26 de setembro de 2013

A luz e as sombras na fantasia tolkieniana, ou: a tragédia de Frodo Baggins

Elijah Wood como Frodo Baggins na adaptação
cinematográfica realizada por Peter Jackson
Há dias, um artigo no io9 perguntava aos leitores qual era o "final mais feliz de sempre" - e, a ilustrar o desafio, um still da adaptação cinematográfica de The Lord of the Rings realizada por Peter Jackson. O momento seleccionado é de facto um momento que se poderia caracterizar como "feliz", mas talvez seja pertinente perguntar: terá The Lord of the Rings um "final feliz"?

A pergunta, note-se, não é inocente. Quando o grimdark tomou conta da fantasia contemporânea, fê-lo - é ler a crítica e o fandom - numa espécie de oposição mais ou menos assumida à high fantasy de inspiração tolkieniana, regra geral descrita como sendo a preto-e-branco, com heróis e vilões bem delineados e afastados e, qual cereja no topo do bolo, um "final feliz". Ou seja: vilão morto, Mal derrotado e um herói consagrado. Uma maçada, é o que é, e ainda por cima antiquada. A fantasia (pós-)moderna quer-se gritty, de moralidade ambígua ambígua ou mesmo amoral, polvilhada de anti-heróis e de vilões, se não bem intencionados, pelo menos bem motivados - podemos olhar para aquele que será nos dias que correm o expoente máximo dessa tendência, A Song of Ice and Fire de George R. R. Martin (deixemos por agora de lado a ironia de Martin ser um fã irredutível de Tolkien), e encontrar no texto todas estas marcas. Mas será a fantasia de Tolkien tão linear como os seus detractores a descrevem hoje em dia? Pessoalmente, julgo que não.

(daqui para a frente os spoilers serão a norma)


É certo que The Lord of the Rings apresenta heróis de carácter mais convencional. Aragorn será disso o exemplo perfeito: último descendente de uma linhagem de reis muito antiga e destinado a reinar ou a ver o seu povo desaparecer, o ranger do Norte entra na aventura para devolver os reinos de Arnor e Gondor ao esplendor de outrora - e se a interpretação cinematográfica de Peter Jackson lhe confere alguma relutância, em momento algum lhe dá ambiguidade moral. Aragorn é bom, e o seu final será um dos dois finais de facto felizes que a história conhece - e mesmo esse encerra nas suas sombras a tragédia de Arwen, que abdicou da imortalidade dos Elfos para viver com Aragorn e deixou-se morrer de desgosto nas ruínas de Lothlórien alguns anos após a sua morte (leia-se os anexos de The Return of the King: a passagem é extraordinária). Mas são os hobbits, em especial Frodo e Sam, os verdadeiros protagonistas de The Lord of the Rings; e nenhum deles encaixa numa definição convencional de herói de fantasia épica.

Samwise, ao contrário de Aragorn, não descende de reis ou príncipes, e tão pouco parece estar predestinado (ou mesmo predisposto!) a algo mais do que o seu pequeno jardim, que trata com amor e cuidado irrepreensível. Parte para a aventura instigado por Gandalf, mas sobretudo por pura lealdade para com o seu amo, Frodo. E é esse mesmo Sam - simples, rústico, desprovido de malícia ou de grande ambição - que regressa da terrível demanda até Orodruim - após todas as maravilhas e tormentas, após mesmo ter transportado o Anel (que devolveu ao portador com pouca relutância) para a vida bucólica do Shire que ajudou a salvar. E a diferença para com o herói clássico é ainda mais acentuada no seu amo, Frodo Baggins. Longe da predestinação de linhagem ou destino, Frodo é um hobbit de bom coração que, por uma série incrível de acasos, vê cair-lhe nas mãos o Anel de Sauron; e é com um misto de inocência e de boa vontade que aceita transportá-lo, primeiro até Bree, depois até Rivendell - e, perante a discussão acesa no Conselho de Elrond, até Mordor, para a sua destruição, sem no entanto fazer a mais pálida ideia do que isso iria implicar. É nesta personagem que encontramos a vasta terra de ninguém que na fantasia tolkieniana existe entre os pólos antagónicos do Bem e do Mal - sendo bom, Frodo foi sendo moldado pelos horrores e ferimentos que sofreu ao longo da sua demanda, do ataque do Witch-King em Weathertop até à picada de Shelob em Cirith Ungol, sem esquecer a traição de Gollum. Até ao ponto em que, nas furnalhas de Orodruim, derradeira meta da sua jornada, cede por fim ao Mal que o corrompeu durante a longa viagem: recusa destruir o Anel e toma-o para si. A missão teria falhado não fosse a intervenção de um anti-herói, Gollum, também ele corrompido (e muito haveria a dizer sobre Gollum), que lhe rouba o Anel e, efusivo pela vitória tão cobiçada, acaba por cair nos fogos da montanha e cumprir a missão dos hobbits. Frodo falhou, e sabe-o bem; regressa mudado, mutilado tanto física como emocionalmente, e sabe que o mundo que tentou salvar (e que ajudou a salvar) não poderá jamais ser recompensa para si. As suas palavras para Sam, no final da história, são elucidativas:
I tried to save the Shire, and it has been saved, but not for me. It must often be so, Sam, when things are in danger: some one has to give them up, lose them, so that others may keep them.
Na sua essência, a história de Frodo é uma história de tentação e corrupção, de alguém que - e aqui estou a parafrasear um amigo e uma conversa antiga - tocou no coração das trevas e não escapou incólume. O Mal foi destruído, o Rei regressou ao trono, o Shire foi salvo - mas para um único hobbit, o mais atormentado de todos, a única recompensa foi um exílio permanente que lhe terá permitido uma morte serena.

Se isto é um final feliz, então precisamos de uma nova definição de felicidade.

Frodo, de resto, não está sozinho na sua queda. Poderíamos, para não sair de The Lord of the Rings, mencionar os casos óbvios de Boromir e Saruman; mas as personagens de The Silmarillion ilustram bem melhor a tese. Na Primeira Era é também possível identificar com clareza o bem e o mal, nos Valar e em Morgoth respectivamente; mas nos Elfos, e em especial em Fëanor e nos seus filhos, há uma maior ambiguidade e uma maior propensão para o Mal. O exílio por que optaram e os massacres que cometeram no caminho não foram motivados pela luta abstracta contra o Mal que Morgoth representava, mas por puro orgulho ferido: o Vala caído roubara os Silmarills, jóias perfeitas forjadas por Fëanor, e este jurou com os seus filhos tudo fazer para as reaver - mesmo tudo. A guerra é longa e com mais perdas do que ganhos; os filhos de Fëanor acabam dispersos, e por fim mortos; os reinos dos Elfos caem um por um, de Nargothrond a Gondolin, e mesmo a Doriath; e, para colocar um fim a Morgoth, uma última e terrível batalha é travada, culminando com o banimento deste e com a ruína completa de Beleriand, a vasta terra a ocidente das Montanhas Azuis, engolida pelo oceano. Destino idêntico foi imposto por Eru Ilúvatar a Númenor, já na Segunda Era, quando os reis dos Homens tentaram invadir Aman (então separada fisicamente da Terra Média). Dito de outra forma: o Bem triunfa, sim, mas o preço que paga pela vitória revela-se sempre demasiado elevado. O que não surpreende dadas as inspirações escandinavas de Tolkien: o Ragnarök foi tudo menos uma conclusão serena. 

Com isto, note-se, não pretendo entrar em algum revisionismo e introduzir a obra de Tolkien no grimdark da fantasia contemporânea; apenas questionar algumas ideias pré-concebidas quanto aos supostos heróis e finais felizes de uma obra que, em termos temáticos, acaba por ser marcadamente trágica.

4 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem visto. Fico sempre de boca aberta quando me dizem que o LotR é uma história em que nada muda - quando aquele mundo se altera por completo, quando tantos personagens são para sempre mudados...

João Campos disse...

De facto. Mas a mim irrita-me mais a questão dos finais felizes e da suposta ausência de brutalidade - sobretudo pela comparação com a fantasia moderna. É um perfeito disparate.

ruisdb disse...

Uma bela e inteligente análise. Just my 2 cents... É óbvio que Tolkien tem uma espessura maior do que os tradicionais combates bem Vs mal. E bem maior do que a negação moral de muita fantasia (pós-)moderna.
O teu texto prova-o bem. No centro está a presença do mal e a exigência de redenção.
No inicio do silmarilion, aquando da criação, Eru dá um dom aos homens: a morte. É dada como dom e percebida como castigo. E desta tensão nasce toda a história.
Sem nunca o enunciar esta a teoria do pecado original: o mal é real e carece de redenção (a partida para o Ocidente). Por isso todos os personagens não são os heróis impolutos que se esperaria; mesmo lutando pelo bem, fica uma ausência, o tal desejo de libertação.
Este link entre este desejo e aquela afirmação paradoxal de Eru da morte com dom talvez possa dar umapista de integração

João Campos disse...

Muito bem visto. A ambiguidade da morte na criação por Eru Ilúvatar é um tema que marca todo o mundo ficcional de Tolkien - basta pensarmos na armada de Al-Pharazôn e no que moveu o rei de Númenor a navegar até Aman (com os resultados que se conhecem).

(e obrigado pelos comentários, sempre interessantes. isto em conversa é bem mais divertido)