24 de setembro de 2013

A Terra Média segundo Peter Jackson (3): A conclusão épica de The Return of the King

Após 357 minutos divididos de forma muito eequitativa por dois filmes (não contando com os extras, entenda-se), eis-nos chegados enfim a The Return of the King, o último capítulo da trilogia The Lord of the Rings que Peter Jackson adaptou para o cinema a partir do clássico de fantasia épica de J. R. R. Tolkien. Uma tarefa colossal, diga-se de passagem - transpor a (quase) totalidade da Guerra do Anel que marcou o fim de Sauron, o último dos comandantes de Morgoth, e da Terceira Era da Terra Média. E, para deixar o óbvio resolvido, um desafio que Peter Jackson superou com distinção, concluindo a trilogia com um terceiro filme a todos os níveis notável. 

É certo que, aqui chegados, é inevitável equacionarmos as muitas alterações que a adaptação cinematográfica impôs à narrativa original, e considerarmos o impacto dessas alterações nos temas abordados por Tolkien no seu épico. Como não poderia deixar de ser, muitas das decisões de Jackson no decurso desta adaptação são questionáveis - mesmo entendendo que, dada a diferença fundamental de ambos os meios, seria impossível uma transposição cena-a-cena funcional. Talvez a mais dúbia - até mesmo que a omissão de Tom Bombadil no primeiro filme - seja a eliminação absoluta da passagem The Scouring of the Shire, momento importante na narrativa literária pela afirmação definitiva dos hobbits ao confrontarem-se com a devastação da guerra até na sua pequena e insignificante terra. Noutros momentos, porém, nota-se um trabalho cuidado de equilíbrio narrativo, especialmente visível no desenvolvimento de Frodo, Sam e Gollum: dando fôlego à história destas três personagens, os argumentistas puderam mover, com claro benefício para a trilogia no seu todo, a passagem de Cirith Ungol e o confronto com Shelob para o terceiro filme (nos livros, tem lugar em The Two Towers). 


Em termos narrativos, The Return of the King começa por resolver um mistério que persiste desde a passagem da Irmandade por Mória: qual a origem de Gollum, a criatura que em tempos possuiu o Anel, e que segue Frodo, dissimulado? Num longo e fascinante prólogo em formato de flashback, The Return of the King abre com uma pacata cena de pesca entre Sméagol e Déagol, da variedade Stoor dos Hobbits, que cedo se torna violenta quando Déagol encontra um anel no leito do rio, e Sméagol o reclama para si. Nasce assim Gollum, condenado ao exílio ao apoderar-se do anel que Isildul arrancara da mão do próprio Sauron. Uma vez mais, a interpretação de Andy Serkis merece destaque - encarnando Gollum na perfeição, na sua transformação de um Hobbit comum para uma criatura vil e miserável - colocando em perspectiva o tremendo fardo que Frodo transporta para Mordor.


Findo o prólogo, The Return of the King retoma as várias histórias deixadas no final de The Two Towers - com os elementos sobreviventes da Irmandade (à excepção, claro, de Frodo e Sam) a reunirem-se nas ruínas de Isengard. A edição especial em DVD inclui neste ponto uma cena adicional de grande importância, ao dar um fim lógico ao enredo de Saruman - mas a versão que esteve em exibição deixou, erradamente, essa ponta solta, qual gato escondido com o rabo de fora. Uma reunião, porém, que pouco durará - deixando Aragorn, Legolas, Gimli e Merry em Rohan, Gandalf parte com Pippin para Gondor, com o propósito de preparar o reino para a ofensiva iminente de Mordor. E cedo as forças de Gondor, comandadas por Faramir, se vêem obrigadas a ceder a cidade de Osgiliath e a recuar para a cidade-fortaleza de Minas Tirith.


Mas Denethor, Mordomo de Gondor, amargurado pela morte de Boromir e alheio à guerra que já se trava no reino que jurou proteger, recusa pedir ajuda a Rohan - obrigando Gandalf a tomar a suas próprias medidas para tentar travar o avanço das forças de Sauron. Em Rohan, começam os preparativos para a longa marcha para Minas Tirith, e para a guerra - mas Aragorn, sob indicação de Elrond (que reforjou Narsil, a espada com que Isildur cortara o Anel da mão de Sauron, e a renomeou Andúril), opta por se separar das forças de Théoden e segue por um caminho mais perigoso, a fim de conseguir aliados tão poderosos como improváveis.


Entretanto, Frodo e Sam seguem Gollum por um caminho muito próximo de Minas Morgul, antiga cidade de Gondor conquistada por Sauron e ocupada pelo temível Witch-King of Angmar, o mais temível dos seus comandantes. Esse caminho leva-os às escarpas de Cirith Ungol, lugar tenebroso onde habita um mal antigo e terrível: Shelob, descendente de Ungoliant, uma aranha gigantesca que habita as passagens e as grutas daquelas montanhas caçando tudo o que por lá passa - e não perdendo a oportunidade de atacar Frodo, numa das mais poderosas cenas de toda a trilogia.


Em termos visuais, The Return of the King consegue superar a elevadíssima fasquia que The Two Towers estabelecera - a fotografia é soberba, os planos são impressionantes de forma consistente ao longo de mais de três horas, e os efeitos especiais são a cereja em cima de um bolo de confecção irrepreensível. Uma vez mais, as belíssimas paisagens naturais da Nova Zelândia foram utilizadas para retratar a Terra Média, ainda que um pouco menos do que nos filmes anteriores - neste terceiro capítulo, os efeitos especiais e as CGI brilham em todo o seu esplendor - basta pensarmos, por exemplo, no impressionante (e assustador) detalhe de Shelob, na soberba recriação da cidade branca de Minas Tirith e, sobretudo, nas enormes batalhas.


Talvez o adjectivo "enorme" não faça justiça à dimensão da batalha de Pelennor Fields tal como Peter Jackson a filmou e recriou. Não há, em toda a história do cinema, muitas batalhas que se lhe possam comparar na sua dimensão avassaladora, no seu carácter eminentemente épico, na fluidez narrativa que acompanha os vários lados em confronto, dando uma perspectiva global do confronto sem no entanto deixar de acompanhar as várias personagens envolvidas - e sem deixar de dar atenção ao detalhe. A batalha de Helm's Deep em The Two Towers já fora climática (e, como disse, tenho um soft spot pela Última Marcha dos Ents), mas Pelennor Fields eleva a fasquia para alturas impossíveis. Quem duvidar, reveja a carga da cavalaria de Rohan.


Infantaria e cavalaria aos milhares, elefantes gigantescos, dragonetes com Naz-gûl, e até espectros - Pelennor Fields incluiu tudo em porções generosas e bem temperadas. E ainda deixou tempo para um último confronto, às portas de Mordor - perante o olhar atento de Sauron.


Como já disse a propósito de The Two Towers, a banda sonora de Howard Shore é notável, acompanhando na perfeição cada momento do filme. Também o elenco está à altura do desafio - Viggo Mortensen interpreta na perfeição um Aragorn primeiro dividido, por fim resoluto na sua missão e na sua herança, mas sempre humilde; Elijah Wood e Sean Astin fazem uma dupla extraordinária como Frodo e Sam - o primeiro pela força que dá ao tormento que o anel causa ao hobbit, e o segundo pela determinação quem imprime a cada gesto e a cada deixa da sua personagem, ferozmente leal ao seu amo e amigo. Andy Serkis é superlativo como Gollum - mesmo até ao seu momento de glória, que é também o seu momento final. Merecedora de destaque é ainda a interpretação de John Noble como Denethor, o Mordomo de Gondor consumido pelo rancor, pelo desejo de uma posição que não é a sua, e pela loucura que o levou a desafiar poderes maiores do que o seu. 


Ainda que tenha omitido a passagem The Scouring of the Shire, Peter Jackson nem por isso poupou nos finais para este terceiro capítulo - entre o fim da missão de Frodo e o início dos créditos passam longos minutos, onde se explica o destino, mais ou menos imediato, das várias personagens que participaram em tão grande aventura. Uma opção criticada por muitos, por alongar em demasia o filme - mas, dadas as dimensões da história a ser contada, é difícil imaginar outra forma de atar as pontas soltas (uma simples narração não teria a mesma força - como a cena de Gondor atesta). Independentemente tais considerações, ou de outras liberdades artísticas, a verdade é que, com The Return of the King, Peter Jackson encerrou em grande a sua visão cinematográfica da Terra Média de Tolkien - culminando longos anos de trabalho e mais de três horas de filme num épico notável que mereceu cada prémio que conquistou - e conquistou muitos. Uma justa adaptação para o cinema de uma das maiores criações literárias que a fantasia já conheceu. 9.8/10


The Lord of the Rings: The Return of the King (2003)
Realizado por Peter Jackson
Argumento de Peter Jackson, Fran Walsh, Philippa Boyens e Stephen Sinclair com base na obra de J. R. R. Tolkien
Com Ian McKellen, Elijah Wood, Sean Astin, Andy Serkis, Viggo Mortensen, John Rhys-Davies, Orlando Bloom, Dominic Monaghan, Billy Boyd, John Noble, David Wenham, Miranda Otto, Cate Blanchett, Bernard Hill, Karl Urban, Liv Tyler e Hugo Weaving.
201 minutos

2 comentários:

ruisdb disse...

Mais uma vez parabéns pela análise. Estou contigo quanto à "crítica" pela omissão do "The Scouring of the Shire". Nos livros, para um leitor ingénuo, essa cena aparece de forma gratuita, estilo bónus de mais aventura, emoção e derrota do mal. Quase que metido a martelo. Mas para Tolkien era necessário realçar a força do mal, que é capaz de corromper os mais "puros" (os hobbits).
Náo sei porque é que o Peter Jackson oitiu essa cena. Gestão de tempo? Ou terá sentido que o público não suportava mais um layer de complexidade moral?

João Campos disse...

Julgo que foi sobretudo por gestão de tempo. Se mesmo assim o filme é criticado pelo excesso de finais, imagine-se se houvesse mais 20 minutos com as malandrices do Saruman no Shire.

Como vi os filmes antes de ler os livros, descobrir esta cena foi uma surpresa. Uma boa surpresa, entenda-se. Percebo a omissão, mas também a lamento; em última análise, tornaria a deixa de Frodo
“We set out to save the Shire, Sam and it has been saved - but not for me” ainda mais forte.

Obrigado pela companhia ao longo destas semanas!