17 de setembro de 2013

A Terra Média segundo Peter Jackson (2): The Two Towers, ou como no meio pode estar a virtude

Um dos problemas mais comuns de uma trilogia, seja literária ou cinematográfica, reside na segunda parte da história - no livro ou no filme "do meio", que se vê obrigado a alargar o mundo ficcional estabelecido na primeira parte e deixar o terreno preparado para o desenlace esperado para a terceira. Uma tarefa por vezes ingrata, esta de servir de ponte entre o início e o final de uma história. Tolkien contornou-a de forma curiosa, ao optar por ignorar a divisão editorial e manter-se fiel à sua própria estrutura interna (os seis livros) enquanto, em simultâneo, concluiu o quarto livro (a segunda parte de The Two Towers) com o excelente cliffhanger de Sam em Cirith Ungol, após a luta desesperada contra a terrível Shelob. Já Peter Jackson optou por algo mais convencional na sua adaptação de The Two Towers: explorar as várias histórias separadas no final de The Fellowship of the Ring até ao ponto em que cada uma delas alcançasse um final lógico na narrativa, com esse final a estabelecer com firmeza as fundações do capítulo final da história. Pesem embora algumas alterações significativas no detalhe mas talvez menos importantes no todo narrativo, a adaptação de The Fellowship of the Ring de Peter Jackson manteve-se sempre muito próxima do livro de Tolkien - até ao momento final, movendo a separação da Irmandade e a morte de Boromir do segundo para o primeiro capítulo da trilogia. Uma alteração inteligente por permitir que o arco narrativo do primeiro filme terminasse de forma digna e coerente, abrindo o caminho para o segundo. Mas em The Two Towers, o realizador e os argumentistas tomaram mais liberdades criativas, não só alterando a ordem de vários acontecimentos (algo fundamental) como também acrescentado várias cenas originais e modificando de forma drástica o carácter de algumas personagens - com Faramir a ser o caso mais flagrante. Mas já lá iremos.


Na impossibilidade de manter a divisão de Tolkien, separando a história de Frodo e Sam da aventura dos restantes membros da - agora extinta - Irmandade, Jackson optou por misturar as duas (três) ramificações, acompanhando em simultâneo as várias personagens à medida que estas viajam pela Terra Média, entre a Torre de Orthanc em Isengard e a Torre de Barad-dûr em Mordor. Frodo e Sam, sozinhos e perdidos em Emyn Muil, encontram por fim Gollum, a segui-los desde Mória - recriado pelas mais sofisticadas técnicas de motion capture da época e interpretado de forma inesquecível por Andy Serkis -, que acaba por ser coagido a guiá-los para Mordor através dos vastos Pântanos dos Mortos. Mas pelo caminho encontram Faramir, irmão do (falecido) Boromir, com vários soldados de Gondor; e o rumo da sua demanda, entre o carácter traiçoeiro de Gollum e a fraqueza dos Homens, torna-se incerto...


Do outro lado do rio Anduin, Aragorn, Legolas e Gimli percorrem Rohan no encalço dos Uruk-hai que mataram Boromir e capturaram Merry e Pippin. Pelo caminho encontram Éomer (Karl Urban), um comandante de Rohan banido por édito real de um Theoden (Bernard Hill) atormentado - que lhes indica ter morto os Uruk-hai nas imediações da sombria Floresta de Fanghorn. Lá encontram Gandalf, regressado da sua morte aparente no confronto com o Balrog em Mória - e, sabendo que os dois hobbits estão bem, partem com o feiticeiro para Rohan, com o propósito de resgatar o rei ao torpor que o assolou pela traição do conselheiro Gríma (Brad Dourif), e de preparar a resistência a Saruman, que reúne as suas forças em Isengard.


Em Fangorn, e após a dura travessia de Rohan com os Uruk-hai, Merry e Pippin encontram-se à guarda de Treebeard, um dos últimos Ents da Terra Média - os "pastores de árvores" que guardam a floresta desde os tempos antigos. Apesar de pachorrentos, os Ents são uma força considerável - e debatem entre si se devem entrar numa guerra que provavelmente não lhes dirá respeito. Mas a interferência dos dois hobbits poderá tornar possível algo muito inesperado para todos os intervenientes do conflito.


Nestas três histórias o espectador conhece várias personagens novas, desempenhadas com brio por um excelente elenco: de Éomer e Théoden a Éowin (Miranda Otto), irmã de Éomer e uma das poucas personagens femininas da história com verdadeiro destaque pelo seu desejo ardente de combater; Treebeard (com voz de John Rhys-Davies), a força melancólica de Fangorn; e Faramir (David Wenham), capitão de Gondor, desejoso de agradar a um pai que sempre o preteriu em favor de Boromir, e dividido entre o que fazer quando captura Frodo e descobre o Anel. É nesta personagem que se pode ver uma das mais relevantes alterações feitas em relação aos livros: a sua nobreza de carácter mantém-se, mas é adensada por uma maior ambiguidade moral que, surpreendente, o acaba por tornar numa personagem mais interessante (ainda que a resolução do seu conflito interno surja numa cena um tanto ou quanto problemática em Osgiliath).


Claro que, no que às personagens diz respeito, é o Gollum de Andy Serkis quem rouba todas as cenas. Serkis pega numa das melhores personagens de Tolkien e torna-a inesquecível com uma interpretação excepcional, que reproduz de forma singular a malícia e o carácter ambíguo de Gollum e o seu desejo pelo Anel, mas também a sua vertente atormentada pela longa posse daquele artefacto. A voz, os maneirismos, os gestos - tudo é perfeito naquela personagem, com os sofisticados efeitos especiais a serem conjugados com um desempenho de antologia.


Tal como em The Fellowship of the Ring, também em The Two Towers os cenários são extraordinários - às paisagens naturais belíssimas da Nova Zelândia juntam-se notáveis recriações de Fangorn, Edoras, Helm's Deep e os Pântanos dos Mortos. A banda sonora de Howard Shore continua soberba, com as músicas associadas a Rohan a merecerem destaque. Mas onde Peter Jackson eleva a parada é nas batalhas - abre com o espectacular combate entre Gandalf e o Balrog no abismo de Mória, as tensas escaramuças dos Uruk-hai com os cavaleiros de Rohan, e sobretudo com a imponência furiosa de Helm's Deep, uma das mais climáticas batalhas já vistas no cinema (pelo menos até chegarmos aos Campos de Pelennor no terceiro filme). Mas, e numa nota meramente pessoal, é a Última Marcha dos Ents que leva a taça - com o levantamento da floresta e a marcha de Treebeard e dos Ents (instigados por Merry e Pippin) contra Isengard a concluir em alta a história de Fangorn naquela que é a melhor cena da trilogia, com uma combinação perfeita de imagem, efeitos especiais e música.


Claro que, como disse acima, The Two Towers também ficou marcado pelas muitas liberdades criativas tomadas por Peter Jackson. Para além de Faramir, também Aragorn viu o seu carácter de herói relutante adensado, e o seu romance com Arwen explorado através de algumas cenas encaixadas de forma inteligente numa trama à qual a personagem de Liv Tyler não pertencia. O conflito de Rohan foi simplificado, para evitar excesso de personagens num elenco já de si vasto; mas os Elfos de Lothlórien juntaram-se à batalha de Helm's Deep, um afastamento radical da narrativa original que talvez não tenha sido explorado como devia (acabam por ser pouco relevantes para o resultado da batalha). E, claro, Osgiliath - com a cena entre Frodo, Faramir e o Witch-King a ser especialmente problemática, necessitando de uma interpretação mais... imaginativa para a explicar.


Mas por mais importância que se possa dar às suas fraquezas (e não são muitas), estas nem por isso diminuem o resultado final das três horas de The Two Towers. Sim, podemos questionar a pertinência de alguns desvios, de algumas cenas adicionadas em detrimento de outras omitidas, a falta de alguns momentos relegados para DVD. The Two Towers continua, apesar de tudo isso, a ser um filme estrondoso, de execução brilhante, que se soube construir sob a força narrativa do filme anterior e combinar um forte desenvolvimento de personagens com conflitos de uma escala épica poucas vezes vista no cinema. Pela sua natureza de "filme do meio" não poderia nunca ser um filme autónomo - mas não só cumpre a sua missão de ponte narrativa com um virtuosismo exemplar, como também eleva muito uma fasquia já de si altíssima. Numa palavra: excepcional. 9.5/10

The Fellowship of the Ring: The Two Towers (2002)
Realizado por Peter Jackson
Argumento de Peter Jackson, Fran Walsh, Philippa Boyens e Stephen Sinclair com base na obra de J. R. R. Tolkien
Com Ian McKellen, Elijah Wood, Sean Astin, Viggo Mortensen, Christopher Lee, John Rhys-Davies, Orlando Bloom, Andy Serkis, Dominic Monaghan, Billy Boyd, David Wenham, Miranda Otto, Cate Blanchett, Bernard Hill, Karl Urban, Liv Tyler, Hugo Weaving e Brad Dourif.
179 minutos

2 comentários:

ruisdb disse...

Gostei muito da tua análise o 2ª filme do LOTR.
Lembro-me de ter isto e prieiro e de andar perplexo quanto à possibilidade de fazer um bom 2ª filme. O Tolkien fez mesmo 2 livros diferentes e iria ser muito complicado transpor a coisa para o ecran. Mas concordo cotigo que a realizaçao deu a volta por cima.
Gostei também da visulaização do estado de degradação de Theoden. Parece mais fácil perceber o que se estava a passar.

João Campos disse...

Quando vi os filmes ainda não tinha lido nada de Tolkien. O segundo encantou-me pela dimensão, pelo Gollum (inevitavelmente), e pelos Ents.

A degradação de Theoden está feita de forma soberba. O momento em que ele diz "you have no power here" é excelente. E o actor que interpretou Grima também.