion é um texto notável, de inspiração em várias passagens de várias sagas antigas, dando conta da oposição de Morgoth aos Valar, e à longa e trágica que travou contra os habitantes da região da Terra Média então conhecida como Beleriand - os Homens, vindos mais tarde, e os Elfos, tanto os nativos como os exilados de Valinor. Na base desta história está a criação dos Silmarils por Fëanor, primogénito de Finwë, o primeiro rei dos (elfos) Noldor: três jóias perfeitas nas quais absorveu e conteve a luz das Duas Árvores. Mas se os Valar representam o Bem e Morgoth o Mal, já nos vários povos dos Elfos, com os Fëanor e os seus filhos à cabeça, é possível encontrar uma maior ambiguidade moral na forma de um juramento de consequências terríveis, que levou os Noldor a exilar-se na Terra Média para travar uma guerra desesperada contra as forças de Morgoth. Na prática, Quenta Silmarillion é a crónica desta longa e trágica guerra, repleta de traições, batalhas extraordinárias e épicas (a grandeza da "Nirnaeth Arnoediad" é notável), actos heróicos e mesmo algum romance - ver, no caso, o conto de Beren e Lúthien. Desta passagem emerge uma história de grande importância na narrativa maior, que foi mais tarde editada individualmente: The Children of Húrin. Leitores impressionados com a dimensão do conflito e das batalhas que constam em The Lord of the Rings não ficarão desiludidos. 

A quarta parte de The SilmarillionAkallabêth, conta a história da criação e sobretudo da queda de Númenor, reino dos descendentes das Três Casas dos Homens (Edain) amigos dos Elfos, e que com eles lutaram contra Morgoth. Númenor, uma vasta ilha levantada das profundezas do oceano por Ossë e abençoada pelos Valar; aos seus habitantes foi dada sabedoria e uma vida longa para os seus padrões mortais. Ainda que longe da Terra Média, os habitantes de Númenor cedo se expandiram para as terras do continente - e com os Elfos, lutaram contra Sauron, um dos comandantes de Morgoth que escapara à desgraça do seu mestre e se instalara a Leste das Montanhas Azuis - e que irá levar os Númenorianos à ruína. É certo que os principais pontos de interesse de Akallabêth passam por estabelecer as origens de Sauron, principal vilão de The Lord of the Rings, as origens da linhagem de Aragorn, a base de vários acontecimentos aludidos na trilogia (como a Guerra da Última Aliança, na qual Isildur cortou o Anel da mão de Sauron) e, enfim, estabelecer uma ligação firme entre os acontecimentos da Primeira e da Terceira Era. Nem por isso, porém, deixa de ser uma história notável dentro do vasto universo de The Silmarillion, um conto sobre a ascensão e queda do Homem por uma das suas maiores fraquezas: o orgulho.

Como o próprio título indica, a quinta parte de The Silmarillion, Of the Rings of Power and the Third Age não é exactamente uma história mas uma crónica sobre a criação dos Anéis do Poder, a fundação dos reinos de Arnor e Gondor, a chegada dos Istari (os feiticeiros: Saruman, Gandalf, Radagast e outros dois, apenas mencionados) e a Guerra do Anel. Em termos práticos, funciona como um resumo - sempre interessante, é certo - dos acontecimentos que culminaram em The Lord of the Rings, acrescentando maior detalhe a algumas passagens até então mais obscuras.

Quem não tenha apreciado The Hobbit e, sobretudo, The Lord of the Rings, dificilmente encontrará nas 445 páginas de The Silmarillion (ainda assim muito conservadoras perante as sagas de fantasia moderna) uma leitura cativante - Christopher Tolkien entrelaçou e completou as várias histórias que compõem a obra num todo com um módico de coerência narrativa, mas que nem por isso esconde a sua natureza fragmentária e, acima de tudo, incompleta. Quem, contudo, tenha encontrado em The Lord of the Rings uma leitura extraordinária, ou quem dê especial importância aos vários aspectos da construção de mundos secundários em fantasia literária, encontrará em The Silmarillion mais do que uma obra indispensável - encontrará uma obra-prima, um prodígio de imaginação que, sem esconder as suas muitas influências, deu forma a um imaginário rico e complexo como muito poucos (se algum) na literatura. Para mim, que me encontro no segundo grupo desde que Frodo chegou à Floresta Velha e encontrou Tom Bombadil, The Silmarillion foi como uma pedrada no charco - uma leitura fascinante sobre um mundo singular na literatura fantástica. 

2 comentários:

Célia disse...

Queria agradecer os textos fantásticos que tens escrito sobre Tolkien (livros e filmes relacionados). Este, em especial, recordou-me o quanto amei esta leitura e a sensação inesquecível que me deixou de nunca ter lido nada assim tão espetacular. É sempre bom ir relembrando tudo o que me apaixonou neste livro e ficar assim com vontade de ir a correr relê-lo :)

João Campos disse...

Agradeço a simpatia. Para mim a leitura de Tolkien também foi muito especial - não foi a minha introdução à fantasia literária, mas foi sem dúvida o que me fez ficar.

E sim, "The Silmarillion" é extraordinário. Em termos de worldbuilding no género, há o Tolkien e depois todos os outros.